Apresentação de História Global de Portugal
Antes
de mais, e naturalmente, queria agradecer o convite feito para apresentar este
livro aos meus caros amigos Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco, que em
conjunto com José Pedro Paiva, dirigiram esta obra.
Trata-se de um convite extremamente
honroso, e digo-o com sinceridade, quer pelas personalidades que o formularam,
sobejamente conhecidas da vida pública e cultural portuguesa, quer pelo
conjunto notável e vastíssimo de autores que conseguiram congregar para este
projecto, quer – e é isso que importa agora – pelo livro em causa.
Um
reconhecimento que, como é natural, estendo ao Rui Tavares, que, além de
trabalhos notáveis sobre o terramoto e Pombal, ainda há pouco coordenou uma
originalíssima História de Portugal, a que tive o gosto de me associar.
Trata-se, além do mais, de um convite
a que não podia, nem queria eximir-me, pois, por razões pessoais imperiosas,
não pude aceder positivamente a um convite para apresentar o resultado de outro
projecto de grande fôlego de José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, as Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa,
em 30 volumes.
Em boa verdade, e sem querer forçar a
nota do elogio fácil, o livro hoje apresentado é também, ele próprio, uma «obra
pioneira», que estou certo daqui a uns anos ombreará com os tratados antigos e
os textos primevos que Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco localizaram,
recensearam e deram à estampa.
Mas, antes de falar do livro,
permitam-me umas breves palavras sobre os seus autores ou. melhor dizendo,
sobre os seus directores, pois, além deles, a obra conta, para cada uma das
épocas referenciadas, com coordenadores de excelência: João Luís Cardoso,
Carlos Fabião, Bernardo Vasconcelos e Sousa, Cátia Antunes e António Costa
Pinto, a quem saúdo muito calorosamente.
É importante falar das personalidades
de Carlos Fiolhais e de José Eduardo Franco, meus amigos de muitos e muitos
anos (e José Pedro Paiva que me desculpe este meu aparte sentimental), mas,
dizia, é importante falar daquelas personalidades porque, apesar de esta obra
ter dezenas autores, que escreveram 93 textos, o livro é, paradoxalmente ou
talvez não, profundamente «autoral», no sentido em que ostenta a marca patente
das personalidades que o imaginaram e o dirigiram.
Poucas figuras da nossa ciência e da
nossa cultura – atrevo-me a dizer, nenhumas – têm o dinamismo imparável de
Carlos Fiolhais e de José Eduardo Franco. Só um deles seria já um motor em
explosão contínua, capaz de impulsionar o mais ambicioso dos projectos. Os dois
juntos, a laborar em sintonia, é algo que corre o risco de se tornar um perigo
público, tal a capacidade de realização que alcançam.
Há, em ambos, uma admirável e
contagiosa insanidade, se me permitem, e para esse vórtice conseguiram arrastar,
sem remissão possível, uma das mais audaciosas e argutas editoras portuguesas,
a minha estimada amiga Guilhermina Gomes, que não tem hesitado em abraçar,
apadrinhar ou amadrinhar projectos que, não diria megalómanos, mas que se
aproximam das epopeias bíblicas dos tempos dourados de Hollywood. Recorde-se
que, além dos 30 volumes das Obras Pioneiras, José Eduardo Franco já tinha
coordenado, com Pedro Calafate, o projecto «Vieira Global», que em 2013-2014
gerou mais 30 volumes, a Obra Completa do
Padre António Vieira (isto para não falar, claro está, da Obra Completa do Padre Manuel Antunes,
editada pela Gulbenkian, da Obra Completa
do Marquês de Pombal, do Dicionário
Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, ou do esmagador,
literalmente esmagador, Portugal Católico)
Além de uma editora experiente, mas
que mantém uma assombrosa e juvenilíssima capacidade de se apaixonar por projectos
desta envergadura, Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco têm uma extraordinária
capacidade de mobilização de instituições e de equipas de investigação. Não é
frequente ver associadas numa só obra tantas e tão diversas instituições
científicas nacionais, bem como apoios tão significativos.
Isso só é possível, obviamente, pelo
prestígio dos autores mas, tão ou mais importante do que esse incontestável
prestígio, por uma capacidade mais rara, que é, e perdoem-me o jargão quase
futebolístico, a capacidade de concretização. Num país em que tantas e tão
belas ideias nunca passam disso mesmo, Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco
apresentam resultados concretos e palpáveis, em formato papel, que podemos
criticar ou questionar mas que existem, são reais, passaram à prática.
