terça-feira, 10 de novembro de 2020

Apresentação de História Global de Portugal.

 

 





Apresentação de História Global de Portugal

 

 

 

Antes de mais, e naturalmente, queria agradecer o convite feito para apresentar este livro aos meus caros amigos Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco, que em conjunto com José Pedro Paiva, dirigiram esta obra.

 

          Trata-se de um convite extremamente honroso, e digo-o com sinceridade, quer pelas personalidades que o formularam, sobejamente conhecidas da vida pública e cultural portuguesa, quer pelo conjunto notável e vastíssimo de autores que conseguiram congregar para este projecto, quer – e é isso que importa agora – pelo livro em causa.

 

Um reconhecimento que, como é natural, estendo ao Rui Tavares, que, além de trabalhos notáveis sobre o terramoto e Pombal, ainda há pouco coordenou uma originalíssima História de Portugal, a que tive o gosto de me associar. 

 

          Trata-se, além do mais, de um convite a que não podia, nem queria eximir-me, pois, por razões pessoais imperiosas, não pude aceder positivamente a um convite para apresentar o resultado de outro projecto de grande fôlego de José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, as Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, em 30 volumes.

 

          Em boa verdade, e sem querer forçar a nota do elogio fácil, o livro hoje apresentado é também, ele próprio, uma «obra pioneira», que estou certo daqui a uns anos ombreará com os tratados antigos e os textos primevos que Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco localizaram, recensearam e deram à estampa.

 

          Mas, antes de falar do livro, permitam-me umas breves palavras sobre os seus autores ou. melhor dizendo, sobre os seus directores, pois, além deles, a obra conta, para cada uma das épocas referenciadas, com coordenadores de excelência: João Luís Cardoso, Carlos Fabião, Bernardo Vasconcelos e Sousa, Cátia Antunes e António Costa Pinto, a quem saúdo muito calorosamente.

 

          É importante falar das personalidades de Carlos Fiolhais e de José Eduardo Franco, meus amigos de muitos e muitos anos (e José Pedro Paiva que me desculpe este meu aparte sentimental), mas, dizia, é importante falar daquelas personalidades porque, apesar de esta obra ter dezenas autores, que escreveram 93 textos, o livro é, paradoxalmente ou talvez não, profundamente «autoral», no sentido em que ostenta a marca patente das personalidades que o imaginaram e o dirigiram.

 

          Poucas figuras da nossa ciência e da nossa cultura – atrevo-me a dizer, nenhumas – têm o dinamismo imparável de Carlos Fiolhais e de José Eduardo Franco. Só um deles seria já um motor em explosão contínua, capaz de impulsionar o mais ambicioso dos projectos. Os dois juntos, a laborar em sintonia, é algo que corre o risco de se tornar um perigo público, tal a capacidade de realização que alcançam. 

 

          Há, em ambos, uma admirável e contagiosa insanidade, se me permitem, e para esse vórtice conseguiram arrastar, sem remissão possível, uma das mais audaciosas e argutas editoras portuguesas, a minha estimada amiga Guilhermina Gomes, que não tem hesitado em abraçar, apadrinhar ou amadrinhar projectos que, não diria megalómanos, mas que se aproximam das epopeias bíblicas dos tempos dourados de Hollywood. Recorde-se que, além dos 30 volumes das Obras Pioneiras, José Eduardo Franco já tinha coordenado, com Pedro Calafate, o projecto «Vieira Global», que em 2013-2014 gerou mais 30 volumes, a Obra Completa do Padre António Vieira (isto para não falar, claro está, da Obra Completa do Padre Manuel Antunes, editada pela Gulbenkian, da Obra Completa do Marquês de Pombal, do Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, ou do esmagador, literalmente esmagador, Portugal Católico)

 

          Além de uma editora experiente, mas que mantém uma assombrosa e juvenilíssima capacidade de se apaixonar por projectos desta envergadura, Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco têm uma extraordinária capacidade de mobilização de instituições e de equipas de investigação. Não é frequente ver associadas numa só obra tantas e tão diversas instituições científicas nacionais, bem como apoios tão significativos.

 

          Isso só é possível, obviamente, pelo prestígio dos autores mas, tão ou mais importante do que esse incontestável prestígio, por uma capacidade mais rara, que é, e perdoem-me o jargão quase futebolístico, a capacidade de concretização. Num país em que tantas e tão belas ideias nunca passam disso mesmo, Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco apresentam resultados concretos e palpáveis, em formato papel, que podemos criticar ou questionar mas que existem, são reais, passaram à prática.

