sexta-feira, 8 de abril de 2022

Histórias sobre Lisboa, peripécias com uma criatividade apurada, Lisboa agradece.

 

 



 

Trata-se de um guia destinado a turistas que pretendam um desdobrado e fresco olhar sobre esta cidade infinita, de muitos pergaminhos e porto de abrigo para vários povos, hoje destino incontornável para visitantes que procuram a melhor mistura entre passado e vanguardas. É esta a essência do roteiro Lisboa em 10 Histórias, por Joke Langens e Dirk Timmerman, Casa das Letras, 2022, não conheço incursão tão invulgar para enaltecer uma das capitais mais antigas da Europa, um olhar remoçado e destinado a leitura perpétua.

Tudo começa na Mouraria, passa por animais exóticos que monarcas poderosos expediram pela Europa fora, há a narrativa de um terramoto que reconfigurou o centro da cidade, descobrem-se ligações entre as invasões francesas e o fado, pede-se ao visitante que olhe com desvelo a calçada portuguesa, os elevadores que sobem e descem colinas, recorda-se aos mais esquecidos que a neutral Lisboa era percorrida por espiões dos Aliados e do Eixo, do incêndio do Chiado o arquiteto Siza Vieira remontou as peças queimadas da Baixa, introduzindo-lhe uma pitada de vida de bairro, avançamos para a Expo 98 onde se desenhou uma cidade futurista que parece querer avançar entre as ruínas do passado da Lisboa Oriental  e, por fim, fala-se de Bordallo II, alguém que mexe no lixo para construir animais emblemática, é manifestação de vanguarda porque que tais animais são feitos do mesmo material que ameaça a sua sobrevivência. São estes os episódios que o roteiro explora, e com êxito absoluto.

Digamos que este guia aparece vocacionado para acicatar a curiosidade do forasteiro. Ele entra na Mouraria, não poderá haver a Grande Mesquita, nem os becos estreitos e serpenteantes, nem as figueiras e oliveiras desses descendentes da mourama, poderá é contemplar a vida multiétnica ali para os lados do Martim Moniz, subir até às colinas da Graça e tomar nota do que seria a vida muçulmana antes de D. Manuel I ter decretado, em 1496, a expulsão de judeus e muçulmanos, agora os tempos são outros e por ali circulam pessoas vindas da Europa, África, América do Sul e Ásia. “Na Mouraria contemporânea coexistem muitos mundos, que nem sempre se encontram. Apesar da abundância de nacionalidade e de comunidades, diferentes grupos preferem diferentes partes do bairro, com a Rua dos Cavaleiros a funcionar como uma espécie de fronteira flexível. Mesquitas e Bollywood de um lado, igrejas católicas e fado do outro, as comunidades estrangeiras tendem a estabelecer-se mais na zona baixa da Mouraria, como o Intendente ou Martim Moniz”.

E conta-se que esse mesmo D. Manuel I resolveu enviar um elefante ao Papa Leão X, era uma oportunidade de ele mostrar a magnificência do império português, e em 12 de março de 1514 o elefante ajoelhou-se perante o Papa, dançou ao som de música e pulverizou água sobre a multidão delirante. Há também a chegada do rinoceronte a Lisboa, preparou-se um duelo com um outro elefante, tudo acabou sem incidentes. E este rinoceronte de nome Ganda, esteve destinado a ser nova oferta ao Papa Leão X, morreu durante a viagem devido a uma tempestade no Mediterrâneo. E há também a história daquele elefante, de nome Suleiman que foi eternizada por José Saramago no seu romance A Viagem do Elefante.

O que se conta sobre a desgraça que ocorreu em Dia de Todos os Santos, em 1755, é uma catástrofe natural que já foi alvo de milhares de narrativas, mas o que se escreve para forasteiro tem intensa vibração, basta imaginar esse leitor num lugar icónico, assim: “A monumental praça virada para o Tejo foi denominada Praça do Comércio, em homenagem à atividade comercial que tinha trazido vida à Baixa de Lisboa. A praça já não albergava o Paço Real, pois D. José I não tinha intenções de reconstruir o palácio no mesmo local onde tinha sido reduzido a pó. O poder Real, era, no entanto, representado pela estátua de D. José I. A Praça do Comércio era a coroa simbólica no topo de todas estas inovações pombalinas. Uma das maiores praças da Europa, abre-se majestosamente em direção ao rio Tejo. Nos séculos seguintes, este rio traria inúmeros visitantes a Lisboa. O arco triunfal da Praça, saudá-los-ia e mostraria como a capital portuguesa se tinha erguido como uma fénix das ruínas e das cinzas”.

Muito surpreenderá ao leitor como se processou a ascensão gradual do fado, como este se ergueu a canção nacional, que acontecimentos motivaram tal ascensão nomeadamente a partir do século XIX, a seu propósito falar-se-á da Severa e de Amália Rodrigues, e daqui avançamos para a calçada portuguesa, uma das singularidades artísticas que muito deve à determinação de Eusébio Cândido Furtado, tenente-general da prisão do Castelo de S. Jorge, que encontrou a solução de ocupar os seus presos pondo-os a pavimentar uma parte da cidade, deve-se a este general os desenhos da praça do Rossio e depois esta loucura de pedra calcária espalhou-se como uma febre por toda a Lisboa, a calçada tem dons universais, encontramo-la em Ponta Delgada, nas antigas colónias portuguesas, mas também na cidade do Cabo, nos EUA, e muito mais. E explica-se ao forasteiro a sua proveniência: “O calcário branco tem, de preferência, uma superfície lisa e brilhante. O mesmo só pode ser extraído de um número limitado de locais, como as Serras de Aire e Candeeiros – cadeias montanhosas partem do Maciço Calcário Estremenho, e na costa algarvia. A pedra de lioz, um tipo de pedra calcária portuguesa dos arredores de Lisboa, pode ser utilizada como alternativa. Nos primeiros tempos da calçada portuguesa, a rocha basáltica era utilizada para formar os elegantes padrões negros na pedra calcária. Mas como o basalto tem uma pontuação bastante elevada na escala de resistência, foi posteriormente substituído por pedra calcária preta. Muito mais difícil de encontrar do que o seu homólogo branco, a pedra calcária preta, de locais como Mem Martins ou Porto de Mós”. É uma das mais belas e inspiradas observações que os autores nos deixam.

Impõe-se brevidade para estimular o leitor a esta leitura, será surpreendido com o historial dos nossos ascensores, com as voltas e reviravoltas da Lisboa em espionagem durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo foi aqui o local de algumas das negociações do armistício entre a Itália e os Aliados, Hitler foi completamente surpreendido com a rendição da Itália, a 8 de setembro de 1943, também se contam as histórias de célebres agentes duplos como Dusko Popov e Juan Pujol de Garcia. E muito de fascinante há a ler sobre Siza Vieira e o Chiado, a Expo 98 e Bordallo II e os seus animais feitos a partir de resíduos urbanos.

Leitura imperdível.


Mário Beja Santos

 

 

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