Há qualquer coisa de «empresarial» em
tudo isto, no sentido mais positivo do termo, no sentido em que Carlos Fiolhais
e José Eduardo Franco são grandes e infatigáveis empreendedores culturais,
porventura os maiores do país.
Não sei ao certo quando começaram a
trabalhar em conjunto, creio que em 2015, no âmbito das Obras Pioneiras, e, logo a seguir, em 2016, no livro Jesuítas, Construtores da Globalização,
uma edição dos CTT.
Mas sei que, uma vez formado este
dueto, ele tem mostrado as suas virtualidades de forma exemplar. Desde logo,
porque a formação académica e o percurso de ambos, sendo diversos, procuram
superar a divergência entre as «duas culturas» que C. P. Snow detectou num
texto de 1959, hoje convertido em clássico.
Na verdade, para quem observe a
presença de Carlos Fiolhais na esfera pública portuguesa, uma presença de
muitas décadas, não é difícil perceber que, além do seu conhecimento científico
e além de ser um dos nossos maiores comunicadores de ciência, se não o maior, o
Carlos tem uma enciclopédica cultura humanística e literária, uma avidez de
saber e uma curiosidade intelectual que vai muito para além do seu campo de
especialização. Basta ver as recomendações de livros que ele, um homem dos
livros e da cultura do papel, faz todos os anos, pelo natal ou por alturas do
Verão.
Assim, e talvez mais do que procurar à outrance conferir um estatuto
«científico» as humanidades, tentando que estas mimetizem e emulem o paradigma
das ciências ditas «puras», o que sempre implicará que as humanidades tenham
sempre um estatuto precário ou subalterno, de ciências «não puras», para não
dizer «impuras», mais do que forçar uma analogia porventura artificiosa e
artificial, é mais frutuoso – como o exemplo destes dois intelectuais tão bem
demonstra – assumir a diferença de perspectivas e de orientações mas dialogar e
unir esforços em torno de objectivos comuns.
Os
mais desprevenidos talvez não estivessem à espera de ver Carlos Fiolhais sair
daquilo a que agora se chama a sua «zona de conforto» para se aventurar nos
caminhos da História – e, ademais, nos exigentes caminhos da História Global –,
mas quem conhece a cultura humanística do Carlos e o seu apreço pela História
não ficará surpreendido. Para mais, e como os leitores facilmente concluirão,
há muito de História da Ciência, da ciência «pura», na História Global.
Atrevo-me mesmo a dizer que a História de Portugal só pôde ser global – ou,
talvez mais correctamente, só adquiriu um sentido global pleno graças à ciência
e às descobertas científicas, e à tecnologia daí resultante.
Além da convergência entre ciência e
cultura, ou se quisermos entre ciência e humanidades, ambas unidas num todo
mais vasto a que chamaremos «cultura», Carlos Fiolhais e José Eduardo Franco
partilham – e essa é a sua maior qualidade – um sentido de urgência que, sendo raro entre nós, constitui a chave de
todas as grandes realizações.
Sei bem que por vezes não é fácil
acompanhar a cadência febril e o ritmo trepidante desse sentido de urgência e
que, sendo ambos pessoas infatigáveis, o mesmo não se dirá dos que com eles
convivem de perto. Confesso que por algumas vezes fiquei esmagado, arrasado,
com o entusiasmo torrencial com que o Carlos e o José Eduardo me convocaram
para os seus projectos.
Esse entusiasmo e esse sentido de
urgência compreendem-se se pensarmos nas lacunas tremendas do panorama
bibliográfico nacional, se pensarmos que chegámos ao século XXI sem uma edição
moderna e actualizada das Obras Completas
de Vieira ou do marquês de Pombal, que faltam obras de referência e consulta,
como dicionários e enciclopédias, tão imprescindíveis na era digital como no
passado, se pensarmos que os investigadores, por pressão de carreira em tempos
de precariado e de Bolonha, de falsa «internacionalização», se encontram cada
vez mais concentrados em áreas de interesse muito circunscritas e delimitadas.
É isso que explica o sentido de
urgência que constitui o perfil destes dois académicos, a que se associa outra
qualidade, igualmente rara: a coragem de ousar obras de grande fôlego,
exaustivas e esgotantes, que, uma vez publicadas, passam a constituir uma
referência – uma referência incontornável, como agora se diz – não apenas para
o público universitário mas para o comum dos cidadãos.
Por tudo isto, e pela amizade de
muitos anos, muito obrigado a ambos.
Falemos agora do livro, que, como
disse, é, também ele, uma obra pioneira.
