terça-feira, 9 de agosto de 2022

Não há memórias da Lisboa do Estado Novo como estas.

 

 



 

Jorge Calado, nascido em 1938, doutor em Química-Física, professor catedrático jubilado, escritor e publicista (continua como crítico cultural do Expresso desde 1986), dá-nos um livro surpreendente (Mocidade Portuguesa, por Jorge Calado, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2022), não se cansa de nos advertir de que goza de uma memória ímpar e sobre ela tece considerações avulsas que acabam por enriquecer a viagem inesquecível que nos proporciona, assim: “A memória é multidirecional e funciona nos dois sentidos: na juventude, usamos a memória para projetar o futuro, na velhice, para recordar o passado. A inflexão ocorre algures pelo meio. Quando relatava factos, usos e costumes da minha infância, notava que grande parte dos meus interlocutores os haviam esquecido, enquanto os jovens me escutavam como se eu estivesse a contar histórias da carochinha.” Dirá mais adiante: “Hoje vejo a memória como um museu cujo conteúdo é preciso estudar, preservar e divulgar.”

Estamos, pois, em finais de 1930, o Jorge nasceu em casa, com acompanhamento da parteira, não esqueceu a tradição do Dia de Reis, pois nasceu a 6 de janeiro, e lembra-nos as guloseimas daquele tempo, não nos vai encobrir as suas predileções de gastrófilo e gastrónomo: “Tenho saudades dos sabores da minha infância, quase todos oriundos do Ribatejo: os bolos-de-cabeça, a broa de milho, a morcela de arroz, a uva-maçã cor-de-rosa e carnuda, a erva-doce das broas de Todos-os-Santos, os ouregos para temperar o tomate acabado de colher.” Despertou pela observação e a cozinha foi um dos seus laboratórios: “Gostava de seguir as mãos habilidosas da minha mãe moldando as massas cruas em formas estranhas. Uns pós ou cristais (farinha, açúcar, fermento ou bicarbonato de sódio, às vezes sal) mais uns líquidos (água, leite, porventura um cálice de licor ou de vinho do Porto) e uma pasta (manteiga), vida em miniatura (ovos), e proporções variáveis, formavam o barro primordial de que eram feitos doce e salgados. Verifiquei que no girar e bater é que estava a graça, e que a consistência, isto é, a viscosidade e plasticidade da massa, mudava com o trabalho mecânico da colher de pau. Eram as minhas primeiras aulas de reologia, a ciência que estuda a deformação dos materiais sob a ação do trabalho aplicado. A cozinha não era o estômago, mas sim o coração da casa.”

Tudo vai da hora a que o leitor se vai assombrando com esta narrativa, haverá sempre o despertar o apetite com sopas e guisados. Segue-se o quadro das refeições, não esqueceu o papel axial das sobras, naqueles tempos a palavra desperdício era anátema. E descreve a vida doméstica, apresenta-nos os familiares, vive num ambiente de classe média que não fugia ao paradigma de que a poupança era dogma de fé, na sua juventude conhecerá as senhas de racionamento, claro está que os portugueses procuravam o tradicional desenrascanço. E para os mais novos aborda um tema que deve ser sentido como historieta e nada mais: “A roupa passava dos mais velhos para os mais novos. Fatos antigos e gastos do meu pai eram oferecidos aos membros mais necessitados da família, e depois adaptados ao novo corpo. Coisas velhas, avariadas ou partidas não se deitavam fora; antes eram recicladas e/ou remendadas ou passajadas. Aplicavam-se cotoveleiras às mangas de casacos e camisolas puídas pelo uso, e nós fundilhos aos calções gastos; viravam-se punhos e colarinhos às camisas coçadas do meu pai; os sapatos levavam tacões, biqueiras, meias solas ou solas inteiras novas (…)”. Não esquece as costureiras e o seu papel crucial na economia doméstica. Rememora a lida da casa, então toda ela manual, só pelo adiante é que lá apareceram o frigorífico e o aspirador (e o esquentador?). E há recordações da comunicação social da época, a rádio estava então no altar. E traz para primeiro plano uma questão higiénica, não completamente ultrapassada, mas de aspetos momentosos no tempo: “É difícil imaginar hoje o que era a vida quotidiana numa época em que não havia inseticidas e antibióticos. Ele era percevejos, pulgas, piolhos, formigas, melgas, além das omnipresentes moscas e baratas. As técnicas usadas para os exterminar eram as mais variadas. Para as baratas usava-se a barateira, uma espécie de gaiola de madeira com janelas de rede metálica, e uma entrada única no topo onde se enfiava uma manga de vidro. À noite, atraídas por um isco – em geral um naco de pão embebido em vinagre – as baratas entravam mas não conseguiam sair; na manhã seguinte eram escaldadas com água a ferver. O cheiro da barata cozida era nauseabundo, e passado pouco tempo tinha de se substituir a barateira porque o odor da barata cozida também as repelia.”