 

          Há qualquer coisa de «empresarial» em tudo isto, no sentido mais positivo do termo, no sentido em que Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco são grandes e infatigáveis empreendedores culturais, porventura os maiores do país. 

 

          Não sei ao certo quando começaram a trabalhar em conjunto, creio que em 2015, no âmbito das Obras Pioneiras, e, logo a seguir, em 2016, no livro Jesuítas, Construtores da Globalização, uma edição dos CTT.

 

          Mas sei que, uma vez formado este dueto, ele tem mostrado as suas virtualidades de forma exemplar. Desde logo, porque a formação académica e o percurso de ambos, sendo diversos, procuram superar a divergência entre as «duas culturas» que C. P. Snow detectou num texto de 1959, hoje convertido em clássico.

 

          Na verdade, para quem observe a presença de Carlos Fiolhais na esfera pública portuguesa, uma presença de muitas décadas, não é difícil perceber que, além do seu conhecimento científico e além de ser um dos nossos maiores comunicadores de ciência, se não o maior, o Carlos tem uma enciclopédica cultura humanística e literária, uma avidez de saber e uma curiosidade intelectual que vai muito para além do seu campo de especialização. Basta ver as recomendações de livros que ele, um homem dos livros e da cultura do papel, faz todos os anos, pelo natal ou por alturas do Verão.

 

          Assim, e talvez mais do que procurar à outrance conferir um estatuto «científico» as humanidades, tentando que estas mimetizem e emulem o paradigma das ciências ditas «puras», o que sempre implicará que as humanidades tenham sempre um estatuto precário ou subalterno, de ciências «não puras», para não dizer «impuras», mais do que forçar uma analogia porventura artificiosa e artificial, é mais frutuoso – como o exemplo destes dois intelectuais tão bem demonstra – assumir a diferença de perspectivas e de orientações mas dialogar e unir esforços em torno de objectivos comuns.

 

Os mais desprevenidos talvez não estivessem à espera de ver Carlos Fiolhais sair daquilo a que agora se chama a sua «zona de conforto» para se aventurar nos caminhos da História – e, ademais, nos exigentes caminhos da História Global –, mas quem conhece a cultura humanística do Carlos e o seu apreço pela História não ficará surpreendido. Para mais, e como os leitores facilmente concluirão, há muito de História da Ciência, da ciência «pura», na História Global. Atrevo-me mesmo a dizer que a História de Portugal só pôde ser global – ou, talvez mais correctamente, só adquiriu um sentido global pleno graças à ciência e às descobertas científicas, e à tecnologia daí resultante.  

  

          Além da convergência entre ciência e cultura, ou se quisermos entre ciência e humanidades, ambas unidas num todo mais vasto a que chamaremos «cultura», Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco partilham – e essa é a sua maior qualidade – um sentido de urgência que, sendo raro entre nós, constitui a chave de todas as grandes realizações.

 

          Sei bem que por vezes não é fácil acompanhar a cadência febril e o ritmo trepidante desse sentido de urgência e que, sendo ambos pessoas infatigáveis, o mesmo não se dirá dos que com eles convivem de perto. Confesso que por algumas vezes fiquei esmagado, arrasado, com o entusiasmo torrencial com que o Carlos e o José Eduardo me convocaram para os seus projectos.

 

          Esse entusiasmo e esse sentido de urgência compreendem-se se pensarmos nas lacunas tremendas do panorama bibliográfico nacional, se pensarmos que chegámos ao século XXI sem uma edição moderna e actualizada das Obras Completas de Vieira ou do marquês de Pombal, que faltam obras de referência e consulta, como dicionários e enciclopédias, tão imprescindíveis na era digital como no passado, se pensarmos que os investigadores, por pressão de carreira em tempos de precariado e de Bolonha, de falsa «internacionalização», se encontram cada vez mais concentrados em áreas de interesse muito circunscritas e delimitadas.

 

          É isso que explica o sentido de urgência que constitui o perfil destes dois académicos, a que se associa outra qualidade, igualmente rara: a coragem de ousar obras de grande fôlego, exaustivas e esgotantes, que, uma vez publicadas, passam a constituir uma referência – uma referência incontornável, como agora se diz – não apenas para o público universitário mas para o comum dos cidadãos.

 

          Por tudo isto, e pela amizade de muitos anos, muito obrigado a ambos.

 




          Falemos agora do livro, que, como disse, é, também ele, uma obra pioneira.

 

          Não faltaram até hoje histórias universais, histórias mundiais e até histórias comparadas, uma das quais publicada há anos pelo Círculo de Leitores, sob direcção de António Simões Rodrigues.  