Não faltaram até hoje histórias
universais, histórias mundiais e até histórias comparadas, uma das quais
publicada há anos pelo Círculo de Leitores, sob direcção de António Simões
Rodrigues.
Mas esta é, creio eu, e julgo não
estar enganado, a primeira tentativa de realizar entre nós um ensaio de
«história global», numa linha que tem sido aprofundada nos últimos anos,
sobretudo no universo anglo-saxónico.
As premissas da World History ou da Global History
– romper com uma visão eurocêntrica ou ocidentalista do passado e com uma
concepção nacionalista da História – não são propriamente novas. Talvez os mais
velhos se recordem, e eu recordo porque a tinha nas estantes de casa dos meus
mais, a monumental Histoire de l’Humanité,
lançada logo no imediato pós-guerra, sob a égide de Julien Huxley, segundo um
espírito universalista, pacifista e humanista, e que, tendo sido imaginada
julgo que logo por volta de 1945 ou 1946, veria a luz pela primeira vez seis
volumes, saídos em 1969.
Sempre
tive uma enorme dificuldade em consultar e utilizar essa obra, cuja organização
interna me parecia confusa e caótica, o que resultava não de falha dos
historiadores da UNESCO mas de um defeito meu, decorrente da formação, ou
deformação, nacionalista dos programas de História, que fazia com que eu
perdesse por completo as balizas e as referências quando tentava, em vão,
percorrer os índices da Histoire de
l’Humanité em busca de informações sobre este ou aquele tópico específico.
A
preocupação com o universalismo historiográfico não é, de facto, uma
originalidade da história global dos nossos dias. Muitas obras do passado,
sobretudo as chamadas «histórias universais» em vários volumes, profusamente
ilustradas, de finais do século XIX e princípios do século XX, de forte
inspiração positivista, procuravam, a seu modo, colocar em perspectiva as diferentes
histórias nacionais, ainda que o resultado final fosse, quase sempre, o da mera
justaposição entre elas, em capítulos sucessivos, sem que se procurassem
estabelecer pontos de contacto entre os trajectos de cada uma das nações,
excepção feita aos casamentos entre casas reais e fenómenos similares.
Além
do mais, e como se recordam, mesmo nas histórias publicadas até quase ao final
do século passado, aos anos 1970 ou 1980, a América do Sul, a Ásia e a África
eram geralmente relegadas para volumes finais e complementares, não passando de
uma pincelada exótica com carácter acessório. Faltava, flagrantemente, uma
visão integrada capaz de nos fazer perceber, desde logo, uma coisa simples: os
povos existentes nessas partes do globo tinham e têm uma História, pois não
podiam deixar de a ter, quanto mais não seja pelo decurso do tempo, pelo mero
correr dos anos e dos séculos.
Ao
invés, a sensação que foi imprimida no nosso espírito era a de que, por
exemplo, o Egipto vivera um tempo áureo no período dos faraós e depois
desaparecera, mergulhando nas trevas, para reemergir e servir de palco e
cenário à célebre expedição de Bonaparte. Não sei se também têm a mesma
sensação do que eu, mas a noção que tenho, por mais que a tente combater, é que
não existiu nada, não se passou nada, no Egipto ou na Grécia entre a
Antiguidade e o século XIX.
E
o mesmo se dirá de Portugal para quem o observe de outro ponto do planeta. Após
os Descobrimentos, o país ter-se afundado numa «austera, apagada e vil
tristeza», como diz o Canto X dos Lusíadas ou, se preferirmos o registo de
Miguel Esteves Cardoso, «no concerto das nações passou a ocupar o lugar do
zé-pereira».
As
nações ou os povos têm diversos protagonismos ao longo da História, que mesmo
uma visão universalista ou igualitarista não pode apagar, isto é, em dados
períodos históricos, e penso que isso é indesmentível e objecto, a nação A ou a
nação B têm um protagonismo global, planetário, que a nação C ou D não têm. E o
mais espantoso é que, mesmo nos nossos dias, em que a informação circula em
segundos à escala planetária, continuamos a alimentar-nos de visões ou
preconceitos (no nosso caso, eurocêntricos), que nos fazem perder de vista a
saliência do protagonismo de regiões do globo que teimamos em ignorar. Se
lerem, por exemplo, o livro As Novas
Rotas da Seda, de Peter Frankopan, perceberão que a zona das antigas
repúblicas soviéticas do Turquemenistão, do Uzbequistão, do Tajiquistão, do
Quirguistão tem actualmente uma pujança económica e uma vitalidade
desenvolvimentista que deixam a Europa a léguas (Europa em que, como refere
Peter Frankopan, todos os grandes clubes históricos de futebol, sem excepção,
já não pertencem a europeus).
