Surgida em 1963, a
revista O Tempo e o Modo. Revista de
Pensamento e Acção cedo se tornou uma referência cultural e ideológica na
década de sessenta, mantendo o seu projecto original até finais de 1967. Em
Outubro de 1969, tem início a Nova Série
da revista, com uma orientação muito distinta, mantendo-se a publicação da
mesma até, pelo menos, Setembro de 1977.
A revista foi produto de
um projecto cultural que em seu torno agregou um conjunto de outras
iniciativas, como a Livraria Moraes Editora e a edição portuguesa da Concilium. Revista Internacional de Teologia.
Nascido a partir do dinamismo generoso e do saudável aventureirismo utópico de
António Alçada Baptista, teve como núcleo fundador uma geração mais nova
oriunda meios católicos (como a Juventude Universitária Católica, o jornal Encontro e o Centro Cultural de Cinema),
onde se destacavam os nomes de João Bénard da Costa, Pedro Tamen e Nuno de
Bragança. Desde os seus alvores, a revista possuía, pois, uma matriz católica
de intervenção na vida pública, realizada em «diálogo» com outras tendências e
outros protagonistas. Procurava ser um lugar de convergências: geracionais,
ideológicas, políticas, mundividenciais.
António Alçada Baptista
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De facto, uma das grandes
questões suscitadas nos primórdios de O
Tempo e o Modo foi justamente a de abrir ou não a revista à participação de
não-católicos. A cooperativa Pragma havia resolvido a questão optando pela via
«ecuménica» e o mesmo sucedera com o seu modelo, a Esprit. «Seria [O Tempo e o
Modo] uma revista só de católicos? Se assim fosse, seria uma traição em
relação a Mounier, que se demarcara em 1932 de Maritain nesse ponto», escreve
Guilherme d’Oliveira Martins («O Tempo e o Modo. Dos sinais dos Tempos e dos
seus Modos», in O Tempo e o Modo.
Antologia, Lisboa, 2003, p. 13).
Que fazer, então, com O Tempo e o Modo? Para resolver a
dúvida, conta Bénard da Costa, decidiu rezar-se, por proposta sua, uma
Avé-Maria antes da votação, curiosíssimo indício do enraizamento da fé católica
no espírito dos presentes. No final, venceria democraticamente a opção pelo
pluralismo (João Bénard da Costa, «Meus tempos, meus modos», Diário de Notícias. Revista de Livros,
de 9-XI-1983). Perante esta deliberação, Alçada Baptista propõe a entrada de
Mário Soares e de Francisco Salgado Zenha, agregando-se posteriormente Adérito
Sedas Nunes, Mário Murteira, Francisco Lino Neto, Orlando de Carvalho, Mário
Brochado Coelho, Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Manuel dos Santos Loureiro e
até Mário Sottomayor Cardia. Pouco depois, entrariam Vasco Pulido Valente – com
a missão de controlar os «desvios de direita» de Bénard da Costa nos domínios
das artes e das letras, segundo o testemunho deste último –, João
Cravinho, Francisco Ferreira Gomes e Vítor Wengorovius. Numa fase posterior,
Luís Salgado de Matos conduzirá mais uma etapa de abertura da revista, nela
fazendo entrar Alfredo Barroso, Jaime Gama, José Luís Nunes, Alberto Costa,
António Reis, Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo, Nuno Júdice ou Manuel
Gusmão.
