É a narrativa mais recente sobre o mais condecorado
militar português, intitula-se O Fenómeno Marcelino da Mata, o Herói, o
Vilão e a História, por Nuno Gonçalo Poças, Casa das Letras, 2022. Vindo na
sequência de outras narrativas, e depois da controvérsia que acompanhou o
desaparecimento do herói, era expectável uma investigação em contexto inovador,
com questões pertinentes, abordagens facultadas por contemporâneos e camaradas
operacionais do falecido herói, enfim, um trabalho que saísse da pura ruminação
e do copy-paste. Nuno Poças promete e não cumpre. Diz ter como móbil do
seu trabalho: “Parti para este livro para tentar perceber quem era o homem por
detrás do debate, e também para compreender quem nele teria mais razões. Mas
rapidamente constatei que aquilo que era mesmo importante, na minha modesta e
frágil opinião, não foi discutido. Marcelino tinha em si, no seu percurso, tudo
aquilo que nos devia ter (guerra em ditadura e processo revolucionário) não
devem ser olhados, em democracia, como se olha para um passado recente já
construído em período democrático”. E quando se despedir do leitor, o autor voltará
à tónica de que é necessária uma perspetiva de apaziguamento feito refletir e
procurara acomodar todas as sensibilidades, num quadro de moderação e
concórdia, relativamente a um passado recente que não deixa – ou não devia
deixar – muita gente orgulhosa. Esse passado é por natureza controverso, na
medida em que se trata, essencialmente, de dois períodos e moderação, de que há
muitas contradições e confrontos na historiografia da Guerra Colonial, é
indispensável a busca do justo equilíbrio, ele diz que foi o que tentou fazer,
concluindo que Marcelino carregava em si o peso das contradições de um passado
comum a tantos portugueses ainda vivos. E finaliza com uma quase boutade:
“Nestas contradições andará, como quase sempre, a verdade possível”.
O autor passa como cão por vinha vindimada em ouvir
opinião ou comentários sobre as diferentes entrevistas dadas por Marcelino.
Apresenta a Guiné de um modo grotesco, incorreto: “O território da Guiné,
descoberto pelos portugueses em 1446. Depois de povoado por meio de Cabo Verde,
ocupado por holandeses, povoado por portugueses, abandonado, colonizado por
ingleses, foi finalmente constituído como colónia portuguesa em 1879, depois da
união de Bissau e Cacheu. Só em 1951 seria criada a Província Ultramarina da
Guiné”. Brada aos céus!
Apresenta-nos Marcelino e procura contextualizar em que
meio, o que escreve é mais do que consabido, vem em todos os relatos
anteriores, mesmo aquela névoa de quem da sua família foi assassinado pelo
PAIGC, o pai, a mãe, a irmã ou a mulher. Como a diacronia não é a principal preocupação
de Nuno Poças, logo sobre a vingança em quadro psicanalítico de Marcelina temos
o comentário de Manuel dos Santos, o Manecas, comandante do PAIGC, dizendo, em
2015, que o Marcelino da Mata era uma vergonha para o exército português. Mas o
autor dá como demonstrado que a vingança e o sentimento de pertença à
comunidade portuguesa marcaram a atuação de Marcelino.
Nada de novo nos traz no seu relato sobre os primórdios
da guerra da Guiné, daqui parte para a apresentação de Amílcar Cabral e a
criação do PAIGC, também não há elementos novos e assim chegamos ao quadro de
atuação de Marcelino, já ganhara notoriedade quando participa na Operação
Tridente, assim chegamos a 1986 e Marcelino fará parte de um grupo que ganhou
fama, Os Roncos, combate ao lado de um outro bravo, Cherno Sissé, este
também altamente condecorado, e que teve uma triste sina em Portugal. É aqui
que Nuno Poças traz um contraditório face a uma bravata de Marcelino que
afirmava uma operação de libertação de prisioneiros da CCaç 1546, coisa que
nunca aconteceu, bravata e pura mentira. E o autor observa: “Parece evidente
que se foram inventando episódios acerca de Marcelino da Mata, e existem
testemunhos que afiançam que várias dessas invenções tinham origem no próprio,
mas o certo é que, indiferente à mitomania, a lenda crescia durante a guerra à
medida que as medalhas e os louvores se sucediam e confirmavam todas as
qualidades militares de Marcelino. E o PAIGC, por sua vez, ganhava a Marcelino
da Mata um receio e uma raiva crescentes”. E, mais adiante: “Retratado como um
herói pelo regime que o condecorava, era também visto como um sanguinário e
criminoso de guerra pelo lado oposto, graças a episódios ocorridos no mato,
factos de real selvajaria dos quais quem não conhece a guerra terá sempre uma
distância inevitável”. Parece um comentário do Conselheiro Acácio.
Como a diacronia não é o forte de Nuno Poças, voltamos à
Operação Tridente e passamos rapidamente para a Operação Mar Verde, e depois a
Operação Ametista Real, também nada de novo, seguramente para justificar a
presença e os atos de bravura de Marcelino. Nuno Poças vai repetir frases que
se encontram em dezenas de livros sobre o período da governação Schulz, que
tinha apostado exclusivamente numa estratégia militar de recuperação das áreas
ocupadas pela guerrilha do PAIGC, mas sem produzir grandes resultados, que
recebeu mais efetivos militares, aumentou os bombardeamentos e as operações por
tropas helitransportadas; mas, coitado, chegara com a saúde fragilizada e uma
visão burocratizada da guerrilha, acabou demitido (aqui não é o Marcelino a
disparatar, é o autor). E chega Spínola, intensifica a africanização da guerra,
etc. e tal, chega o 25 de abril, dias antes Marcelino acidentado é transferido
para Lisboa, e aqui fica. Anos depois, numa entrevista Marcelino virá dizer que
só a tropa guineense chegava para controlar a Guiné. “Podia ter-se negociado
com o PAIGC para formar um exército no qual eles se integrassem: porque nós
éramos um exército formado e com largos anos de guerra, e eles era
guerrilheiros sem formação militar e sem quadros – portanto, eles deviam
integrar-se nesse exército e não nós no deles”. Fica bem claro neste comentário
a visão irrealista de Marcelino da Mata face ao processo descolonizador, tal
como ele aconteceu.
Nada se esclarece quanto às razões que levaram à detenção
de Marcelino da Mata em 1975, foi espancado no RALIS, nunca aparece alguém,
factualmente, a desmentir a ligação de Marcelino com spinolistas, o ELP, parece
que foi o MRPP que o descobriu por ciência infusa, aproveita-se a oportunidade
para novamente enxovalhar o nome de Leal de Almeida, comandante do RALIS, que
teria aproveitado a oportunidade para exercer uma vingança pessoal sobre
Marcelino. E depois vem a sua ligação às manifestações dos antigos comandos
guineenses, em 1986, tudo é exposto sem nenhum contraditório, aliás está na
moda, até em processos de doutoramento as calúnias andam impunemente à solta. E
depois o herói morre, e por muito que o autor diga que falar de Marcelino exige
uma perspetiva de apaziguamento e moderação, há que reconhecer que é preciso
ter muita desfaçatez para escrever esta narrativa completamente inútil.
Mário Beja Santos
Umj livro que, imagino, ser muito interessante de ler. Marcelino da Mata, herói ou vilão?
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Cumprimentos cordiais e poéticos
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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