DE COMO PERDI A CRENÇA NA VANTAGEM DE
TERMOS
COLÓNIAS AFRICANAS
Memórias dos anos passados em Moçambique ou reflexões sobre o mito do
Império português, o que Cervantes designaria como Ilha Baratária
“− Olhe, amigo Sancho, respondeu o
Duque, eu não posso dar uma parte do céu a ninguém, mesmo que não seja maior do
que uma unha, pois só a Deus estão reservadas essas mercês e graças. O que
posso dar-lhe é uma ilha feita e pronta redonda a bem proporcionada e muito
fértil e abundante, onde vós, se tiverdes manha para isso, poderá com as
riquezas da terra, granjear as do céu.”
Cervantes, D. Quixote da Mancha, II parte, cap. XLII.
Depois dos anos de
meninice passados em Joanesburgo, onde fui aluno dum colégio marista inglês,
embora dispensado da aula de catequese, vivi depois em vários recantos de
Moçambique, como Inharrime, Spungabera e, mais tarde ainda, em Montepuez e
Nacala, localidades onde meu pai foi administrador. Nos dois últimos anos
africanos, quando terminava o liceu, que seriam os derradeiros passados em
Moçambique, residi então na pensão Martins, na Avenida 24 de Julho, em Lourenço Marques ,
passando com os meus pais as férias de natal e do verão. E foi em Nacala, tinha
então 15 anos, que pude assistir uma ou duas vezes, ao cerimonial que iria
marcar de modo profundo o meu modo de encarar o mundo e a vida: o julgamento de
nativos, a que assisti em Nacala, no edifício da administração, colhendo para
sempre, na minha memória de adolescente, uma impressão de estranheza que esses actos
judiciais, a que assisti na sede da Administração, então me provocaram, sendo o
meu pai o juiz todo-poderoso dessas cerimónias.
A justiça fazia-se diante
no alpendre que servia de átrio ao edifício do governo, ficando todos os
litigantes debaixo das árvores de largas copas que davam sombra ao terreiro,
estando o juiz (o meu pai) com a farda branca da marinha, com botão de
âncora e sapatos alvos, ouvindo e presidindo a tudo, quase sempre calado, sentado
na sua secretária de mogno, havendo em cima da mesa alguns papéis referentes aos
casos a resolver entre queixosos e réus negros, O intérprete lá ia traduzia o
diálogo agreste entre a acusação e a defesa – não havia advogados neste
tribunal colonial – e, no final de cada caso, o juiz branco (o meu pai)
resolvia sumariamente o caso, ditando em poucas palavras a sentença e mandando
aplicar ao acusado o castigo imediato, umas tantas palmatoadas dadas pelo sipaio,
um homem geralmente cruel e hercúleo. O castigado gritava de dor depois de cada
palmatoada dada com um espesso pau de ébano de cinco olhos. E, por fim, eram
todos mandados embora, regressando o meu pai ao interior da Administração para
tratar dos seus demais negócios. Nos casos de penas mais gravosas, o réu
recolhia de imediato ao cárcere, uma barraca imunda nas traseiras do pretório.
Fiquei desde então com a ideia de que o Império era uma fantochada triste e que
eu nunca viveria ali o resto dos meus dias, assim como aquelas duas humanidades
que se defrontavam num tribunal africano simbolizavam uma situação cujo desfecho
futuro inevitavelmente acabaria com a expulsão por via armada dos colonizadores
europeus.
Recordo
ainda como foi também decisiva para a minha formação intelectual e política uma
longa viagem de vários dias que fiz de automóvel com oi meu pai, no interior da
região de Montepuez, visitando várias empresas suíças de colheita de sisal, tabaco
e algodão, passeata que me levou a perguntar ao meu pai, quando tornávamos a casa,
porque é que o poder político luso mantinha a ordem política em Moçambique para
proveito exclusivo do capital estrangeiro, sendo, por exemplo, o tabaco que se
fumava em Portugal e até naquela colónia da costa oriental comprado depois, na
Suíça, ou seja, aos mesmos donos estrangeiros daquelas firmas de proprietários.
O meu pai respondeu-me que os nossos capitalistas não queriam investir em
Moçambique, de maneira que, muito naturalmente, os suíços aproveitavam-se da
situação, comprando fazendas e plantando tabaco ou sisal. E acrescentava que,
de qualquer modo, a ele, como administrador, ou seja como autoridade lusa em
África, competia assegurar a paz interna, o domínio sobre os nativos e os
interesses ligados ao nosso domínio histórico ali, recordando-me que o Império
não era uma construção que se justificasse em termo de rendimento económico mas
sim na de dever histórico, ao serviço da nossa “missão imperial”.