 

          Mas esta é, creio eu, e julgo não estar enganado, a primeira tentativa de realizar entre nós um ensaio de «história global», numa linha que tem sido aprofundada nos últimos anos, sobretudo no universo anglo-saxónico.

 

          As premissas da World History ou da Global History – romper com uma visão eurocêntrica ou ocidentalista do passado e com uma concepção nacionalista da História – não são propriamente novas. Talvez os mais velhos se recordem, e eu recordo porque a tinha nas estantes de casa dos meus mais, a monumental Histoire de l’Humanité, lançada logo no imediato pós-guerra, sob a égide de Julien Huxley, segundo um espírito universalista, pacifista e humanista, e que, tendo sido imaginada julgo que logo por volta de 1945 ou 1946, veria a luz pela primeira vez seis volumes, saídos em 1969.

 

Sempre tive uma enorme dificuldade em consultar e utilizar essa obra, cuja organização interna me parecia confusa e caótica, o que resultava não de falha dos historiadores da UNESCO mas de um defeito meu, decorrente da formação, ou deformação, nacionalista dos programas de História, que fazia com que eu perdesse por completo as balizas e as referências quando tentava, em vão, percorrer os índices da Histoire de l’Humanité em busca de informações sobre este ou aquele tópico específico.

 

A preocupação com o universalismo historiográfico não é, de facto, uma originalidade da história global dos nossos dias. Muitas obras do passado, sobretudo as chamadas «histórias universais» em vários volumes, profusamente ilustradas, de finais do século XIX e princípios do século XX, de forte inspiração positivista, procuravam, a seu modo, colocar em perspectiva as diferentes histórias nacionais, ainda que o resultado final fosse, quase sempre, o da mera justaposição entre elas, em capítulos sucessivos, sem que se procurassem estabelecer pontos de contacto entre os trajectos de cada uma das nações, excepção feita aos casamentos entre casas reais e fenómenos similares.

 

Além do mais, e como se recordam, mesmo nas histórias publicadas até quase ao final do século passado, aos anos 1970 ou 1980, a América do Sul, a Ásia e a África eram geralmente relegadas para volumes finais e complementares, não passando de uma pincelada exótica com carácter acessório. Faltava, flagrantemente, uma visão integrada capaz de nos fazer perceber, desde logo, uma coisa simples: os povos existentes nessas partes do globo tinham e têm uma História, pois não podiam deixar de a ter, quanto mais não seja pelo decurso do tempo, pelo mero correr dos anos e dos séculos.

 

Ao invés, a sensação que foi imprimida no nosso espírito era a de que, por exemplo, o Egipto vivera um tempo áureo no período dos faraós e depois desaparecera, mergulhando nas trevas, para reemergir e servir de palco e cenário à célebre expedição de Bonaparte. Não sei se também têm a mesma sensação do que eu, mas a noção que tenho, por mais que a tente combater, é que não existiu nada, não se passou nada, no Egipto ou na Grécia entre a Antiguidade e o século XIX.

 

E o mesmo se dirá de Portugal para quem o observe de outro ponto do planeta. Após os Descobrimentos, o país ter-se afundado numa «austera, apagada e vil tristeza», como diz o Canto X dos Lusíadas ou, se preferirmos o registo de Miguel Esteves Cardoso, «no concerto das nações passou a ocupar o lugar do zé-pereira».

 

As nações ou os povos têm diversos protagonismos ao longo da História, que mesmo uma visão universalista ou igualitarista não pode apagar, isto é, em dados períodos históricos, e penso que isso é indesmentível e objecto, a nação A ou a nação B têm um protagonismo global, planetário, que a nação C ou D não têm. E o mais espantoso é que, mesmo nos nossos dias, em que a informação circula em segundos à escala planetária, continuamos a alimentar-nos de visões ou preconceitos (no nosso caso, eurocêntricos), que nos fazem perder de vista a saliência do protagonismo de regiões do globo que teimamos em ignorar. Se lerem, por exemplo, o livro As Novas Rotas da Seda, de Peter Frankopan, perceberão que a zona das antigas repúblicas soviéticas do Turquemenistão, do Uzbequistão, do Tajiquistão, do Quirguistão tem actualmente uma pujança económica e uma vitalidade desenvolvimentista que deixam a Europa a léguas (Europa em que, como refere Peter Frankopan, todos os grandes clubes históricos de futebol, sem excepção, já não pertencem a europeus).         