Segundo Bénard da Costa,
foi «uma atitude corajosa de parte a parte», dos católicos e dos não-católicos
(depoimento in: Os anos 60: factores de
mudança. policop. Lisboa: Centro Nacional de Cultura/SEDES, 1990, Dossier
1). Se os católicos rezavam Avé-Marias, os não-católicos estavam desconfiados:
quando Alçada Baptista convida Mário Soares e Salgado Zenha para escreverem em O Tempo e o Modo, e estes aceitam, há
alguma hostilidade da parte de personalidades exteriores à revista, como
Piteira Santos, Manuel Mendes, Gustavo Soromenho e Ramos da Costa (depoimento
de Mário Soares in: António Alçada
Baptista. Tempo Afectuoso – Homenagem ao escritor e amigo de todos nós,
Lisboa, 2007, p. 174). Mas, como diz com justificado orgulho António Alçada Baptista,
«foi talvez a primeira vez que católicos e não católicos pensaram conjuntamente
em Portugal numa intervenção política» («Vida e morte da Moraes». Alter/Ego. Indivíduo, sociedade, cultura,
1988, p. 95). João Bénard da Costa tem uma visão algo distinta: «penso que a
dimensão da utopia era mais importante do que a pragmática. Nunca pensámos em
“O Tempo e o Modo” como um embrião de um futuro partido político». Mas o certo
é que, como reconhece o próprio Bénard da Costa, dada a colaboração de
não-católicos, «fomos logo vistos como o embrião de uma aliança ou tentativa de
diálogo entre a democracia cristã e o Partido Socialista ou, como se dizia
então, a social-democracia». Aquela colaboração entre católicos e
não-católicos foi um passo «extremamente
importante», no balanço de Pedro Roseta. Sobretudo porque, de acordo com a
memória de Bénard da Costa, estava subjacente uma «questão de honra»: não
poderia colaborar na revista quem tivesse tido qualquer colaboração com o
regime, mesmo que se tratasse de uma personalidade «liberal» (entrevista ao Público, de 15-XII-2003). Também existiu
o propósito de não integrar membros do PCP, ainda que o Partido acabasse por
estar informalmente representado através da presença de Mário Sottomayor
Cardia. Este, de resto, abandonará O
Tempo e o Modo decorrido pouco tempo depois, tendo ingressado na Seara Nova, onde logo encetou uma
violenta polémica contra a revista de onde saíra, acusando-a de promover uma
«aliança encapotada» entre os católicos progressistas e a social-democracia
representada em Soares e Zenha (cf. Liberdade
Sem Dogma. Testemunhos e estudos sobre Sottomayor Cardia, Lisboa, 2007, p.
86).
A revista pôde, assim,
ostentar no seu primeiro número o nome de dois futuros presidentes da
República, Mário Soares e Jorge Sampaio. Mas não foi propriamente a
participação nas suas páginas de personalidades não-católicas que deu a O Tempo e o Modo a coloração «centrista»
e a projecção pública que logo adquiriu entre as elites cultivadas da altura,
designadamente entre os leigos que começavam a distanciar-se das posições
oficiais da hierarquia da Igreja, tidas como demasiado próximas da linha
política intransigentemente prosseguida por António de Oliveira Salazar. Mais
do que um projecto aglutinador de crentes e não-crentes, a publicação animada
por Alçada Baptista foi, em articulação com os livros lançados pela Moraes, o
primeiro grande espaço cultural alternativo à «situação» e, no outro extremo, à
hegemonia que, sobretudo através da Vértice
e da Seara Nova, o neo-realismo
afecto ao PCP possuía no domínio da cultura oposicionista. Seguindo a linha
personalista de Mounier, obedecia a um programa de «humanismo interventor» e,
só por isso, configurava-se como um projecto que, nascido à sombra da memória
do «terramoto Humberto Delgado», possuía uma insofismável dimensão política,
ainda que não estivesse nos imediatos planos dos seus fundadores intervir como
tal na vida política portuguesa. Além disso, O Tempo e o Modo foi, por assim dizer, a escola de um escol, o local de formação e socialização de
personalidades que viriam a desempenhar papéis de grande relevo na vida
política e cultural portuguesa, antes e depois do 25 de Abril. Por outro lado,
se O Tempo e o Modo não conseguiu
realizar uma efectiva convergência entre católicos «progressistas» e agnósticos
«sociais-democratas», mais por deserção destes do que por falta de abertura
daqueles, nem por isso pode deixar de se considerar uma publicação plural e
não-sectária, sem com tal lhe tenha feito perder a marca de catolicidade que a
caracterizou desde os seus primórdios e que só é compreensível quando associada
ao espírito do aggiornamento
conciliar e às esperanças depositadas em João XXIII, o papa buono. Por fim, a revista actuou como modelo de um projecto
reformista da sociedade, sem intuitos partidários mas tentando situar-se a um
«centro» que, mais do que estritamente cultural, era sobretudo ideológico.
