Trata-se de um guia destinado a turistas que pretendam um
desdobrado e fresco olhar sobre esta cidade infinita, de muitos pergaminhos e
porto de abrigo para vários povos, hoje destino incontornável para visitantes
que procuram a melhor mistura entre passado e vanguardas. É esta a essência do
roteiro Lisboa em 10 Histórias, por Joke Langens e Dirk Timmerman, Casa
das Letras, 2022, não conheço incursão tão invulgar para enaltecer uma das
capitais mais antigas da Europa, um olhar remoçado e destinado a leitura
perpétua.
Tudo começa na Mouraria, passa por animais exóticos que
monarcas poderosos expediram pela Europa fora, há a narrativa de um terramoto
que reconfigurou o centro da cidade, descobrem-se ligações entre as invasões
francesas e o fado, pede-se ao visitante que olhe com desvelo a calçada
portuguesa, os elevadores que sobem e descem colinas, recorda-se aos mais
esquecidos que a neutral Lisboa era percorrida por espiões dos Aliados e do
Eixo, do incêndio do Chiado o arquiteto Siza Vieira remontou as peças queimadas
da Baixa, introduzindo-lhe uma pitada de vida de bairro, avançamos para a Expo
98 onde se desenhou uma cidade futurista que parece querer avançar entre as
ruínas do passado da Lisboa Oriental e,
por fim, fala-se de Bordallo II, alguém que mexe no lixo para construir animais
emblemática, é manifestação de vanguarda porque que tais animais são feitos do
mesmo material que ameaça a sua sobrevivência. São estes os episódios que o
roteiro explora, e com êxito absoluto.
Digamos que este guia aparece vocacionado para acicatar a
curiosidade do forasteiro. Ele entra na Mouraria, não poderá haver a Grande
Mesquita, nem os becos estreitos e serpenteantes, nem as figueiras e oliveiras
desses descendentes da mourama, poderá é contemplar a vida multiétnica ali para
os lados do Martim Moniz, subir até às colinas da Graça e tomar nota do que
seria a vida muçulmana antes de D. Manuel I ter decretado, em 1496, a expulsão
de judeus e muçulmanos, agora os tempos são outros e por ali circulam pessoas
vindas da Europa, África, América do Sul e Ásia. “Na Mouraria contemporânea
coexistem muitos mundos, que nem sempre se encontram. Apesar da abundância de
nacionalidade e de comunidades, diferentes grupos preferem diferentes partes do
bairro, com a Rua dos Cavaleiros a funcionar como uma espécie de fronteira
flexível. Mesquitas e Bollywood de um lado, igrejas católicas e fado do outro,
as comunidades estrangeiras tendem a estabelecer-se mais na zona baixa da
Mouraria, como o Intendente ou Martim Moniz”.
E conta-se que esse mesmo D. Manuel I resolveu enviar um
elefante ao Papa Leão X, era uma oportunidade de ele mostrar a magnificência do
império português, e em 12 de março de 1514 o elefante ajoelhou-se perante o
Papa, dançou ao som de música e pulverizou água sobre a multidão delirante. Há
também a chegada do rinoceronte a Lisboa, preparou-se um duelo com um outro
elefante, tudo acabou sem incidentes. E este rinoceronte de nome Ganda,
esteve destinado a ser nova oferta ao Papa Leão X, morreu durante a viagem
devido a uma tempestade no Mediterrâneo. E há também a história daquele
elefante, de nome Suleiman que foi eternizada por José Saramago no seu
romance A Viagem do Elefante.
O que se conta sobre a desgraça que ocorreu em Dia de
Todos os Santos, em 1755, é uma catástrofe natural que já foi alvo de milhares
de narrativas, mas o que se escreve para forasteiro tem intensa vibração, basta
imaginar esse leitor num lugar icónico, assim: “A monumental praça virada para
o Tejo foi denominada Praça do Comércio, em homenagem à atividade comercial que
tinha trazido vida à Baixa de Lisboa. A praça já não albergava o Paço Real,
pois D. José I não tinha intenções de reconstruir o palácio no mesmo local onde
tinha sido reduzido a pó. O poder Real, era, no entanto, representado pela
estátua de D. José I. A Praça do Comércio era a coroa simbólica no topo de
todas estas inovações pombalinas. Uma das maiores praças da Europa, abre-se
majestosamente em direção ao rio Tejo. Nos séculos seguintes, este rio traria
inúmeros visitantes a Lisboa. O arco triunfal da Praça, saudá-los-ia e
mostraria como a capital portuguesa se tinha erguido como uma fénix das ruínas
e das cinzas”.
Muito surpreenderá ao leitor como se processou a ascensão
gradual do fado, como este se ergueu a canção nacional, que acontecimentos
motivaram tal ascensão nomeadamente a partir do século XIX, a seu propósito
falar-se-á da Severa e de Amália Rodrigues, e daqui avançamos para a calçada
portuguesa, uma das singularidades artísticas que muito deve à determinação de
Eusébio Cândido Furtado, tenente-general da prisão do Castelo de S. Jorge, que
encontrou a solução de ocupar os seus presos pondo-os a pavimentar uma parte da
cidade, deve-se a este general os desenhos da praça do Rossio e depois esta
loucura de pedra calcária espalhou-se como uma febre por toda a Lisboa, a
calçada tem dons universais, encontramo-la em Ponta Delgada, nas antigas
colónias portuguesas, mas também na cidade do Cabo, nos EUA, e muito mais. E
explica-se ao forasteiro a sua proveniência: “O calcário branco tem, de
preferência, uma superfície lisa e brilhante. O mesmo só pode ser extraído de
um número limitado de locais, como as Serras de Aire e Candeeiros – cadeias
montanhosas partem do Maciço Calcário Estremenho, e na costa algarvia. A pedra
de lioz, um tipo de pedra calcária portuguesa dos arredores de Lisboa, pode ser
utilizada como alternativa. Nos primeiros tempos da calçada portuguesa, a rocha
basáltica era utilizada para formar os elegantes padrões negros na pedra
calcária. Mas como o basalto tem uma pontuação bastante elevada na escala de
resistência, foi posteriormente substituído por pedra calcária preta. Muito
mais difícil de encontrar do que o seu homólogo branco, a pedra calcária preta,
de locais como Mem Martins ou Porto de Mós”. É uma das mais belas e inspiradas
observações que os autores nos deixam.
Impõe-se brevidade para estimular o leitor a esta
leitura, será surpreendido com o historial dos nossos ascensores, com as voltas
e reviravoltas da Lisboa em espionagem durante a Segunda Guerra Mundial, por
exemplo foi aqui o local de algumas das negociações do armistício entre a
Itália e os Aliados, Hitler foi completamente surpreendido com a rendição da
Itália, a 8 de setembro de 1943, também se contam as histórias de célebres
agentes duplos como Dusko Popov e Juan Pujol de Garcia. E muito de fascinante
há a ler sobre Siza Vieira e o Chiado, a Expo 98 e Bordallo II e os seus
animais feitos a partir de resíduos urbanos.
Leitura imperdível.
Mário Beja Santos
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