 

É a isto que conduz a deformação nacionalista ou eurocêntrica, não apenas a um preconceito xenófobo mas à ignorância do que ocorre noutras partes do globo e que, para o todo global, tem muito mais relevância do que se passa no espaço que é o nosso. A explosão demográfica em curso na Nigéria, já o país mais populoso de África, que segundo a ONU atingirá os 289 milhões de habitantes em 2050, é algo que terá efeitos colossais na Europa, pelo que implicará de pressão sobre as fronteiras a sul, além, claro está, de riscos geopolíticos enormes. As estimativas norte-americanas apontam, aliás, para números muito mais colossais, com 356 milhões de habitantes em 2050 e 602 milhões em 2100, ultrapassando os EUA como terceiro país mais populoso do mundo.  Quer dizer, o eurocentrismo faz-nos ignorar que às portas da Europa está a crescer o terceiro país mais populoso do mundo, com mais de 500 grupos étnicos, uma divisão profunda entre cristãos e muçulmanos, o flagelo do Boko Haram, etc. Alguns grandes historiadores, como Adam Tooze, têm chamado a atenção para este fenómeno, mas as opiniões públicas e os decisores políticos permanecem na ignorância e no alheamento completos, bastando perguntar que notícias ou artigos têm surgido nos jornais sobre a expansão demográfica e económica da Nigéria – e que efeitos isso terá para o mundo e, em particular, para a União Europeia. Efeitos a breve trecho, 356 milhões de habitantes em 2050.

 

Creio que isto basta para alcançarmos a importância não só de um maior conhecimento da actualidade internacional mas também, ou sobretudo, do pretérito do mundo.

 

Para que tal tenha ocorrido no nosso tempo, a ponto de a história global ser hoje quase uma «moda» intelectual ou historiográfica, houve causas remotas, outras mais próximas.

 

No plano mais remoto, e sem falar em fenómenos políticos como o fim dos impérios coloniais e as vagas descolonizadoras, isto é, cingindo-me a aspectos mais estritamente historiográficos, julgo que o enfoque na longue durée, para usar os termos da Escola dos Annales, e, a par dele, a valorização da história económica e da importância da civilização material vieram trazer uma nova perspectiva sobre as dinâmicas internacionais da História, doravante situadas em termos mais amplas do que as dos casamentos régios ou de trocas de princesas.

 

Se este é, digamos assim, o antecedente mais longínquo da nova história global, a sua genealogia mais próxima haverá de buscar-se, forçosamente, na ruptura com a historiografia ordenada à glorificação nacional.

 

Ainda assim, e algo paradoxalmente, a nova História global, de que este livro é exemplo, e um bom exemplo, surge numa altura em que se assiste a uma revalorização da História política, ainda que com um enfoque distinto da historiografia positivista e nacionalista do século XIX.

 

Por outro lado, a História Global surge também na confluência daquilo a que eu chamaria as «grandes sínteses» historiográficas mais recentes, em relativa sintonia, nem sempre consciente, mas evidente, com o que Quentin Skinner chamou o «regresso da grande teoria nas ciências humanas». Falo de obras que procuram, de certo modo, romper com a linha da «micro-história» de tendência pós-moderna e que não teme elaborar o que, como disse, se poderiam chamar «grandes sínteses» ou «grandes narrativas», em volumes de muitas páginas, orientados para o «grande público», e com uma clara vocação não-académica. Isso ocorre no domínio das grandes biografias, hoje muito em voga, mas também nas visões panorâmicas que encontramos, por exemplo, nos trabalhos de Felipe Férnandez-Armesto, com destaque para Milénio. A História dos últimos 1000 Anos, de 1995, de Jared Diamond, de Simon Schama ou de Niall Ferguson (em especial com Civilization: The West and the Rest, de 2011) , apenas para citar alguns nomes. Aliás, e para não julgarmos que tudo isto não passa de uma moda efémera, como a da «história virtual» lançada há uns anos, devemos ter presente que já um Braudel, no seu estudo sobre o Mediterrâneo de Filipe II, ou Vitorino Magalhães Godinho, com  noção de «complexo histórico-geográfico», citada na introdução a este livro, tiveram a intuição clara da necessidade  de ultrapassar as fronteiras limitadas e estreitas dos Estados-nação para a compreensão correcta de fenómenos históricos mais vastos e interdependentes.     

 

 

De igual modo, a História global, que tem já uma teorização (recomendo a obra de Sebastian Conrad, O Que é a História global?, citado na introdução deste livro) e que reclama foros de autonomia académica, com associações e revistas especializadas, surge também numa altura em que se assiste a uma quase hegemonia dos estudos pós-coloniais, com os quais não entra em declarada ruptura, mas constitui, até certo ponto, uma tentativa de resposta.