As dificuldades
financeiras que ditaram o destino da revista nesta sua primeira fase foram
espelho de uma incapacidade mais profunda, a incapacidade de manter uma posição
«centrista» quando a voragem do tempo apontava para uma radicalização dos
extremos, entre os partidários e os adversários do regime de Salazar. Quando a
possibilidade de encontrar uma via intermédia entre esses dois pólos renasce
efemeramente, com a chegada de Marcelo Caetano à Presidência do Conselho, não
será já O Tempo e o Modo a ocupar
aquele espaço duplamente alternativo, nem a exercer aquela função moderadora - a qual,
de resto, também será condenada a prazo, como a experiência da «ala liberal»
mostrou de forma eloquente. Tal não significa qualquer juízo de valor negativo
quanto à importância de uma revista e de um projecto cultural de indiscutível
relevo, sobretudo se tivermos presente o contexto histórico em que O Tempo e o Modo surgiu e se afirmou
como publicação que dava à estampa textos que ainda hoje constituem um marco da
vida intelectual portuguesa da segunda metade do século XX. Trata-se tão-só de
uma constatação objectiva: a evolução do regime e da sociedade comprimiram
significativamente o espaço onde O Tempo
e o Modo se pretendia situar e mover.
O «centro» desvanecera-se e, com ele, a revista deixara de possuir um modo para continuar naquele tempo.
Para saber mais
O estudo mais
completo e aprofundado sobre a primeira fase de O Tempo e o Modo é, indubitavelmente, o da autoria Nuno Estêvão
Ferreira, «O Tempo e o Modo. Revista de
Pensamento e Acção (1963-1967): repercussões eclesiológicas de uma cultura
de diálogo», in Lusitania Sacra, 2ª
série, nº 6, 1994. Mais recentemente, foi apresentada por Mário Rui Gonçalves
Dias a dissertação académica O Tempo e o
Modo: um itinerário ensaístico de um receptor da modernidade, ainda inédita
(Coimbra, 2006). Para a compreensão do percurso da revista são fundamentais as
narrativas memorialísticas de Alçada Baptista, nomeadamente Peregrinação Interior (vol. 1, 1971;
vol. 2, 1982) e, sobretudo, A pesca à
linha. Algumas memórias (1998) e A
cor dos dias. Memórias e peregrinações (2003). De Alçada Baptista é também
essencial o texto «Uma aventura com O
Tempo e o Modo», in Ler. Livros &
Leitores, nº 36, Outono de 1996. A obra colectiva de homenagem ao editor da
Moraes contém vários depoimentos de grande interesse: cf. António Alçada Baptista. Tempo Afectuoso – Homenagem ao escritor e
amigo de todos nós. Dir. de Maria Helena Mira Mateus e Guilherme d’Oliveira
Martins. Lisboa, 2007. São fundamentais os textos de João Bénard da Costa
publicados no jornal O Independente e
posteriormente reunidos em livro sob o título Nós, os vencidos do catolicismo (Coimbra, 2003), bem como o artigo
«Meus tempos, meus modos», saído no Diário
de Notícias. Revista de Livros, de 9-XI-1983 (onde foi igualmente publicado
sobre a mesma temática um texto de Vasco Pulido Valente, «Éramos assim absurdos
em 1963»). Bénard da Costa é ainda autor de um texto sobre a revista na
importante obra colectiva A Aventura da
Moraes, coordenada por Teresa Tamen (Lisboa, 2006). É bastante informativa
a entrada «O Tempo e o Modo» na obra Dicionário
da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974), vol.
2, Lisboa, 2000, da autoria de Daniel Pires. Em 2003, a Fundação Calouste
Gulbenkian e o Centro Nacional de Cultura co-editaram uma antologia de O Tempo e o Modo, com um importante
estudo introdutório de Guilherme d'Oliveira Martins.
Nota final: este texto, escrito com propósitos limitados e sobretudo informativos, foi originalmente publicado na obra colectiva Os Anos de Salazar, org. de António Simões do Paço, Lisboa, 2008, vol. 20, pp. 148ss, não se tendo procedido à sua actualização; assim, as referências bibliográficas reportam-se a essa data, não contemplando obras entretanto saídas).
António Araújo
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