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A 2 de Dezembro de 2010 o Expresso da FIFA saiu de
Zurique em direcção a Moscovo e, finalmente, Doha. Esta viagem que Joseph S.
Blatter pretendia que fosse histórica – levar o futebol a novas paragens e
mercados – tem-se revelado bastante … acidentada. E quase quatro anos depois
continuamos a questioná-la.
A atribuição da organização dos Campeonatos Mundiais de
2018 e 2022 à Rússia e Qatar, respectivamente, levantou muitas dúvidas. A
Rússia conseguiu superar com 13 votos, na segunda volta, as candidaturas de
Portugal-Espanha (com 7) e Bélgica-Holanda (com 2). A quarta candidatura – a
inglesa – recebeu apenas dois votos na primeira ronda. A decisão relativa ao
Campeonato Mundial de 2022 foi mais renhida. O Qatar recebeu 14 votos na quarta
votação contra os EUA que receberam 8. Pelo caminho ficaram os sul-coreanos
(que foram até à terceira volta) e os japoneses e australianos.
Para além das óbvias questões políticas há também outras
mais práticas. Lembro-me de ter ficado perplexa com a opção da FIFA pela
candidatura qatari. Como é que se vai aguentar o calor abrasador dos meses de
Junho e Julho que chega aos 50 graus? Esta questão foi evidente este ano, no
Brasil, com alguns jogos marcados à tarde que pura e simplesmente não deveriam
ter sido agendados naquele horário e cidades… Após muito debate as opções mais «realistas» são as de realizar o Campeonato nos meses de Novembro e
Dezembro ou Janeiro e Fevereiro. Para além da necessidade de harmonizar estas
datas com os Jogos Olímpicos de Inverno e cujo anfitrião será decidido em Julho
do próximo ano, há ainda a questão da UEFA e Ligas milionárias, que terão de
parar as suas competições. Por isso mesmo a Associação de Clubes Europeus, formada
em 2008, composta por 214 clubes e que inclui os grandes … defende a sua realização em Maio.
E há também «pequenas» questões culturais associadas à
presença de milhões de estrangeiros num país onde há restrições religiosas e
culturais, entre outras, quanto ao álcool e também à forma de vestir. O Qatar
já veio a público dizer que durante o Mundial serão tomadas medidas excepcionais
e criativas. A ver vamos.
Para além de tudo isto há ainda as acusações de corrupção
na atribuição da organização dos Campeonatos Mundiais de 2018 e 2022 à Rússia e
ao Qatar. Estas seguiram-se aos casos de Amos Adamu e Reynald Temarii, dois
membros do Comité Executivo, que foram considerados culpados e afastados do
«futebol» por um período (início a 20 de Outubro de 2010) de três anos e um ano,
respectivamente. Tal como em relação a estas acusações foi o jornal The Sunday Times (desta feita através de
um artigo publicado a 18 de Novembro de 2012) a alavanca para uma
investigação mais profunda pela FIFA. A investigação foi liderada por Michael
Garcia, no âmbito do Comité de Ética, durou cerca de dezoito meses e culminou
num relatório com cerca de 430 páginas. Este relatório foi resumido em 42 páginas por Hans-Joachim Eckert, presidente da
Comissão de Ética da FIFA, e divulgado no passado dia 13. Uma das conclusões
deste sumário foi a de que não há irregularidades comprovadas na vitória do
Qatar e da Rússia e de que a única candidatura que não teve qualquer
comportamento indevido foi a belgo-holandesa (p. 21). A reacção da FIFA foi de alívio.
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Mas foi sol de pouca dura. O principal autor do
relatório, o procurador norte-americano Michael Garcia, afirmou que o sumário
apresentado «contém várias representações dos factos
que estão materialmente incompletas e são erróneas».
Fiquei curiosa e fui ler o documento. Em
primeiro lugar, temos as conclusões mais controversas. Embora tenha sido reconhecido
que se registaram «condutas potencialmente problemáticas de certos indivíduos»
estas não foram consideradas suficientes para «comprometer a integridade do
processo». Mais ainda, as críticas mais duras foram efectuadas à candidatura
inglesa e australiana.
Depois de ter lido e relido este documento encontrei
algumas pérolas que valem a pena explorar. Temos que começar pelo Relatório do
Grupo de Avaliação. Este documento foi o resultado de visitas aos países entre
Julho e Outubro de 2010 com o objectivo de avaliar a capacidade organizativa
das suas candidaturas (p. 14). O Grupo concluiu que, em matéria operacional,
todas eram de risco baixo com excepção da russa que foi considerada de risco
médio e da qatari de risco elevado. No que toca aos restantes requisitos apenas
dois «locais» receberam a classificação de risco elevado: Rússia em matéria de
transportes (aeroportos e ligações internacionais) e Qatar (instalações para as
equipas). Ora é curioso verificarmos que as duas candidaturas que ofereciam
mais riscos do ponto de vista organizacional foram justamente … as vencedoras.
