Durante o meu terceiro ano de Filosofia (1954-55), houve um daqueles
benfeitores inesperados e exóticos que se lembrou de presentear o Instituto
Filosófico Salesiano de Manique com uns vinte e cinco instrumentos musicais,
mais próprios para a sucata que para as mãos e os ... lábios clericais;
instrumentos já muito velhinhos, alguns até amolgados e enferrujados, mas em
número suficiente para com eles se poder formar uma pequena e modesta
banda...filosofal.
Como o clérigo assistente e professor de Filosofia tinha uma formação
musical razoável, tocava órgão e piano discretamente e, em tempos idos, fizera
parte de uma banda como saxofonista, prontificou-se imediatamente para
organizar a banda e desempenhar o papel de maestro. De maneira que, ao fim de
umas duas semanas de audições, já ele tinha candidatos suficientes e
entusiastas para cada um dos vinte e tal decrépitos instrumentos.
Dado que eu, desde garoto, sempre tivera um fraco pelo trompete, enchi-me
de coragem e de atrevimento e pedi ao maestro que me deixasse tocar um dos
trompetes. Depois de me haver sujeitado a várias e rigorosas provas para ver se
tinha lábio ou embocadura, como se costumava dizer, para ser digno de tocar
esse nobre e vistoso instrumento, veio a concluir que, de facto, eu nascera
vocacionado para fazer um brilharete como trompetista (palavras lisonjeiras do
generoso maestro, a quem, por sinal, nascido para ser prosaico, faltava o fogo,
a paixão do autêntico artista, tudo fazendo, no sublime campo da música, como
um autómato).
Visto que todos os membros da recém-nascida banda sabiam solfejo e alguns
até tinham alguma experiência, por no passado haverem tocado em bandas, dentro
de poucas semanas já estávamos passavelmente habilitados para dar pequenos
concertos e abrilhantar as festas, embora com as compreensíveis e arrepiantes
desafinações e as infalíveis fífias à mistura.
Um
infausto dia, o maestro aproxima-se de mim e diz-me que no dia anterior tinha
sido expulso do seminário um dos dois tocadores de tuba e, que, por conseguinte,
ele precisava urgentemente de um substituto, tanto mais tendo em conta que
dentro de três semanas tínhamos que tocar numa festa. Que havia pensado muito
no assunto e que chegara à conclusão que eu, com os meus conhecimentos de
solfejo e, sobretudo, com a minha experiência de tocador de outro instrumento
de metal, era a pessoa ideal para lhe resolver o problema. Oh minha Santa
Euterpe! Oh minha Santa Cecília! O sacrifício que o maestro me pedia! Isso era
passar de cavalo para burro. Mas a insistência foi tal, que eu não pude dizer
que não. Que, naturalmente, a princípio, explicou ele em tom professoral, eu
teria uma certa dificuldade com a embocadura, mas que, com a prática e a força
de vontade, tudo se resolvia. Que disso não tinha ele qualquer dúvida. Perante
as dificuldades em que se encontrava o pobre maestro, a mim só me restou aceder
ao seu indesejável pedido.
Com
mil agradecimentos, sugeriu que deixasse o recreio, em que eu estava entretido
a jogar ténis, e que fosse experimentar a tuba, para ver se tinha embocadura. E
eu assim fiz. Agarrei na tuba e fui praticar para uma sala de aula, voltada
para o pátio de recreio. Para que não ouvissem as minhas inevitáveis
desafinações e malsonâncias, a primeira coisa que fiz foi fechar hermeticamente
todas as janelas da sala de aula. Depois, peguei no malfadado instrumento e
pus-me a tocar escalas no meio da sala, imitando os exercícios do piano: de dó
de baixo a dó de cima; de dó de cima a dó de baixo; de ré de baixo a ré de
cima; de ré de cima a ré de baixo; de mi de baixo a mi de cima; de mi de cima a
mi de baixo; e assim por diante. Estava eu todo absorbido a tocar essas escalas
com a força e a fúria que os meus pulmões me permitiam, quando subitamente me
entram, a chocalhar, pela abertura escancarada da tuba, pedaços de vidro da
lâmpada da sala de aula, pendente do tecto, espatifada, certamente, por causa
das raivosas vibrações.
Preocupado
e assustado por aquele estrago todo, largo a endiabrada tuba e corro aflito ao
recinto de recreio para confessar ao meu professor de Filosofia e mestre de
banda o que me tinha acontecido. Imaginando que ele ia ficar furioso comigo por
aquele maldito acidente, ouço dos lábios dele estas palavras prazenteiras:
-
Bravo! Bravíssimo! Temos tubista. Eu bem sabia que tinhas embocadura para a
tuba. Não te preocupes com a lâmpada. Vou já dar ordens ao electricista para
que vá substituí-la quanto antes. Agora é só praticar.
Feita uma breve pausa, o improvisado maestro prosseguiu com estas palavras:
- Sabes o que estive a pensar depois de te haver pedido esse sacrifício?
Tal como me propuseste, vou autorizar-te, em sinal de gratidão e como
incentivo, a que, de longe em longe, nos momentos oportunos, te esqueças do
acompanhamento e te juntes aos bombardinos para tocar o contracanto, deixando
ao outro tubista a responsabilidade pelo “Pó, pó; pó, pó; pó: pó, pó, pó. Pó,
pó; pó, pó; pó: pó, pó, pó. Pó, pó; pó, pó; pó: pó, pó, pó”.
E
foi assim que eu passei de cavalo para burro; quer dizer: que passei de trompetista
para tubista da banda filosofal, a qual, para gáudio e alívio de alguns de nós
e, sobretudo, para júbilo e triunfo das padroeiras da música, a musa Euterpe e
Santa Cecília, paulatinamente se desfez, como bolas de sabão, antes do final do
ano lectivo, por os instrumentos, sujeitos, como tudo neste mundo, à insaciável
voracidade de Saturno, irem caindo de podres e de incurável velhice, num
andamento allegro vivace.
António Cirurgião
E assim, imagino eu, nasceu um enorme tubista.
ResponderEliminar.
Feliz início de semana
Cumprimentos
Essa experiência musical haveria de servir-te - assim o creio - como maestro da admirada banda de música da Escola de Vila do Conde!
ResponderEliminar