É
a isto que conduz a deformação nacionalista ou eurocêntrica, não apenas a um preconceito
xenófobo mas à ignorância do que ocorre noutras partes do globo e que, para o
todo global, tem muito mais relevância do que se passa no espaço que é o nosso.
A explosão demográfica em curso na Nigéria, já o país mais populoso de África,
que segundo a ONU atingirá os 289 milhões de habitantes em 2050, é algo que
terá efeitos colossais na Europa, pelo que implicará de pressão sobre as
fronteiras a sul, além, claro está, de riscos geopolíticos enormes. As
estimativas norte-americanas apontam, aliás, para números muito mais colossais,
com 356 milhões de habitantes em 2050 e 602 milhões em 2100, ultrapassando os
EUA como terceiro país mais populoso do mundo.
Quer dizer, o eurocentrismo faz-nos ignorar que às portas da Europa está
a crescer o terceiro país mais populoso do mundo, com mais de 500 grupos
étnicos, uma divisão profunda entre cristãos e muçulmanos, o flagelo do Boko
Haram, etc. Alguns grandes historiadores, como Adam Tooze, têm chamado a
atenção para este fenómeno, mas as opiniões públicas e os decisores políticos
permanecem na ignorância e no alheamento completos, bastando perguntar que
notícias ou artigos têm surgido nos jornais sobre a expansão demográfica e
económica da Nigéria – e que efeitos isso terá para o mundo e, em particular, para
a União Europeia. Efeitos a breve trecho, 356 milhões de habitantes em 2050.
Creio
que isto basta para alcançarmos a importância não só de um maior conhecimento
da actualidade internacional mas também, ou sobretudo, do pretérito do mundo.
Para
que tal tenha ocorrido no nosso tempo, a ponto de a história global ser hoje
quase uma «moda» intelectual ou historiográfica, houve causas remotas, outras
mais próximas.
No
plano mais remoto, e sem falar em fenómenos políticos como o fim dos impérios
coloniais e as vagas descolonizadoras, isto é, cingindo-me a aspectos mais
estritamente historiográficos, julgo que o enfoque na longue durée, para usar os termos da Escola dos Annales, e, a par dele, a valorização da
história económica e da importância da civilização material vieram trazer uma
nova perspectiva sobre as dinâmicas internacionais da História, doravante
situadas em termos mais amplas do que as dos casamentos régios ou de trocas de
princesas.
Se
este é, digamos assim, o antecedente mais longínquo da nova história global, a
sua genealogia mais próxima haverá de buscar-se, forçosamente, na ruptura com a
historiografia ordenada à glorificação nacional.
Ainda
assim, e algo paradoxalmente, a nova História global, de que este livro é
exemplo, e um bom exemplo, surge numa altura em que se assiste a uma
revalorização da História política, ainda que com um enfoque distinto da
historiografia positivista e nacionalista do século XIX.
Por
outro lado, a História Global surge também na confluência daquilo a que eu
chamaria as «grandes sínteses» historiográficas mais recentes, em relativa
sintonia, nem sempre consciente, mas evidente, com o que Quentin Skinner chamou
o «regresso da grande teoria nas ciências humanas». Falo de obras que procuram,
de certo modo, romper com a linha da «micro-história» de tendência pós-moderna
e que não teme elaborar o que, como disse, se poderiam chamar «grandes
sínteses» ou «grandes narrativas», em volumes de muitas páginas, orientados
para o «grande público», e com uma clara vocação não-académica. Isso ocorre no
domínio das grandes biografias, hoje muito em voga, mas também nas visões
panorâmicas que encontramos, por exemplo, nos trabalhos de Felipe
Férnandez-Armesto, com destaque para Milénio.
A História dos últimos 1000 Anos, de 1995, de Jared Diamond, de Simon
Schama ou de Niall Ferguson (em especial com Civilization: The West and the Rest, de 2011) , apenas para citar
alguns nomes. Aliás, e para não julgarmos que tudo isto não passa de uma moda
efémera, como a da «história virtual» lançada há uns anos, devemos ter presente
que já um Braudel, no seu estudo sobre o Mediterrâneo de Filipe II, ou Vitorino
Magalhães Godinho, com noção de
«complexo histórico-geográfico», citada na introdução a este livro, tiveram a
intuição clara da necessidade de
ultrapassar as fronteiras limitadas e estreitas dos Estados-nação para a
compreensão correcta de fenómenos históricos mais vastos e interdependentes.