 

Na verdade, enquanto os estudos pós-coloniais implicam, ou podem implicar, uma revisitação cruciante e dolorosa do passado de cada Estado-nação, a História global é, ao invés, tendencialmente optimista, se quisermos, pois conduz a uma valorização de aspectos universalistas e dialógicos desse passado.

 

Tentando explicar melhor, a História global é a via que permite às narrativas historiográficas de cada povo eximir-se, na medida do possível, àquilo a que já chamaram o «remorso do homem branco» ou a «repentance coloniale», para citar os títulos de dois famosos e controversos livros de Pascal Bruckner e de Daniel Lefeuvre, respectivamente.

 

Entendamos: o discurso da História global não equivale à velha retórica da «mission civilisatrice» do Ocidente nem se confunde com um registo que, entre nós, assumiu as vestes do luso-tropicalismo (sendo, já agora, o luso-tropicalismo e a obra de Gilberto Freyre muito mais complexos e subtis do que aquilo que frequentemente se pretende fazer crer).

 

Por conseguinte, e para evitar que a partir daqui surja mais uma escusada e estéril controvérsia ideológica, o que pretendo discutir é, tão-só, indagar até que ponto a insistência em tópicos como «universalismo» ou «diálogo de culturas» não constituem uma tentativa de prolongamento de um paradigma historiográfico ainda tributário do nacionalismo, ou seja, se não serão formas de perpetuação, sob vestes mais aggiornatas, é certo, de um modelo de fazer a História orientado para a exaltação da grandeza de uma nação. Se no passado essa glorificação se baseava nas armas e nas conquistas, agora assume formais mais edulcoradas e simpáticas, as do diálogo e do universalismo, mas nem por isso menos artificiosas.

 

É que, na verdade, quando os Portugueses contactavam outros povos, nos tempos das Descobertas – ou, se preferirem, da Expansão – não o faziam em nome do «diálogo» ou para projecção do «universalismo», faziam-no para domínio territorial ou geopolítico, para trocas comerciais e para difusão da sua fé através de meios que eram tudo menos tolerantes.

 

Mas entendamo-nos também: foram exactamente essas razões, não as do «diálogo» ou as do «universalismo», que marcaram a relação de todos os outros povos. A intolerância não é um exclusivo do Ocidente nem do hemisfério norte.

 

O que pode dizer-se, quando muito, é que, em resultado de uma empresa de dominação, resultou, como necessariamente teria de resultar, a criação de espaços de diálogo intercultural, por vezes ou quase sempre em situações assimétricas de poder, ou seja, longe daquilo a que pensadores como Habermas ou Apel chamam «as condições ideais de diálogo».

 

É neste contexto que devemos saudar o programa historiográfico desta obra, que não obscurece a violência intrínseca de muitos relacionamentos interculturais mas também não fica refém de uma retórica culpabilizadora e, pior ainda, unilateralmente culpabilizadora.

 

Basta atentar na breve nota constante da contracapa para atentarmos na preocupação de equilíbrio – um equilíbrio difícil, diga-se – que os coordenadores procuraram alcançar.

 

Fizeram-no, aliás, por outra via, igualmente conseguida: com apoio em cinco coordenadores para cada período histórico, reuniram uma enorme diversidade de contribuições – e esse pluralismo confere á obra, sem perda de coerência, um carácter polifónico que a resgata, por completo, do risco de ser apropriada por uma visão historiográfica em detrimento da outra.

 

É claro que, porventura em jeito de provocação, sempre nos poderemos interrogar em que medida falar de uma História Global de Portugal não é uma contradição nos termos, no sentido em que História verdadeiramente global só há uma, a do planeta como um todo, e que, a partir do momento em que o referente é o Estado-nação – neste caso, o Estado-nação português – teremos, quando muito, uma História de Portugal do Mundo (ou do Mundo em Portugal), mas não uma verdadeira e própria História global de Portugal.

 

A questão não é meramente semântica. Uma História global autêntica é aquela em que, para cada período em análise, se convocam tudo quanto está sucedendo no mundo nesse período ou, mais precisamente, todas as interacções e dinâmicas presentes e em movimento numa dada baliza temporal. Veja-se, a este propósito, aquela que é, porventura, o paradigma da world history, o livro de Christopher Bayly, The Birth of the Modern World: Global Connections and Comparisons, de 2004.  Assim, por exemplo, o estudo do advento das ditaduras na Europa, nos anos 20 e 30 do século passado, exige uma contextualização mais ampla que atente, por exemplo, no que vinha sucedendo na América do Norte pós-crise de 1929, inclusivamente do ponto de vista da emergência de pulsões autoritárias e de atracções perigosas perante o nazismo, mas também no Japão, na América do Sul.