De seguida, passamos para a candidatura russa.
E percebemos, desde logo, as limitações da investigação sobre um dos vencedores
(pp. 30-31). E passo a traduzir: só foi possível ter acesso a um número
limitado de documentos e e-mails pois os computadores utlizados pela delegação
russa tinham sido alugados a uma empresa. Esta, depois de todo o material
informático ter sido devolvido, acabou por destruir os computadores. E dos
documentos entregues «muito poucos» diziam respeito a informação e
correspondência relevante. Quanto aos e-mails, a delegação russa informou a
FIFA que tinha tentado junto da Google
USA aceder às contas Gmail usadas
durante todo este processo e que … a Google
não tinha respondido. E este é o pormenor mais «delicioso» tendo em conta que a
Google (tal como o Facebook e Skype) têm estado (e agora ainda mais) sob pressão do governo
russo. Este ano Vladimir Putin considerou o servidor norte-americano um «projecto da CIA». Moscovo ameaça colocar estas empresas numa
lista negra se estas não cumprirem com a legislação que
permite às autoridades russas acederem às informações e dados.
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E o Qatar? Há vários elementos curiosos que
são apontados na candidatura qatari (pp. 26-27). Por exemplo, temos a
realização de um jogo amigável entre o Brasil e a Argentina em Doha a 17
Novembro de 2010 (a duas semanas da decisão final) que foi organizado por uma
«empresa» qatari independente da «candidatura 2022» e da federação de futebol
do Qatar. Mais ainda, este país patrocinou o Congresso da Confederação Africana
em Angola em Janeiro de 2010 e como nos diz o relatório «continua sem ser claro
quanto custou o evento…». Mas é o papel do membro do Comité Executivo e
vice-presidente da FIFA, o qatari Mohamed Bin Hammam, que levanta todas as dúvidas. Hamman fez «pagamentos»
a outros membros do Comité que foram acusados de corrupção como, por exemplo, Reynlad
Temarii e Jack Warner, de Trinidade e Tobago. A delegação qatari negou que
Hamman estivesse a fazer lobby para
que Doha ficasse com o Mundial 2022 e que este estaria focado na sua
candidatura a Presidente da FIFA em 2011. Mohamed
bin Hammam acabou por ser banido do futebol de forma vitalícia em Dezembro de
2012. No sumário apresentado por Hans-Joachim Eckert conclui-se que não há uma associação directa entre os «pagamentos» e o apoio à
candidatura do Qatar para 2022…
Mas talvez seja necessário recuar até à reunião
do Comité Executivo da FIFA em Tóquio em 19 e 20 de Dezembro de 2008 onde foi
tomada a decisão pioneira de atribuir dois campeonatos de uma só vez. A
primeira mudança nas regras de atribuição dos Campeonatos teve lugar em 2002
com a sua realização em território asiático (Japão-Coreia do Sul) pondo fim à
rotatividade entre a Europa e a América. O Campeonato voltou à Europa em 2006 tendo
depois passado pela África do Sul em 2010 e Brasil 2014. Para além das regras
simples de não repetir continente e confederação em dois campeonatos sucessivos
ficámos a saber também que há um compromisso informal em relação à Europa: a
realização de uma em cada três edições (p. 7).
Mas ainda assim porquê atribuir dois
campeonatos ao mesmo tempo? Esta decisão é citada no relatório embora não
explicada ou contextualizada (p. 13). Nas palavras do secretário-geral Jerome Valcke e tendo como contexto
o Campeonato de 2010: «eu penso que o período de seis anos para uma nação
anfitriã se preparar para organizar um grande evento como o Campeonato do Mundo
não é suficiente. (…) Alguns países, em particular os países em vias de
desenvolvimento, necessitam de mais tempo para construir as infraestruturas.»
Valcke dizia ainda que «se fizermos o anúncio em 2010 para os campeonatos de
2018 e 2022 as nações anfitriãs terão oito e doze anos. (…) A FIFA está sempre
à procura do Campeonato Mundial perfeito». Pois.
