quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Uma surpreendente obra de referência sobre a génese da convulsão anticolonial.

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Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: janeiro a abril) por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, marca o regresso de Valentim Alexandre à história colonial, de que possuí extenso e brilhante currículo. Recorde-se que ainda há escassos anos nos ofereceu outra obra de referência, Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), também publicado em Temas e Debates/Círculo de Leitores, que pode ser encarada como a primeira peça de algo que se afigura vir a ganhar corpo como a História da Guerra Colonial (1961-1975), empreendimento de grande dimensão, que até hoje nenhum investigador nem nenhuma equipa se acometeu, tal a grandeza da tarefa e o distanciamento que impõe. Vamos esperar ansiosamente que o historiador leve a bom porto o ciclópico trabalho.

Que ele nos oferece sobre estes primeiros meses de 1961, graças a uma escrita incisiva, poderosamente didática, uma excelente tintura de ambientes, uma rigorosa sequência cronológica, não é só o início da Guerra Colonial, dá-nos em traços largos os prenúncios, a tímida preparação e reajustamento das Forças Armadas para eventuais conflitos que desobedeciam inteiramente a uma guerra convencional, sentimos a evolução africana e as primeiras independências, seguimos para o Norte de Angola, somos apresentados aos protagonistas, e entramos de supetão na rebelião da Baixa do Cassange, as Forças Armadas irão ser confrontadas com as brutezas do trabalho forçado e da exploração do indígenas na cultura do algodão, a resposta será brutal, envolverá bombardeamentos aéreos; o Regime pretextará que se trata de ameaça externa, incompatível com a sociedade multirracial que apregoava. Mas o historiador explora outros objetivos associados aos acontecimentos da Baixa do Cassange, da linha das crendices e feitiçaria.

O acontecimento seguinte, e estamos em fevereiro de 1961, são os assaltos às prisões de Luanda, mais tarde, sobretudo o MPLA tentará tirar dividendos da sua intervenção, o que não está comprovado. As autoridades andam atarantadas, os tumultos de Luanda são contemporâneos da Revolta de Cassange, acresce que estão presentes em Luanda repórteres internacionais, tudo por causa do assalto ao paquete de Santa Maria, era suposto que se encaminhava para Luanda. A reação da população branca aos assaltos às prisões também foi brutal. O autor releva as peças documentais que evidenciam as vulnerabilidades do poder colonial português. E é neste quadro que se dá a insurreição armada no Norte, aí sob a égide da UPA. E mais uma vez somos convocados para perceber as raízes da revolta, o Regime procura desenvolver a ideia que havia uma conspiração internacional que atentava contra a perfilhada ideia de coesão racial. Havia a exploração, sobretudo na cultura do café, a documentação é exibida, mais uma vez a irrefutável exploração. E assim chegamos a um caos sangrento, a uma matança bárbara, mais uma vez as Forças Armadas ficaram confusas e as milícias civis envolveram-se também numa brutal resposta. Sobretudo as confissões protestantes foram apresentadas como bodes expiatórios, marcou todo o processo de repressão da rebelião. Tudo se vai agravar no Norte, a resposta do envolvimento de contingentes militares metropolitanos chegara em abril, as revoltas de Angola passarão a ter uma metódica resposta da contraguerrilha.

Valentim Alexandre dá-nos as movimentações políticas em Angola, as organizações dos brancos, a resposta dos meios económicos através das suas associações e temos também o quadro das organizações políticas africanas, uma síntese esclarecedora onde cabe o trabalho dos independentistas do enclave de Cabinda.

Postos no terreno os elementos primordiais destes três principais tumultos angolanos, o autor orienta-se para repercussões que eles tiveram em Portugal. De novo somos levados para a arena internacional, os novos países marcam presença na ONU e a nova administração Kennedy é manifestamente anticolonialista, o regime de Salazar procura afanosamente aliados e apoios, eles virão, mas serão modestos, abre-se é a janela para a compra de armamento e equipamento, todo o apoio que vem da África Austral é recebido com cuidados, o Estado Novo não quer aparecer nos meios diplomáticos como um aliado de políticas racistas. É altamente esclarecedor este capítulo sobre a ação de Portugal no quadro africano para ficarmos a perceber o isolamento da argumentação sobre o Portugal multirracial. E assim chegamos a uma fascinante descrição dos acontecimentos conducentes da Abrilada, um golpe palaciano que tinha o General Botelho Moniz como figura de proa, prontamente sufocado, é a partir daí que Salazar, em perfeita consonância com a cúspide das Forças Armadas se lança na resposta para repor, ou tentar repor, a paz no Norte de Angola, é uma narrativa só possível a um investigador que tem os dados rigorosos na mão e os expõe com uma fluência de uma quase reportagem de aventura e ação. Não menos importante são as conclusões que o autor apresenta neste seu primeiro livro no arranque da Guerra Colonial. Logo o parágrafo de abertura: “Em começo de 1961, as revoltas em Angola puseram fim ao mito da pax lusitana, segundo o qual o colonialismo português, pela sua capaz de assimilação e de integração, mantinha uma convivência fácil com os povos ‘indígenas’, sem problemas nem atritos de maior. Na realidade, o mito só tivera um aparento fundamento durante um curto período de quatro décadas, desde o fim das campanhas de ‘pacificação’, por volta de 1920. As sociedades colonizadas por Portugal, nomeadamente as do continente africano, atravessaram então uma fase de segmentação e atomização, que lhes diminuíram drasticamente a capacidade de resistência”. Recapitulam-se os dados essenciais dos três autos insurrecionais, dá-se conta da posição das organizações políticas de Angola, não se descura o projeto imperial que vinha antes do regime de Salazar, mas que este endeusou, tornou-o a construção vertebral a que assentava a Nação, sem Império ficaríamos reduzidos a nada. O autor lembra os movimentos subversivos por toda a África, a alteração radical que se dera no ambiente internacional quanto à questão colonial e que a prazo irá selar o destino do domínio colonial português.

Uma obra historiográfica incontornável, uma leitura imperdível. 


Mário Beja Santos






 


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