 

Doutra forma, se nos ativermos a estudar o influxo dos autoritarismos em Portugal ou a projecção do salazarismo no estrangeiro, estaremos a proceder a uma narrativa sobre «o mundo em Portugal» ou «Portugal no mundo», mas não a uma análise verdadeiramente global e sincrónica do autoritarismo planetário da época.

 

Além do mais, e penso que isto também merece discussão e debate, é extremamente difícil erigir o «global» como padrão uniforme, como escala e métrica de toda uma evolução histórica de um país ou de um povo – ou até, talvez melhor, de um dado espaço geográfico, antes de ser sequer um país e de constituir-se em povo.     

  

Ou seja, nos vários séculos da nossa História terá havido períodos mais «globais» do que outros, épocas de plena inserção no mundo, com o tempo da Expansão à cabeça, e outros em que o «globalismo», por assim dizer, foi quase nulo ou inexistente.

 

Dirão que, de uma forma ou doutra, e apesar da nossa condição periférica, o exterior, o estrangeiro esteve sempre presente entre nós, seja sob a forma de cruzados ou de estilos arquitectónicos, de muçulmanos e outros povos invasores, de doutrinas políticas e económicas provindas de universidades estrangeiras, de peregrinações intelectuais, espirituais e existenciais de estrangeiros em Portugal e de portugueses no estrangeiro.

 

Tudo isso é certo e insofismável, mas nada disso comprova que o «global» tenha estado presente da mesma forma em todos os períodos da nossa História. Por certo, o nível de globalização dos nossos dias, a todos os níveis, é infinitamente superior ao da Idade Média ou mesmo do tempo dos Descobrimentos.

 

As coisas complicam-se, todavia, se pensarmos que, apesar de hoje sermos mais globais do que outrora, o nosso protagonismo global é mais diminuto do que na época das Descobertas, sobretudo nela.

 

Quer dizer, passámos de actores da globalização para seus espectadores – e isso, necessariamente, haverá de ter o seu impacto na configuração da nossa História global.

 

Mais ainda, não só o nível quantitativo como o perfil qualitativo da globalização não foi uniforme ao longo do tempo. Assim, e por muito que insistiam que Portugal foi «pioneiro da globalização» ou que Lisboa era uma «metrópole global» no tempo da Expansão, tudo isso será verdade, o que não é verdade é que a globalização de há 500 anos seja a mesma dos nossos dias.

 

Por isso, o risco de anacronismo é muito grande se julgar que a globalização foi a mesma ao longo do tempo, só variando, quando muito, de ritmo e intensidade. O que a globalização contemporânea demonstra é que ela não é só mais intensa e profunda do que a do passado, é mais do que isso, tem uma natureza diversa e é intrínseca e qualitativamente diferente.

 

Talvez o que a caracterize, acima de tudo, e só assim adquire interesse como conceito operativo, é o facto de se impor e sobrepor à vontade dos Estados-nação. Como disse, só assim é que faz sentido falar de um fenómeno global, que não meramente internacional.

 

As alterações climáticas ou a actual pandemia (já agora, uma e outra estão muito mais ligadas do que julgamos) são fenómenos intrinsecamente globais, pois afectam inescapavelmente todos os Estados, independentemente da sua vontade soberana.

 

Já a pertença à União Europeia pode implicar, no limite, a perda parcial de soberania ou até, num avanço mais ousado, rumo ao federalismo, a perda total dessa soberania na ordem externa. Mas, por enquanto, e como o Brexit o demonstra, um Estado-nação pode deixar de pertencer à União Europeia.

 

A liberalização mundial do comércio pode ter surgido de uma decisão multilateral de vários Estados soberanos – e é curioso notar, ponto nem sempre recordado, que a China foi aceite na Organização Mundial de Comércio  em 17 de Setembro de 2001, poucos dias depois dos atentados de Nova Iorque – a liberalização mundial de comércio pode ter surgido de uma decisão soberana, mas, uma vez posta em marcha, adquiriu uma dinâmica própria, uma dinâmica verdadeiramente global, que transcende a vontade dos diversos Estados. Qualquer Estado, por mais poderoso que seja, pode decretar unilateralmente a saída da actual globalização, já que esta comporta inúmeras facetas, não meramente económicas (por exemplo, a globalização da circulação da informação, por meios digitais). Assim, um Estado até pode, no limite, fechar as fronteiras ao comércio externo e impor um proteccionismo extremo, mas isso não o porá a salvo da globalização.