De
igual modo, a História global, que tem já uma teorização (recomendo a obra de
Sebastian Conrad, O Que é a História
global?, citado na introdução deste livro) e que reclama foros de autonomia
académica, com associações e revistas especializadas, surge também numa altura
em que se assiste a uma quase hegemonia dos estudos pós-coloniais, com os quais
não entra em declarada ruptura, mas constitui, até certo ponto, uma tentativa
de resposta.
Na
verdade, enquanto os estudos pós-coloniais implicam, ou podem implicar, uma
revisitação cruciante e dolorosa do passado de cada Estado-nação, a História
global é, ao invés, tendencialmente optimista, se quisermos, pois conduz a uma
valorização de aspectos universalistas e dialógicos desse passado.
Tentando
explicar melhor, a História global é a via que permite às narrativas historiográficas
de cada povo eximir-se, na medida do possível, àquilo a que já chamaram o
«remorso do homem branco» ou a «repentance coloniale», para citar os títulos de
dois famosos e controversos livros de Pascal Bruckner e de Daniel Lefeuvre,
respectivamente.
Entendamos:
o discurso da História global não equivale à velha retórica da «mission
civilisatrice» do Ocidente nem se confunde com um registo que, entre nós,
assumiu as vestes do luso-tropicalismo (sendo, já agora, o luso-tropicalismo e
a obra de Gilberto Freyre muito mais complexos e subtis do que aquilo que
frequentemente se pretende fazer crer).
Por
conseguinte, e para evitar que a partir daqui surja mais uma escusada e estéril
controvérsia ideológica, o que pretendo discutir é, tão-só, indagar até que
ponto a insistência em tópicos como «universalismo» ou «diálogo de culturas» não
constituem uma tentativa de prolongamento de um paradigma historiográfico ainda
tributário do nacionalismo, ou seja, se não serão formas de perpetuação, sob vestes
mais aggiornatas, é certo, de um
modelo de fazer a História orientado para a exaltação da grandeza de uma nação.
Se no passado essa glorificação se baseava nas armas e nas conquistas, agora
assume formais mais edulcoradas e simpáticas, as do diálogo e do universalismo,
mas nem por isso menos artificiosas.
É
que, na verdade, quando os Portugueses contactavam outros povos, nos tempos das
Descobertas – ou, se preferirem, da Expansão – não o faziam em nome do
«diálogo» ou para projecção do «universalismo», faziam-no para domínio
territorial ou geopolítico, para trocas comerciais e para difusão da sua fé
através de meios que eram tudo menos tolerantes.
Mas
entendamo-nos também: foram exactamente essas razões, não as do «diálogo» ou as
do «universalismo», que marcaram a relação de todos os outros povos. A intolerância
não é um exclusivo do Ocidente nem do hemisfério norte.
O
que pode dizer-se, quando muito, é que, em resultado de uma empresa de
dominação, resultou, como necessariamente teria de resultar, a criação de
espaços de diálogo intercultural, por vezes ou quase sempre em situações
assimétricas de poder, ou seja, longe daquilo a que pensadores como Habermas ou
Apel chamam «as condições ideais de diálogo».
É
neste contexto que devemos saudar o programa historiográfico desta obra, que
não obscurece a violência intrínseca de muitos relacionamentos interculturais
mas também não fica refém de uma retórica culpabilizadora e, pior ainda,
unilateralmente culpabilizadora.
Basta
atentar na breve nota constante da contracapa para atentarmos na preocupação de
equilíbrio – um equilíbrio difícil, diga-se – que os coordenadores procuraram
alcançar.
Fizeram-no,
aliás, por outra via, igualmente conseguida: com apoio em cinco coordenadores
para cada período histórico, reuniram uma enorme diversidade de contribuições –
e esse pluralismo confere á obra, sem perda de coerência, um carácter
polifónico que a resgata, por completo, do risco de ser apropriada por uma
visão historiográfica em detrimento da outra.
É
claro que, porventura em jeito de provocação, sempre nos poderemos interrogar
em que medida falar de uma História Global de Portugal não é uma contradição
nos termos, no sentido em que História verdadeiramente global só há uma, a do
planeta como um todo, e que, a partir do momento em que o referente é o
Estado-nação – neste caso, o Estado-nação português – teremos, quando muito,
uma História de Portugal do Mundo (ou do Mundo em Portugal), mas não uma
verdadeira e própria História global
de Portugal.
