segunda-feira, 14 de março de 2022

Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné.

 



                Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné: 


O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa



  

Uma surpresa, e com aspetos bem curiosos, este O Silvo da Granada, Memórias da Guiné, por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor apresenta: “Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no mosteiro da Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra. Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde casei, fui professor e jornalista. Nesta cidade, tenho levado vida plácida e remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea. Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez mais torto”.

Nunca vai ficar esclarecido neste livro as razões pelas quais, com tais habilitações, vai parar à Guiné como primeiro-cabo das Transmissões, chega em maio de 1968, regressa um pouco mais de dois anos depois, assiste a grandes transformações no Sul da Guiné, o então brigadeiro Spínola manda encerrar um conjunto de quartéis que eram considerados estratégicos pelo seu antecessor, Guileje, um fortim aparentemente inexpugnável, é a sentinela avançada daquela região onde o PAIGC se move muito à vontade. A invulgaridade destas memórias não passa só pelo recurso permanente às citações dos clássicos, tanto dos portugueses como os da literatura greco-latina, o que já por si determinaria a invulgaridade, nada, nem de perto nem de longe, é referenciado como tal na literatura da guerra que travamos em três frentes africanas; o seu registo de usos e costumes nada tem de peculiar, o que assoma, e nos comove, é a sua profunda atração por aqueles autóctones que vivem debaixo de um fogo cerrado, aquele silvo da granada permanente, povo prazenteiro e acolhedor, tem histórias para contar, há quem em Guileje teça comentários mordazes a este primeiro-cabo que prefere a companhia daquela gente Futa-Fula; e na arquitetura destas memórias até se podia abrir campo para usar aquelas colunas de abastecimento, aqueles patrulhamentos e vigilâncias, como vivências pessoais de intenso sofrimento, acontece que Martins da Costa não se perde em vanglórias, nunca nos deixa a imagem do herói anónimo; é crente, reza sempre que pode, não tem pejo em alardear a sua fé, como se nada tivesse a perder com o rasgo da sua sinceridade.

Dirá em dado momento: “Isto não é um diário. Antes fosse; que tudo iria por sua ordem, sem as errâncias de uma pena vadia, agora e logo perdida em digressões, por vezes longas, decerto fastidiosas. Também não vai escrito por meses, posto às vezes pareça. Já agora, como se diria, se fosse? Aos anais, as décadas, os diários. Só para a escrita por meses não se inventou nome, decerto porque nunca foi preciso; e também não é agora”. O que se espraia por estas memórias é acima de tudo um olhar de deslumbramento. Na generalidade destas obras, conta-se muito sobre o sofrimento e a solidão, os corpos retalhados, o desvario que se vive naquelas tempestades de fogo das intensas flagelações. O primeiro-cabo de Transmissões não quer veleidades, chegou a Bissau em rendição individual, metem-no numa embarcação para Gadamael, dias depois entra em Guileje e adapta-se à sua vida no posto de rádio, aos patrulhamentos, às colunas de abastecimento. Não faz retórica à volta daquelas tempestades de fogo, que são frequentes, descobre e procura imergir na procura de respostas com o seu quê de etnografia, antropologia e etnologia. Deslumbra-se com a natureza, o desabar das chuvas, a vegetação luxuriante, aproveita todas as ocasiões para fazer comentários a essa vida tropical com quem tão bem convive, basta um exemplo, o prenúncio de uma chuva diluviana: “Anuncia-a, lá ao fundo, aquela barra escura, carregada. É uma negridão a todo o largo do céu, que cresce cada vez mais e está avançando para cá com a lentidão e tenacidade do Sol a pôr-se. Desliza de manso, implacável, sobre o azul, expulsando-o, avassalando-o, assenhoreando-se da vasta amplidão destes céus. Para trás nem uma réstia, uma nesga do azul vivo de há pouco. É com a inocência do sertão nos olhos que o Martins assiste ao espetáculo inesperado e insólito que o transe. Quando nisto, já com a nuvem iminente, e rompe sobre Guileje uma ventania doida, que aos ares férvidos ergue revoltas espirais de pó; um golpe mais rijo do vento arremessa para longe uma pesada chapa de zinco das instalações militares. Fim estertoroso de uma estação ou furibundo prelúdio da que está para vir? Com a nuvem, de um tom espesso de tinta-da-china, cingindo todo o espaço por cima de Guileje, como exausto o vento cessa; e como se só estivesse esperando a quietação dos ares, clamoroso chuveiro desaba sobre a terra requeimada, que fumega”.

 Obra totalmente imprevista neste ramo da literatura, mais de alguém que se apresenta como um aprendiz entusiasta das ciências sociais e humanas e muito menos como combatente, revela uma sensualidade contida, tem a sinceridade de nos dizer que deixou Guileje naquele estado paradoxal, sentindo alívio por deixar um dos quartéis mais flagelados e mais temidos por qualquer militar, mas com uma saudade imensa, tal como sentirá noutras paragens, como Catió e Cufar. Naquelas derradeiras páginas em que se despede dos autóctones que o prendem com afeto, assume por inteiro o amor gerado por aquela nesga da Guiné, no adeus da partida: “Doravante, um abismo se interporá entre eles. Mas por cima desse abismo, como uma imensa ponte sobre um desfiladeiro precipitoso, a memória vencerá sempre a distância e o afastamento”. E toma o avião agradecendo a Deus ir vivo e ileso; reza pelos que não tiveram a mesma sorte.

Uma obra a ter em conta em toda a literatura da guerra colonial. 


Mário Beja Santos





 


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