 

Creio ser esse, de facto, o sentido útil deste conceito, aquilo que distingue uma realidade global de uma realidade internacional, ainda dependente da vontade soberana dos Estados-nação.

 

Como se vê – e desculpem o tempo que vos estou a tomar – pôr de pé uma obra como esta História Global de Portugal é um empreendimento difícil, pois:

 

1º - há, desde logo, o risco de o «global» ser utilizado como enaltecimento espúrio de uma narrativa ou de uma mitologia nacionais, forçando a nota de que era «global» antes de o ser ou sustentando-se que um dado país, como Portugal, tinha um programa «universalista» e de «diálogo», quando isso não resultou de uma orientação deliberada das elites que nos conduziram para a Expansão;

 

2º - há também o risco de se tomar por «global» realidades que são de outra natureza, revestindo-se de um carácter internacional mas não necessariamente global. O movimento abolicionista da pena de morte pode ter-se estendido por vários países e adquiriu sem dúvida um carácter internacional, mas não tem uma dinâmica transnacional ou verdadeiramente planetária: o Brasil ainda tem pena de morte, há 74 Estados que ainda a prevêem e mesmo países como o Reino Unido ou França só a aboliram numa fase muito tardia, que pouco teve a ver com o abolicionismo oitocentista.

 

3º - em terceiro lugar, há o risco de pensarmos a globalização como um fenómeno estático e uniforme ao longo do tempo, quando, na realidade, ela sofreu mutações profundas, sobretudo por influxo nas mutações da tecnologia que lhe serve de suporte;

 

4º - em quarto lugar, há o risco de pensarmos que a posição de cada Estado ou espaço geopolítico foi, em face da globalização, ou das várias globalizações, também ela estática e uniforme ao longo do tempo. O que a História demonstra, a História de Portugal e a História Global ou até, se preferirmos, a História Global de Portugal, o que essa História Global de Portugal demonstra é que o nosso posicionamento e o nosso estatuto em face das dinâmicas globais mudaram extraordinariamente ao longo do tempo, como mudou, ou está a mudar, o estatuto do espaço em que nos inserimos.

 

5º - em quinto e último lugar, e aquilo que talvez seja o ponto decisivo, que é o de saber em que medida a História foi, ela própria, global, ou, se quisermos, se o mundo não será global apenas no nosso tempo. Dirão que a porventura inexplicável presença de arte rupestre em vários pontos distantes do planeta demonstra a existência, já em tempos pré-históricos, de uma qualquer escala de globalização. Mas o certo é que, em vários períodos da História, quase todos até ao século XX e ao século XXI, uma parte do mundo ignorou largamente a outra, e vice-versa, e os povos puderam desenvolver-se autonomamente sem que soubessem sequer que outros como eles habitavam o planeta-mundo. O que se passava em Portugal no século XIII ou XIV era absolutamente irrelevante para um japonês ou um australiano dessa época, pouco ou nada afectando a sua vida.

 

Assim, se o pretendermos aplicar ao passado, ao passado anterior ao século XX e sobretudo ao século XXI, o conceito de «global» tem de ter um alcance diferente: para o Portugal ou para os Portugueses da Idade Média ou do tempo das Descobertas, «global» era aquilo que correspondia ao mundo então conhecido, ou seja, o conceito de «global» corresponde a um espaço que nasce da perspectiva de quem o observa, não é algo objectivo e universalmente partilhado. Basta atentar nas diferentes representações cartográficas do mundo, do Ocidente, de um lado, ou do Oriente, do outro, ou basta pensarmos como seria o mundo para um africano do século XV ou para um aborígene australiano do século XVI para concluirmos que a percepção do que era «global», do que era o mundo e o universo conhecido, variava enormemente. Ora, julgarmos que o «mundo» do século XVI era o mundo que nós, portugueses ou europeus, conhecíamos, é um erro de perspectiva tão grande como julgar que o planisfério tem necessariamente por centro a Europa. O mundo, na História dos homens, não é objectivo ou naturalizado, é uma construção ou uma ideia que resulta da percepção de cada qual, decorrente dos seus conhecimentos e capacidades científicas mas também das suas superstições e sistemas de crenças.