O Jorge dá-nos a saber o que era ler, escrever e contar, faz-nos emergir na sua instrução primária, nas suas leituras. Voltamos ao universo doméstico, ao pessoal que ali trabalhava, são descrições tocantes, o que ele guardou do mundo de lazeres, das audições radiofónicas é impressionante, como o abastecimento feito pelo comércio local. Outra história da carochinha é a alusão que ele faz à vizinhança, outra descrição primorosa, vamos percorrer aquele prédio da rua da Artilharia 1 por inteiro. Nesta altura da narrativa o leitor mais arredio já foi apanhado pela gola do casaco, a leitura passou a ser compulsiva, a descrição que Jorge Calado nos dá do azul é macroscópica, irrepetível. E daqui saltamos para Campolide e arredores. As pessoas dialogavam: “As fachadas dos prédios não eram mudas, como é o caso no tempo presente. As pessoas tinham tempo para estar à janela a ver quem passava na rua ou para traquinar na varanda. Como na ópera em tempos remotos, a varanda ou sacada era um camarote de observação e negócio. Conversava-se com os vizinhos, regateava-se com os vendedores ambulantes, acenava-se a amigos e conhecidos.” E há o bulício da rua e do bairro, os vendedores e as vendedeiras e os seus pregões, era um grande espetáculo.

Estamos, pois, em Campolide e vamos conhecer as redondezas. Aquela memória é exclusiva, vamos entrar na Farmácia Lab, na rua Rodrigo da Fonseca, o Jorge ia lá às vezes com a prima São comprar ventosas e/ou bichas, rebuçados peitorais, alguém vinha da farmácia dar injeções a casa. Aqui ou ali há apontamentos pessoais, é o caso do professor Pulido Valente, havia a consideração pelos mestres da ciência e do civismo. Entraremos no âmago familiar, não faltarão tias-avós e muitos primos, e por vezes acontecia um imprevisto como a chegada do tio Benjamim que foi viver lá para casa, um acontecimento. Não conheço memórias como estas, está aqui a moldura do Estado Novo vista do lado de uma classe ascendente, com o seu estatuto próprio, conhecerá um crescimento ímpar quando chegar a sociedade de consumo, então as classes médias passarão ao grau de decisores do sistema político. Teremos aqui as leituras de Jorge Calado, a vida de liceu, a chegada ao mundo peculiar do cientista, onde ele se revelou um divulgador sem rival, um exemplo: “Os aspetos mais belos da ciência está na sua habilidade em tornar simples aquilo que é verdadeiramente complexo. Quando eu era estudante li algures que a diferença entre a Física e a Química estava no facto da primeira lidar com problemas conceptualmente simples que podiam ser matematicamente resolvidos de modo exato, ao passo que a Química tratava de problemas complexos cuja solução era aproximada. A queda de um objeto no vácuo por ação da gravidade pertence à Física; a reação explosiva do oxigénio com o hidrogénio para formar água cai no domínio da Química. Conclusão: a Física é mais limpa que a Química.” Trata a sua vida sentimental com discrição e ternura, nada de espalhafatos. E conclui esta obra absolutamente original quando eclode entre nós a Covid-19.

Memórias vívidas, a comunicação é esmerada, pode tratar-se de ficção autobiográfica, mas do que não duvido é de que se trata de uma narrativa portentosa e a escrita é belíssima.

 

 Mário Beja Santos





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