segunda-feira, 16 de novembro de 2020

De tocador de trompete a tocador de tuba.

 



Durante o meu terceiro ano de Filosofia (1954-55), houve um daqueles benfeitores inesperados e exóticos que se lembrou de presentear o Instituto Filosófico Salesiano de Manique com uns vinte e cinco instrumentos musicais, mais próprios para a sucata que para as mãos e os ... lábios clericais; instrumentos já muito velhinhos, alguns até amolgados e enferrujados, mas em número suficiente para com eles se poder formar uma pequena e modesta banda...filosofal.

Como o clérigo assistente e professor de Filosofia tinha uma formação musical razoável, tocava órgão e piano discretamente e, em tempos idos, fizera parte de uma banda como saxofonista, prontificou-se imediatamente para organizar a banda e desempenhar o papel de maestro. De maneira que, ao fim de umas duas semanas de audições, já ele tinha candidatos suficientes e entusiastas para cada um dos vinte e tal decrépitos instrumentos.

Dado que eu, desde garoto, sempre tivera um fraco pelo trompete, enchi-me de coragem e de atrevimento e pedi ao maestro que me deixasse tocar um dos trompetes. Depois de me haver sujeitado a várias e rigorosas provas para ver se tinha lábio ou embocadura, como se costumava dizer, para ser digno de tocar esse nobre e vistoso instrumento, veio a concluir que, de facto, eu nascera vocacionado para fazer um brilharete como trompetista (palavras lisonjeiras do generoso maestro, a quem, por sinal, nascido para ser prosaico, faltava o fogo, a paixão do autêntico artista, tudo fazendo, no sublime campo da música, como um autómato).

Visto que todos os membros da recém-nascida banda sabiam solfejo e alguns até tinham alguma experiência, por no passado haverem tocado em bandas, dentro de poucas semanas já estávamos passavelmente habilitados para dar pequenos concertos e abrilhantar as festas, embora com as compreensíveis e arrepiantes desafinações e as infalíveis fífias à mistura.

           Um infausto dia, o maestro aproxima-se de mim e diz-me que no dia anterior tinha sido expulso do seminário um dos dois tocadores de tuba e, que, por conseguinte, ele precisava urgentemente de um substituto, tanto mais tendo em conta que dentro de três semanas tínhamos que tocar numa festa. Que havia pensado muito no assunto e que chegara à conclusão que eu, com os meus conhecimentos de solfejo e, sobretudo, com a minha experiência de tocador de outro instrumento de metal, era a pessoa ideal para lhe resolver o problema. Oh minha Santa Euterpe! Oh minha Santa Cecília! O sacrifício que o maestro me pedia! Isso era passar de cavalo para burro. Mas a insistência foi tal, que eu não pude dizer que não. Que, naturalmente, a princípio, explicou ele em tom professoral, eu teria uma certa dificuldade com a embocadura, mas que, com a prática e a força de vontade, tudo se resolvia. Que disso não tinha ele qualquer dúvida. Perante as dificuldades em que se encontrava o pobre maestro, a mim só me restou aceder ao seu indesejável pedido.

         Com mil agradecimentos, sugeriu que deixasse o recreio, em que eu estava entretido a jogar ténis, e que fosse experimentar a tuba, para ver se tinha embocadura. E eu assim fiz. Agarrei na tuba e fui praticar para uma sala de aula, voltada para o pátio de recreio. Para que não ouvissem as minhas inevitáveis desafinações e malsonâncias, a primeira coisa que fiz foi fechar hermeticamente todas as janelas da sala de aula. Depois, peguei no malfadado instrumento e pus-me a tocar escalas no meio da sala, imitando os exercícios do piano: de dó de baixo a dó de cima; de dó de cima a dó de baixo; de ré de baixo a ré de cima; de ré de cima a ré de baixo; de mi de baixo a mi de cima; de mi de cima a mi de baixo; e assim por diante. Estava eu todo absorbido a tocar essas escalas com a força e a fúria que os meus pulmões me permitiam, quando subitamente me entram, a chocalhar, pela abertura escancarada da tuba, pedaços de vidro da lâmpada da sala de aula, pendente do tecto, espatifada, certamente, por causa das raivosas vibrações.

         Preocupado e assustado por aquele estrago todo, largo a endiabrada tuba e corro aflito ao recinto de recreio para confessar ao meu professor de Filosofia e mestre de banda o que me tinha acontecido. Imaginando que ele ia ficar furioso comigo por aquele maldito acidente, ouço dos lábios dele estas palavras prazenteiras:

         - Bravo! Bravíssimo! Temos tubista. Eu bem sabia que tinhas embocadura para a tuba. Não te preocupes com a lâmpada. Vou já dar ordens ao electricista para que vá substituí-la quanto antes. Agora é só praticar.  

Feita uma breve pausa, o improvisado maestro prosseguiu com estas palavras:

- Sabes o que estive a pensar depois de te haver pedido esse sacrifício? Tal como me propuseste, vou autorizar-te, em sinal de gratidão e como incentivo, a que, de longe em longe, nos momentos oportunos, te esqueças do acompanhamento e te juntes aos bombardinos para tocar o contracanto, deixando ao outro tubista a responsabilidade pelo “Pó, pó; pó, pó; pó: pó, pó, pó. Pó, pó; pó, pó; pó: pó, pó, pó. Pó, pó; pó, pó; pó: pó, pó, pó”.

           E foi assim que eu passei de cavalo para burro; quer dizer: que passei de trompetista para tubista da banda filosofal, a qual, para gáudio e alívio de alguns de nós e, sobretudo, para júbilo e triunfo das padroeiras da música, a musa Euterpe e Santa Cecília, paulatinamente se desfez, como bolas de sabão, antes do final do ano lectivo, por os instrumentos, sujeitos, como tudo neste mundo, à insaciável voracidade de Saturno, irem caindo de podres e de incurável velhice, num andamento allegro vivace.

                  


António Cirurgião





2 comentários:

  1. E assim, imagino eu, nasceu um enorme tubista.
    .
    Feliz início de semana
    Cumprimentos

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  2. Essa experiência musical haveria de servir-te - assim o creio - como maestro da admirada banda de música da Escola de Vila do Conde!

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