A
questão não é meramente semântica. Uma História global autêntica é aquela em
que, para cada período em análise, se convocam tudo quanto está sucedendo no
mundo nesse período ou, mais precisamente, todas as interacções e dinâmicas
presentes e em movimento numa dada baliza temporal. Veja-se, a este propósito,
aquela que é, porventura, o paradigma da world history, o livro de Christopher
Bayly, The Birth of the Modern World:
Global Connections and Comparisons, de 2004. Assim, por exemplo, o estudo do advento das
ditaduras na Europa, nos anos 20 e 30 do século passado, exige uma
contextualização mais ampla que atente, por exemplo, no que vinha sucedendo na
América do Norte pós-crise de 1929, inclusivamente do ponto de vista da
emergência de pulsões autoritárias e de atracções perigosas perante o nazismo,
mas também no Japão, na América do Sul.
Doutra
forma, se nos ativermos a estudar o influxo dos autoritarismos em Portugal ou a
projecção do salazarismo no estrangeiro, estaremos a proceder a uma narrativa
sobre «o mundo em Portugal» ou «Portugal no mundo», mas não a uma análise
verdadeiramente global e sincrónica do autoritarismo planetário da época.
Além
do mais, e penso que isto também merece discussão e debate, é extremamente difícil
erigir o «global» como padrão uniforme, como escala e métrica de toda uma
evolução histórica de um país ou de um povo – ou até, talvez melhor, de um dado
espaço geográfico, antes de ser sequer um país e de constituir-se em povo.
Ou
seja, nos vários séculos da nossa História terá havido períodos mais «globais»
do que outros, épocas de plena inserção no mundo, com o tempo da Expansão à
cabeça, e outros em que o «globalismo», por assim dizer, foi quase nulo ou
inexistente.
Dirão
que, de uma forma ou doutra, e apesar da nossa condição periférica, o exterior,
o estrangeiro esteve sempre presente entre nós, seja sob a forma de cruzados ou
de estilos arquitectónicos, de muçulmanos e outros povos invasores, de
doutrinas políticas e económicas provindas de universidades estrangeiras, de
peregrinações intelectuais, espirituais e existenciais de estrangeiros em
Portugal e de portugueses no estrangeiro.
Tudo
isso é certo e insofismável, mas nada disso comprova que o «global» tenha
estado presente da mesma forma em todos os períodos da nossa História. Por
certo, o nível de globalização dos nossos dias, a todos os níveis, é
infinitamente superior ao da Idade Média ou mesmo do tempo dos Descobrimentos.
As
coisas complicam-se, todavia, se pensarmos que, apesar de hoje sermos mais
globais do que outrora, o nosso protagonismo global é mais diminuto do que na
época das Descobertas, sobretudo nela.
Quer
dizer, passámos de actores da
globalização para seus espectadores –
e isso, necessariamente, haverá de ter o seu impacto na configuração da nossa
História global.
Mais
ainda, não só o nível quantitativo como o perfil qualitativo da globalização
não foi uniforme ao longo do tempo. Assim, e por muito que insistiam que
Portugal foi «pioneiro da globalização» ou que Lisboa era uma «metrópole global»
no tempo da Expansão, tudo isso será verdade, o que não é verdade é que a
globalização de há 500 anos seja a mesma dos nossos dias.
Por
isso, o risco de anacronismo é muito grande se julgar que a globalização foi a
mesma ao longo do tempo, só variando, quando muito, de ritmo e intensidade. O
que a globalização contemporânea demonstra é que ela não é só mais intensa e
profunda do que a do passado, é mais do que isso, tem uma natureza diversa e é intrínseca e qualitativamente diferente.
Talvez
o que a caracterize, acima de tudo, e só assim adquire interesse como conceito
operativo, é o facto de se impor e sobrepor à vontade dos Estados-nação. Como
disse, só assim é que faz sentido falar de um fenómeno global, que não
meramente internacional.
As
alterações climáticas ou a actual pandemia (já agora, uma e outra estão muito
mais ligadas do que julgamos) são fenómenos intrinsecamente globais, pois
afectam inescapavelmente todos os Estados, independentemente da sua vontade
soberana.
Já
a pertença à União Europeia pode implicar, no limite, a perda parcial de
soberania ou até, num avanço mais ousado, rumo ao federalismo, a perda total
dessa soberania na ordem externa. Mas, por enquanto, e como o Brexit o demonstra, um Estado-nação pode
deixar de pertencer à União Europeia.