No resumo divulgado por Hans-Joachim Eckert este é
justamente um dos aspectos a evitar. E é uma recomendação que não precisa de
muita explicação. Face às críticas e indícios de venda e troca de votos
potenciada pela «dupla selecção» (p. 34) a FIFA já tinha vindo a reformular o processo
de atribuição. Neste novo modelo o Congresso volta a ter um papel fundamental
em conjunto com o Comité Executivo. No que toca ainda ao resumo/relatório
encontramos ainda recomendações no sentido de maior transparência nos critérios
de rotatividade geográfica e também de estabelecer limites de mandatos para os
membros do Comité Executivo. E mais ainda, que os membros deste Comité não
possam votar quando está em causa o «seu» país…
O impacto da divulgação deste resumo foi muito para além
da reacção do procurador Michael Garcia. Ficámos a saber que o FBI tem uma
investigação em curso. E, apesar de reiterar a decisão de manter a
confidencialidade do relatório inicial, a FIFA apresentou queixas-crime contra
certos indivíduos ao Gabinete do Procurador-Geral em
Berna. As críticas mais duras vieram de fora e há quem fale em Guerra civil. Michael Hershman, antigo conselheiro da FIFA, chamou a atenção
para o facto de que esta foi uma investigação administrativa (sem grandes
poderes) e de que a FIFA é uma organização fechada em si mesma e incapaz de se
autorregular. E foi mais longe pedindo a demissão de Blatter pela sua
responsabilidade política durante quatro mandatos com vários escândalos de
corrupção. No poder desde 1998 Blatter decidiu recandidatar-se nas eleições de
2015.
Um dos aspectos mais positivos deste resumo/relatório foi
o de nos fazer pensar sobre o peso financeiro dos Campeonatos Mundiais no
orçamento da FIFA e também no funcionamento desta organização. Do ponto de
vista orçamental e tendo como exemplo os anos de 2007 a 2010 (pp. 6 e 7), a
organização do Campeonato Mundial representou 87% da receita geral da FIFA, ou
seja, 3 654,7 milhões de dólares e sendo a grande fatia – 2 408,1 – referente a
direitos televisivos. O resumo reforça ainda a capacidade de atracção deste
evento desportivo chamando a atenção para os números: por exemplo, a audiência
cumulativa de todos os jogos do Campeonato de 2006 na Alemanha foi estimada em
26,29 biliões e a final foi vista por 715 milhões de pessoas.
Do ponto de vista formal, a FIFA é uma associação privada,
sem fins lucrativos e baseada em Zurique (p. 3). Fundada em 1904 com sete associações
(França, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça), em Paris, conta
actualmente com 209 membros. Estes estão divididos em seis confederações
regionais sendo a mais poderosa a europeia UEFA. Esta primazia é evidente no
número de lugares atribuídos aos europeus no Comité Executivo: 3
vice-presidentes e 5 membros. A UEFA é seguida pela sua congénere africana e
asiática, ambas com quatro lugares (1 vice-presidente e três membros). Temos
depois as duas organizações do continente americano e da Oceânia. É curioso
verificarmos que, à excepção da UEFA liderada pelo francês Michel Platini, as
restantes confederações são presididas por nacionais de países sem grande peso
no futebol. Não querendo parecer preconceituosa e percebendo a vantagem de ter candidatos
que não sejam de grandes potências «futebolísticas» em relação aos quais é mais
fácil um consenso, continua-me a fazer alguma confusão ter vice-presidentes da
FIFA de países como a Papua Nova-Guiné, Ilhas Caimão ou Jordânia.
Mas é, sem dúvida, a relação entre a FIFA e a UEFA que é
decisiva em matéria de poder. Michel Platini juntou-se ao coro de vozes que pedem a divulgação do relatório
Garcia. Outros dirigentes das associações nacionais têm sido mais críticos. Basta
olharmos para o caso de Christian Seifert, director-geral da Liga Alemã de Futebol. Numa
entrevista ao jornal alemão Süddeutsche
Zeitung Seifert apelou ao boicote aos mundiais de 2018 e 2022. Apesar de
não lhe parecer exequível ter todos os europeus do mesmo lado lembrou um
argumento de peso: «75 por cento dos jogadores de um Mundial têm contrato na
Europa e, se a Europa disser 'nós não participamos', isso mudaria tudo».
Num artigo publicado na Foreign Policy Roger Pielke oferece vários exemplos e alternativas para lidar com a
corrupção na FIFA, tal como já aconteceu com outras organizações de cariz
desportivo. Mas talvez a frase mais interessante do resumo apresentado pelo presidente
da Comissão de Ética da FIFA esteja na página 41:
«No entanto, o maior desafio relativamente à corrupção é
prová-la».
And this is
where the plot thickens.
Raquel Vaz-Pinto
Nota: esta crónica foi escrita ao som de «Private
Investigations» dos Dire Straits (versão ao vivo Alchemy)
Mas que belo e competente trabalho. Muitos parabéns. Vou republicá-lo com indicação dos correspondentes créditos, se não discordar.
ResponderEliminarPois é, como ja se sabe ha muito,naõ ha Pai Natal.Ha apenas negocio.
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