 

Dizer que o espaço em que os Portugueses se moviam no século XVI era o «mundo», significa, uma vez mais, resvalar num defeito de visão, num preconceito eurocêntrico. A Europa e África, o Brasil e a Índia, a China, até o Japão, poderiam ser o «mundo» dos portugueses e dos europeus, mas não era o «mundo», o «global», dos africanos ou dos indianos, dos chineses ou dos japoneses.

 

Portanto, fazer uma História global de Portugal não é, de modo algum, uma contradição nos seus termos. Pelo contrário, essa é a única forma que temos de projectar no passado o conceito de «global», isto é, não um conceito unívoco mas plural e diverso de acordo com o ponto de vista do observador: global, no século XVI de Portugal, era o modo como Portugal percepcionava e apreendia o mundo por si conhecido ou intuído e suspeitado. A perspectiva é sempre, e tem de ser sempre, a do horizonte de quem observa. Por isso, quando os cultores da História global afirmam querer desnacionalizar ou des-territorializar a historiografia, creio que estão a colocar mal o problema, pois o ponto de vista ou o horizonte de referência do global é sempre (ou ainda é sempre) o nacional ou o territorial, não pode prescindir dessa ancoragem.  

 

É certo que o horizonte se alargou enormemente nos nossos dias, fazendo com que o conceito de «mundo» seja hoje muito mais global, universal ou mundial do que outrora. Fazendo com que o «mundo», para um africano, seja o mesmo ou praticamente o mesmo do que o «mundo» para um europeu. Mas não foi assim no passado e, se quisermos evitar o anacronismo, temos de compreender isso.  

 

Pois bem, em face de todas estas dificuldades, o que se pode dizer, numa apreciação geral, ou global, é que os contributos que integram este volume souberam cumprir exemplarmente estas premissas. Em quase 100 textos de autores diversos, há naturalmente uns que, melhor do que outros, conseguem evitar resvalar no anacronismo ou no eurocentrismo. O produto final é, sem dúvida, de elevadíssima qualidade e não vou cometer a descortesia de salientar um texto em detrimento do outro, ou sequer uma parte do livro em desfavor das demais. Mas, dada a minha inclinação pela História Contemporânea, permitam-me que saúde de forma especial a qualidade dos textos constantes dessa última parte do livro.

 

Termino com uma nota pessoal, talvez escusada. Estive há poucos dias em Delfos, a que os antigos chamavam, e ao seu oráculo, o «umbigo do mundo». Agora, nos guias turísticos, conhecida como «umbigo do mundo grego» ou «umbigo do mundo grego antigo», ou seja, passou a ter um alcance espacial e temporal mais limitado. Ainda assim, quem percorre as ruínas de Delfos, é assaltado por um sentimento misto de distância e lonjura e, ao mesmo tempo, de proximidade e de familiaridade. É algo que está já muito distante de nós, mas que ainda sentimos nosso, por razões imaginadas, sem dúvida, mas nem por isso menos autênticas.

 

Creio que é justamente isso que também sentimos perante a História e o passado, o «estranho lugar» ou foreign country de que falava Hartley.

 

O que a leitura deste livro nos traz é justamente essa sensação de proximidade e distância – a prova provada de que estamos perante um grande e notável livro de História.

 

Muito obrigado.      

 

 


  

 

             

    

 

 

 

  

     

 

  

 

 

 

 

 

  

 

 

 

 

 

  

 

 

 

6 comentários:


  1. Com um texto de apresentação destes, dá uma vontade danada de comprar o livro.
    Onésimo

    ResponderEliminar
  2. O On+esimo: eu se nao o tivesse já ia comprá-lo!
    Pbrigado ao António Araújo.
    Abraços
    Carlos Fiolhais

    ResponderEliminar
  3. Abraço a ambos, caros amigos

    António

    ResponderEliminar
  4. LOTTO, lottery,jackpot.
    Hello all my viewers, I am very happy for sharing this great testimonies,The best thing that has ever happened in my life is how I win the lottery euro million mega jackpot. I am a Woman who believe that one day I will win the lottery. finally my dreams came through when I email believelovespelltemple@gmail.com and tell him I need the lottery numbers. I have spend so much money on ticket just to make sure I win. But I never know that winning was so easy until the day I meant the spell caster online which so many people has talked about that he is very great in casting lottery spell, . so I decide to give it a try.I contacted this great Dr Believe and he did a spell and he gave me the winning lottery numbers. But believe me when the draws were out I was among winners. I win 30,000 million Dollar. Dr Believe truly you are the best, all thanks to you forever


    ResponderEliminar