Seis anos depois, já
estudante universitário em Lisboa, dei continuidade lógica às minhas objecções
rebeldes quanto à nossa posse colonial africana participando de modo entusiasta
numa greve se estudantes que, destinada a combater o poder da ditadura pessoal
de Salazar, tinha, antes de mais – estávamos em 1962, no ano seguinte ao início
da guerra angolana –, que ver com a recusa do nosso colonialismo, confrontando-nos
com a ominosa perspectiva de irmos nós mesmos, depois da recruta em Mafra, combater
nas nossas colónias para as mantermos. Foi assim que, chegado a meio do meu
curso, no verão desse anos fatídico de 1962, recebi uma convocatória do exército
mandando-me apresentar como soldado-cadete no solene convento, para dali
seguir, passados seis meses, como oficial miliciano na luta contra a guerrilha
africana. Tratava-se, obviamente, de uma sanção que a polícia política do regime
aplicava aos jovens que tinham participado na greve universitária desse ano, castigo
dado aos estudantes que, como eu, tinham inscrito a nitrato de prata, nas
paredes brancas dos edifícios, desde a cidade universitária à praça de Londres
e ruas burguesas adjacentes, graffitis contra
a ditadura e pedindo o fim da guerra colonial.
Todavia, ao contrário da
maioria dos meus colegas convocados também para o serviço militar, horrorizava-me
a ideia de desertar e que, ao invés, talvez pudesse utilizar aquela inesperada
e tão injusta como odiosa servidão militar para combater a guerra no interior
da própria máquina guerreira desse sangrento Behemoth colonial que me ordenava ir
para Mafra e, dali, para o combate. E fui mesmo para Mafra, confiante na
esperada bondade futura de Adonai, e fi-lo com estóica determinação, crente na
astúcia da minha táctica. O facto de ter andado uns anos no Colégio Militar
escorava esta opção complexa e porventura quimérica, já que a simples ideia de
desertar, mesmo dada por uma instância odiosa como o governo da Ditadura, me
parecia inaceitável em termos éticos. E assim, um mês depois, levando ao colo
uma espingarda Mauser com a suástica gravada na coronha – tratava-se de
armamento oferecido a Portugal pela Alemanha nazi –, me sucedeu, num sábado de manhã, quase no final da instrução
militar na tapada de Mafra, cair duma ponte de madeira, dando uma queda que
provocou a fractura dum osso de articulação do pé direito, o escafóide társico, cujo nome helénico
jamais esqueceria…
Resumindo o que se
seguiu, direi que fui operado no Hospital Militar Central, à Estrela, posto em situação
de adido, em regime de espera com vista a uma decisão médica ulterior e, após
uma junta militar que me pediu para atravessar uma sala, primeiro usando a
minha inseparável bengala e depois sem ela, finalmente retirado da efémera
categoria de soldado-cadete e, por fim, devolvido à vida civil, o que me
permitiria retomar e continuar o meu curso na Faculdade de Letras. Quanto à
bengala que eu usara com astúcias de Charlot, dei-a à minha avô Ermelinda no mesmo
dia em que cheguei a casa dela, vindo em táxi da miraculosamente junta redentora do Hospital Militar de
Lisboa, com a salvífica decisão de me considerar “inapto para o serviço
militar”, dispensado de partilhar do destino das hostes portuguesas que durante
13 anos de guerras africanas, iriam defender a duvidosa soberania das nossas
condenadas colónias, essas tristes
Baratárias que durante centúrias tínhamos em vão crido ser nossas, quando não
passavam, como a falsa ilha ironicamente dada a Sancho Pança (“de barato”) pelos malévolos duques sem nome - Cervantes optara
por os não nomear, talvez para evitar o escarmento
eterno que ganhariam dos seus leitores -, ilusão que, desde umas férias de verão
passadas em Nacala, vendo o meu pai administrar justiça aos nativos e, depois,
visitando elegantes e ricas fazendas suíças em terras moçambicanas, permitiram que
um quase-país chamado Confederação Helvética pudesse plantar e colher tabaco
que, depois, nos vendia para deleite dos nossos pulmões lusíadas, fazendo de
nós colonizadores cocus mais contents…
João Medina
Não o fiz porque não precisei mas parece-me mais ético desertar do que arranjar um ardil para não combater.Embora neste caso será sempre melhor não combater de qualquer maneira.Acho.
ResponderEliminarSó viu um bocadinho de Moçambique e ainda por cima com a ajuda dos olhos de um pai administrador de posto.
ResponderEliminarHavia mais Mundo.
Não o vou explicar, nunca o compreenderia.
Cumprimentos.