A Lisboa do Estado Novo em plena Segunda Guerra Mundial:
Vibrante como um esplêndido thriller, ao nível do
grande rigor historiográfico
Dez anos depois da primeira edição, este professor
catedrático da University College London é republicado em Portugal, trata-se de
uma investigação apuradíssima, uma escrita cintilante e altamente acessível,
credora de leitura atenta, Lisboa: A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz,
1939-1945, por Neill Lochery, Casa das Letras, 2021. O autor defende que
Lisboa foi uma encruzilhada fundamental oferecida por um país neutral que
acolheu gente de muitas nacionalidades em trânsito para outras paragens, aqui
trabalhou um número impressionante de espiões e se constituiu um centro de
comércio de minérios raros, por Lisboa passaram celebridades, desde os Duques
de Windsor, o traidor britânico Kim Philby, a colecionadora de arte Peggy
Guggenheim, os artistas Marc Chagall e Max Ernst, os escritores Graham Greene e
Saint Exupéry, mas também oposicionistas do nazi-fascismo sujeitos a severa
vigilância e postos a viver na Ericeira ou nas Caldas da Rainha, sobretudo.
É um tempo único de uma cidade em cujo aeroporto
aterravam aviões dos Aliados e do Eixo, de onde os hidroaviões partiam para as
Américas. A figura central era Salazar, ele considerava que a Segunda Guerra
Mundial incorporava duas grandes ameaças para o país: uma potencial invasão
alemã ou espanhola e a possibilidade de o país perder o seu Império, quando se
tornou inevitável a derrota alemã, Salazar passou a viver obcecado por uma
Europa onde os soviéticos tinham um papel determinante político. O ditador
certamente não desconhecia que o anterior Primeiro-Ministro britânico, Neville
Chamberlain, tentara aplacar a sofreguidão territorial de Hitler oferecendo-lhe
Angola. Ao longo da sua primorosa e
aguda investigação, Neill Lochery marca a distinção dos dois períodos em que
mudaram as prioridades de Salazar durante a guerra, numa primeira fase, entre
1939 e 1942, dedicou-se a evitar a ameaça de invasão por parte do Eixo e de
1943 até ao termo da guerra teve de lidar com as cada vez maiores exigências
dos Aliados, para estes assegurar os Açores como plataforma de tráfego aéreo
era primordial. O autor não esquece a importância do volfrâmio, ingrediente
vital da máquina de guerra alemã, irá dar enorme controvérsia a sua venda até
ser sustada em 1944. E há uma polémica que permanece, não só em torno desse
volfrâmio como de outras exportações, como o autor alerta: “Durante a guerra, o
ouro era uma forma de pagamento muito mais segura do que o papel-moeda, mas os
Aliados punham em causa as origens de uma grande percentagem dele. Afirmavam
que esse ouro fora, num primeiro momento, saqueado nos países ocupados pelos
alemães e, mais tarde, tirado às vítimas do Holocausto. No final da guerra, os
nazis contrabandearam ouro para Lisboa, de onde partia para o Brasil e dali se
dispersava para a América do Sul. Alegadamente, a caixa-forte do Banco de
Portugal alberga até hoje barras de ouro marcadas com as insígnias nazis. Numa
revelação embaraçosa, a Igreja Católica portuguesa foi obrigada a admitir que
pagou obras no Santuário de Fátima com barras de ouro nazi que tinha
misteriosamente obtido do Banco de Portugal”.
Neill Lochery descreve o burburinho da cidade, havia o
fausto da Exposição do Mundo Português que contrastava com o estado da
capital-refúgio: “Decadente, pobre e a precisar desesperadamente de se
reinventar, Lisboa era, em setembro de 1939, uma espécie de Bela Adormecida
descurada. A poucos minutos a pé da elegância dos cafés do Rossio, nem o
espetacular céu outonal, de um azul vívido, era capaz de ocultar o facto muitos
dos outrora belíssimos edifícios da cidade revelarem agora as consequências de
décadas de má manutenção”. E é detalhado na descrição da apresentação da
cidade, que à noite era uma cidade barulhenta, com cães a latir e os galos a
cantar. “Enquanto as luzes se iam apagando pelo resto da Europa, Lisboa
permanecia intensamente iluminada: os anúncios publicitários a cintilar no topo
dos edifícios juntavam-se à ofuscante luz branca dos postos de iluminação
pública”.
Temos uma narrativa sobre Salazar e o salazarismo, como o
regime se foi preparando para a guerra, edificando a estratégia da
neutralidade, acolhendo os fugitivos do nazismo e do fascismo, e temos uma
observação dada pelo escritor Arthur Koestler, refugiado em lisboa durante 7
semanas, aqui encontrou inspiração para escrever o livro Arrival and
Departure: “Lisboa era o gargalo da Europa, a última porta aberta de um
campo de concentração, a maior parte da superfície do Continente. Ao
observar-se aquela interminável procissão, percebia-se que o catálogo de razões
possíveis para se ser perseguido sob a Nova Ordem era muito mais longo do que
até um especialista podia imaginar: na verdade, ia do austríaco monárquico a
judeu sionista. Nações, religiões e partidos europeus, todos eles estavam
representados naquela procissão, incluindo nazis alemães da fação opositora e
fascistas italianos caídos em desgraça”. Dá-nos o ponto da situação dos refugiados,
o ato heroico de Aristides de Sousa Mendes, a tentativa rocambolesca dos
alemães em querer capturar o Duque de Windsor, são mostradas as organizações
judaicas que procuravam encaminhar o povo perseguido para a América ou até para
a Palestina, temos o quadro movimentado dos espiões e até dos agentes duplos.
A entrada dos Estados Unidos na guerra introduziu um
elemento novo, a corrida quase desesperada para comprar volfrâmio por parte dos
alemães, a descoberta pela PVDE de uma rede britânica que viera organizar um
plano de destruições no caso de haver uma invasão alemã, foi um período de
péssimas relações entre britânicos e Salazar, fala-se inclusivamente do voo
777A em que morreu o ator Leslie Howard e Wilfrid Israel, uma figura
fundamental no apoio aos judeus. E temos os Açores, cobiçados pelos Aliados,
Salazar a demorar a resposta, ainda temia represálias alemãs, foram negociações
penosas, Salazar sabia que não podia recusar o apoio que lhe era solicitado.
Assunto inevitável e quase omnipresente é a questão do
ouro nazi, a sua proveniência dos bens espoliados aos judeus ou pilhado dos
países ocupados. “Em 1943, já era claro que havia ouro roubado aos judeus. Esse
ouro provinha de dentes, relógios, anéis e outras joias das vítimas do
Holocausto, que eram posteriormente derretidos pela Casa da Moeda Prussiana e,
em Frankfurt, pela empresa Degussa. De seguida, o ouro era transformado em
barras e recebia o selo oficial do Reichsbank, de modo a aparentar ter uma
origem oficial. As barras eram enviadas para o Banco Nacional Suíço, que as
comercializava normalmente. Por volta do final da guerra, os alemães
esforçaram-se por salvar o ouro encontrado em território alemão e francês.
Lisboa era um destino óbvio: ali, poderia ser vendido na bolsa ou
contrabandeado para a América do Sul”.
Obra indispensável para conhecer a visão do historiador
britânico sobre o desempenho do Estado Novo e a importância de Lisboa durante a
Segunda Guerra Mundial.
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