A
liberalização mundial do comércio pode ter surgido de uma decisão multilateral
de vários Estados soberanos – e é curioso notar, ponto nem sempre recordado,
que a China foi aceite na Organização Mundial de Comércio em 17 de Setembro de 2001, poucos dias depois
dos atentados de Nova Iorque – a liberalização mundial de comércio pode ter
surgido de uma decisão soberana, mas, uma vez posta em marcha, adquiriu uma
dinâmica própria, uma dinâmica verdadeiramente global, que transcende a vontade
dos diversos Estados. Qualquer Estado, por mais poderoso que seja, pode
decretar unilateralmente a saída da actual globalização, já que esta comporta
inúmeras facetas, não meramente económicas (por exemplo, a globalização da
circulação da informação, por meios digitais). Assim, um Estado até pode, no
limite, fechar as fronteiras ao comércio externo e impor um proteccionismo
extremo, mas isso não o porá a salvo da globalização.
Creio
ser esse, de facto, o sentido útil deste conceito, aquilo que distingue uma
realidade global de uma realidade internacional, ainda dependente da vontade
soberana dos Estados-nação.
Como
se vê – e desculpem o tempo que vos estou a tomar – pôr de pé uma obra como
esta História Global de Portugal é um empreendimento difícil, pois:
1º
- há, desde logo, o risco de o «global» ser utilizado como enaltecimento
espúrio de uma narrativa ou de uma mitologia nacionais, forçando a nota de que
era «global» antes de o ser ou sustentando-se que um dado país, como Portugal,
tinha um programa «universalista» e de «diálogo», quando isso não resultou de
uma orientação deliberada das elites que nos conduziram para a Expansão;
2º
- há também o risco de se tomar por «global» realidades que são de outra
natureza, revestindo-se de um carácter internacional mas não necessariamente
global. O movimento abolicionista da pena de morte pode ter-se estendido por
vários países e adquiriu sem dúvida um carácter internacional, mas não tem uma
dinâmica transnacional ou verdadeiramente planetária: o Brasil ainda tem pena
de morte, há 74 Estados que ainda a prevêem e mesmo países como o Reino Unido
ou França só a aboliram numa fase muito tardia, que pouco teve a ver com o
abolicionismo oitocentista.
3º
- em terceiro lugar, há o risco de pensarmos a globalização como um fenómeno
estático e uniforme ao longo do tempo, quando, na realidade, ela sofreu
mutações profundas, sobretudo por influxo nas mutações da tecnologia que lhe
serve de suporte;
4º
- em quarto lugar, há o risco de pensarmos que a posição de cada Estado ou
espaço geopolítico foi, em face da globalização, ou das várias globalizações,
também ela estática e uniforme ao longo do tempo. O que a História demonstra, a
História de Portugal e a História Global ou até, se preferirmos, a História
Global de Portugal, o que essa História Global de Portugal demonstra é que o nosso
posicionamento e o nosso estatuto em face das dinâmicas globais mudaram
extraordinariamente ao longo do tempo, como mudou, ou está a mudar, o estatuto
do espaço em que nos inserimos.
5º
- em quinto e último lugar, e aquilo que talvez seja o ponto decisivo, que é o
de saber em que medida a História foi, ela própria, global, ou, se quisermos,
se o mundo não será global apenas no nosso tempo. Dirão que a porventura
inexplicável presença de arte rupestre em vários pontos distantes do planeta
demonstra a existência, já em tempos pré-históricos, de uma qualquer escala de
globalização. Mas o certo é que, em vários períodos da História, quase todos
até ao século XX e ao século XXI, uma parte do mundo ignorou largamente a outra,
e vice-versa, e os povos puderam desenvolver-se autonomamente sem que soubessem
sequer que outros como eles habitavam o planeta-mundo. O que se passava em Portugal
no século XIII ou XIV era absolutamente irrelevante para um japonês ou um
australiano dessa época, pouco ou nada afectando a sua vida.
