A
publicação de Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, por Aleksandr
Soljenítsin (Prémio Nobel da Literatura de 1970), Livros do Brasil/Porto
Editora, 2022, dado à estampa pela primeira vez em 1962, na URSS, logo
constituiu um autêntico murro no estômago, afinal os campos de trabalhos
forçados não era reles propaganda antissoviética, existiam, com toda a sua
bestialidade, corrupção, morticínio. É primeira obra-prima deste escritor russo
que combateu na Segunda Guerra Mundial e esteve preso e internado em campos de
trabalho entre 1945 e 1953. Seguir-se-ão outras duas obras-primas admiráveis
que só lhe arranjarão problemas na URSS e que o levarão à expulsão, em 1974.
Regressará a Moscovo em 1994, teve um acolhimento triunfal. A sua nota de autor
relativamente a este livro tem bastante utilidade para a compreensão da obra:
foi escrito num campo especial, durante o inverno de 1950-1951; a decisão de
publicação foi tomada pelo Politburo do Comité Central do PCUS, em outubro de
1962, sob pressão de Krutchev, terá edições grandiosas, que serão destruídas
nas bibliotecas públicas em 1971-1972; a primeira edição não censurada surgirá
em Paris em 1973. E o autor dá outra explicação: “A figura de Ivan Deníssovitch
foi composta a partir do soldado Chúkhov, um companheiro de combate do autor na
guerra soviético-alemã (mas que não esteve nos campos), e enriquecida pela
experiência dos prisioneiros e do próprio autor quando trabalhou como pedreiro
do campo especial. Todas as outras personagens são reais, recolhidas da vida no
campo, e as suas biografias são autênticas”.
Não
é a primeira vez que uma obra-prima da literatura decorre exclusivamente ao
longo de um dia, basta lembrar o fenomenal Ulisses, da James Joyce, e Mrs
Dalloway, por Virginia Woolf. Soljenítsin descreve o dia, logo ao romper da
alva até ao momento em que os prisioneiros, extenuados, regressam à camarata.
Daí a dureza e concisão dos dois primeiros parágrafos:
“Às cinco da manhã, como sempre, soou o toque da alvorada
– golpes de martelo numa barra de carril junto à barraca do comando. O som
entrecortado penetrou debilmente através das vidraças cobertas por dois dedos
de gelo e depressa se calou: estava frio, e o vigilante não queria ficar a
agitar o braço por muito tempo.
O tinido cessou, mas fora da janela continuava a
escuridão, como a meio da noite, quando Chúkhov se levantou para ir ao balde; à
janela chegava a luz amarela de três candeeiros – dois no perímetro, um no
interior do campo. Por qualquer razão não tinham vindo destrancar a barraca,
nem se ouvira enfiar o balde das fezes nas varas para o levar dali”.
Novo dia, as cadenciadas rotinas do costume, as tarefas
pré-programadas, vamos saber quem é quem na hierarquia do campo, há vigilantes,
chefes da brigada, chefe distribuidor, guarda de serviço, fascinas, subchefes,
gente que tem tratamento de cidadão chefe, brigadas com número, reclusos
habitualmente desdentados, avançam para o refeitório, comem com os gorros na
cabeça, um caldo com espinhas e depois papas de sorgo, é a principal refeição
do dia, Chúkhov está adoentado ainda pensa pedir baixa no posto médico,
lembrou-se que mesmo na enfermaria ninguém ficava deitado, o número de
internados é limitado, correu para a praça de formatura, os horários são para
respeitar, as punições são muitas. E começa o dia de trabalho, sabemos como os
reclusos andam vestidos, como praticam troca de serviços, lá vão escoltados
para o trabalho. Mas quem é Chúkhov? Foi condenado por traição à pátria, foi o
que ele foi obrigado a confessar, rendeu-se desejando trair a pátria, e voltou
do cativeiro porque vinha cumprir uma missão da espionagem alemã. “Que missão
era essa, nem Chúkhov foi capaz de imaginar, nem o oficial que conduzia o
processo se lembrou de inventar. Na contraespionagem foi muito espancado. E o
cálculo de Chúkhov era simples: se não assinasse, ganhava um sobretudo de
madeira; se assinasse, ao menos ainda viveria um pouco. Assinou”. Stalin era
implacável com os soviéticos prisioneiros alemães, tivessem ou não tentado
fugir do cativeiro, etiquetados como traidores foram destinados ao trabalho
forçado, tornaram-se uma das principais mão-de-obra dos Gulag.
É uma narrativa soberba, a descrição de todas estas
figuras humanas, o espaço onde habitam, o delírio da vigilância, a hierarquia
cruel em que vivem todos os reclusos, a arbitrariedade dos castigos, à menor
falha espreita a masmorra ou a solitária. A total ausência de direitos. Chegam
encomendas ao campo, há que humilhar ainda mais: “Abrem a caixa de encomenda
com um machado, o vigilante retira tudo com as suas mãos, verifica. Cortam,
quebram, remexem, despejam. Se há alguma coisa líquida, em boiões de vidro ou
em latas, destapam, despejam, e só se pode aparar com as mãos ou uma toalha.
Não entregam boiões nem latas, têm medo. Se há pastéis, ou doces, ou enchidos,
ou peixe, o vigilante mete o dente. E quando acabam de revistar a encomenda,
também não entregam a caixa em que veio, e é preciso enfiar tudo na bolsa, ou
na aba do capote, e toca a andar, o seguinte”.
Aquele campo de trabalho forçado é também uma imagem da
natureza humana, o autor deixa-nos prodigiosas águas-fortes, impossíveis de
esquecer: “O chefe do refeitório é um canalha cevado, com uma cabeça que parece
uma abóbora e os ombros largos. Tem um tal excesso de forças e caminha a
saltitar, como se tivesse molas nas pernas e também nos braços. Usa um gorro
branco de peles, sem número, como nenhum livre tem igual. E um colete de pele
de coelho, com um pequeno número no peite, como um selo do correio. O chefe do
refeitório não cumprimenta ninguém, e todos os reclusos o temem. Tem milhares
de vidas na sua mão. Uma vez quiseram espancá-lo, mas todos os cozinheiros, uns
monstros igualmente alentados, vieram em sua defesa”. As horas do dia passam, e
Ivan Deníssovitch contabiliza que foi um dia de sucesso, nem a comida faltou,
saboreia ao jantar a couve com o resto do líquido, parece alheado, mas deu para
ver um velho alto, o U-81. “Sobre este velho, Chúkhov ouvira dizer que não
tinham já conta os anos que andavam pelos campos e prisões, desde que existia o
poder soviético. Não tinha sido abrangido por nenhuma amnistia, e assim que
terminava dez anos de pena, logo lhe davam mais dez”. Naquela noite alguns
partem para o cárcere, vão dormir em cima de tábuas nuas, chão de cimento,
nenhuma janela, trezentas gramas de pão por dia, e a sopa só no terceiro, no
sexto, e no nono dias.”
Chúkhov adormeceu, quase feliz: não o meteram no cárcere,
não mandaram a brigada para a Cidade do Socialismo, ao almoço tinha surripiado
umas papas, tinha comprado tabaco. E não adoecera, aguentara-se. “Dias como
este durante o período da sua pena, entre um toque e outro toque, contaram-se
três mil seiscentos e cinquenta e três.”
Obra-prima absoluta.
Mário Beja Santos
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