Assim,
se o pretendermos aplicar ao passado, ao passado anterior ao século XX e
sobretudo ao século XXI, o conceito de «global» tem de ter um alcance
diferente: para o Portugal ou para os Portugueses da Idade Média ou do tempo
das Descobertas, «global» era aquilo que correspondia ao mundo então conhecido,
ou seja, o conceito de «global» corresponde a um espaço que nasce da
perspectiva de quem o observa, não é algo objectivo e universalmente
partilhado. Basta atentar nas diferentes representações cartográficas do mundo,
do Ocidente, de um lado, ou do Oriente, do outro, ou basta pensarmos como seria
o mundo para um africano do século XV ou para um aborígene australiano do
século XVI para concluirmos que a percepção do que era «global», do que era o
mundo e o universo conhecido, variava enormemente. Ora, julgarmos que o «mundo»
do século XVI era o mundo que nós, portugueses ou europeus, conhecíamos, é um
erro de perspectiva tão grande como julgar que o planisfério tem
necessariamente por centro a Europa. O mundo, na História dos homens, não é
objectivo ou naturalizado, é uma construção ou uma ideia que resulta da
percepção de cada qual, decorrente dos seus conhecimentos e capacidades
científicas mas também das suas superstições e sistemas de crenças.
Dizer
que o espaço em que os Portugueses se moviam no século XVI era o «mundo»,
significa, uma vez mais, resvalar num defeito de visão, num preconceito
eurocêntrico. A Europa e África, o Brasil e a Índia, a China, até o Japão,
poderiam ser o «mundo» dos portugueses e dos europeus, mas não era o «mundo», o
«global», dos africanos ou dos indianos, dos chineses ou dos japoneses.
Portanto,
fazer uma História global de Portugal não é, de modo algum, uma contradição nos
seus termos. Pelo contrário, essa é a única forma que temos de projectar no
passado o conceito de «global», isto é, não um conceito unívoco mas plural e
diverso de acordo com o ponto de vista do observador: global, no século XVI de
Portugal, era o modo como Portugal percepcionava e apreendia o mundo por si
conhecido ou intuído e suspeitado. A perspectiva é sempre, e tem de ser sempre,
a do horizonte de quem observa. Por isso, quando os cultores da História global
afirmam querer desnacionalizar ou des-territorializar a historiografia, creio
que estão a colocar mal o problema, pois o ponto de vista ou o horizonte de
referência do global é sempre (ou ainda é sempre) o nacional ou o territorial,
não pode prescindir dessa ancoragem.
É
certo que o horizonte se alargou enormemente nos nossos dias, fazendo com que o
conceito de «mundo» seja hoje muito mais global, universal ou mundial do que
outrora. Fazendo com que o «mundo», para um africano, seja o mesmo ou
praticamente o mesmo do que o «mundo» para um europeu. Mas não foi assim no
passado e, se quisermos evitar o anacronismo, temos de compreender isso.
Pois
bem, em face de todas estas dificuldades, o que se pode dizer, numa apreciação
geral, ou global, é que os contributos que integram este volume souberam cumprir
exemplarmente estas premissas. Em quase 100 textos de autores diversos, há
naturalmente uns que, melhor do que outros, conseguem evitar resvalar no
anacronismo ou no eurocentrismo. O produto final é, sem dúvida, de elevadíssima
qualidade e não vou cometer a descortesia de salientar um texto em detrimento
do outro, ou sequer uma parte do livro em desfavor das demais. Mas, dada a
minha inclinação pela História Contemporânea, permitam-me que saúde de forma
especial a qualidade dos textos constantes dessa última parte do livro.
Termino
com uma nota pessoal, talvez escusada. Estive há poucos dias em Delfos, a que
os antigos chamavam, e ao seu oráculo, o «umbigo do mundo». Agora, nos guias
turísticos, conhecida como «umbigo do mundo grego»
ou «umbigo do mundo grego antigo», ou
seja, passou a ter um alcance espacial e temporal mais limitado. Ainda assim,
quem percorre as ruínas de Delfos, é assaltado por um sentimento misto de
distância e lonjura e, ao mesmo tempo, de proximidade e de familiaridade. É
algo que está já muito distante de nós, mas que ainda sentimos nosso, por
razões imaginadas, sem dúvida, mas nem por isso menos autênticas.
Creio
que é justamente isso que também sentimos perante a História e o passado, o
«estranho lugar» ou foreign country de
que falava Hartley.
O
que a leitura deste livro nos traz é justamente essa sensação de proximidade e
distância – a prova provada de que estamos perante um grande e notável livro de
História.
Muito
obrigado.
ResponderEliminarCom um texto de apresentação destes, dá uma vontade danada de comprar o livro.
Onésimo
O On+esimo: eu se nao o tivesse já ia comprá-lo!
ResponderEliminarPbrigado ao António Araújo.
Abraços
Carlos Fiolhais
Abraço a ambos, caros amigos
ResponderEliminarAntónio
Coimbra é sensacional, CF e JPP.
ResponderEliminarCoimbra é sensacional, CF e JPP.
ResponderEliminarLOTTO, lottery,jackpot.
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