Elegia, paraninfo, exaltação de um nómada poeta
singularíssimo, uma contínua veneração em Timor, pela obra, pelo intenso afeto,
pelo legado de imagens que nos deixou daquela terra que foi tão amada,
dedicou-lhe o escopo da sua investigação científica. Um pouco de tudo isto
encontramos em “Senhor da Chuva”, Ruy Cinatti, por Mara Fernandes de Sá
e Bosco Alves, Plural Editores, 2022. Sendo facto demonstrado que o poeta não
se cingiu predominantemente a Timor, a verdade é que a sua poesia mais
comprometida a este povo lhe é dedicado, tal como (atrás referido) o seu
trabalho de antropólogo, etnólogo e biólogo. A escritora portuguesa e o artista
plástico timorense de “Senhor da Chuva” convergiram para esta homenagem
centrada em dados comentados da sua biografia. São bonitas lembranças de quem
não é esquecido em Timor.
Sou forçado a uma declaração de interesse: conheci Ruy
Cinatti em 1966, pertencia ao conselho de redação do jornal Encontro, da
Juventude Universitária Católica, bati-lhe à porta para pedir um poema, ele
fazia parte de uma lista por nós aprovada de poetas a contatar (Rui Belo, Pedro
Tamen, Sophia de Mello Breyner Andresen), aceitou sem hesitar colaborar, deu-me
o primeiro septeto do livro que virá a ser premiado no ano seguinte Sete
Septetos, aporá na dedicatória: maio de 1967. Este é o segundo exemplar
dedicado antes de ter saído a publico. Nesse nosso primeiro encontro leu o
livro todo, circulava pela sala quase em transe, e muito se surpreendeu quando
lhe pedi que voltasse a ler-me uns versos que me tocava profundamente: “Tudo se
acaba. É mentira. / Há parcelas que se juntam, / se adicionam, / como a ideia e
o sentimento, / o tempo / perdido / e o momento de ação / iluminado. / Ninguém
se convença / que acaba. / Há o céu que nos espera, / a sua ilusão / remordida
até ao paroxismo. / Ou há passado / sem destino. / A dolorosa mensagem / da
nossa vida / é esta: caminhar sempre; atar as vides da vinha / vindimada. /
Saber esperar. / Andar, andar, / nem que seja de rastos.” Vendo a minha comoção
mas também a minha estupefação, Cinatti entendeu justificar-se que tivera muito
recentemente uma crise religiosa profunda, todo este elenco de septetos era um
mostruário de uma mudança em curso. Ficámos profundamente amigos, lembro que
antes de partir para Mafra, para tirar o curso de Oficiais Milicianos me
convidou para me ler em primeira mão um conjunto de versos que só será
publicado dois anos antes da sua morte, Manhã Imensa, onde ele incluía
uma prece endereçada a Timor: “Timor! Que paciência eterna! / Vinte anos de
paciência. / Ilha de mistérios densa / e gente de tez morena. / Timor, minha
ilha querida. / Minha verdade. Falida?... / a minha causa perdida! / Tem
piedade, Senhor, / Tem piedade. / Olha-me por essa gente / portuguesa, / que te
ergueu um trono, uma pedra. / Um sacrário de inocência”. E justificou-se: “Dou
comigo abrasado pela saudade de Timor, só que a minha vida agora tem que andar
dispersa até eu me reencontrar para saber para onde vou.” E foi uma das ajudas
mais preciosas que recebi durante a guerra da Guiné, a sua correspondência era
um bálsamo, eu tratava-o por “Dear Father”. Todas as alterações registadas
depois do 25 de Abril ainda não fazem parte da sua biografia, começam a ser
frequentes as manifestações de transtorno, anda pelos cafés a distribuir poemas
policopiados, edita pequenas edições, veste de preto e anda com uma grande cruz
ao peito. Nas suas ações de proselitismo, chega a ser maltratado e ferido. Nova
crise de fé. Sente-se que é Timor que o apazigua, comenta a toda a hora a
situação política, a partir de 1975. Quando o visito, vejo na sala, espalhadas
pelas mesas, folhas soltas, ele chama-lhes pensamentos avulsos. Sucedem-se as
crises de misticismo, irrita-se e chega a abandonar encontros quando lhe pedem
moderação no cigarro e no álcool. Em 56 Poemas, uma coletânea realizada
por alguém que ele quer manter em segredo, procede a um balanço de tudo quanto
se transmuta na sua nova errância por bares e cafés, acontecimentos políticos,
lembranças da botânica vêm ao de cima, fala do narciso, da esteva, do goivo, da
glicínia. A coletânea reúne poemas posteriores a 25 de Abril, período em que o
poeta tenta, creio que em vão, uma reconciliação definitiva com o pai e a irmã,
a esta dedica-lhe lancinante poema: “Ó minha irmã, abre-te e espera / as
alegrias do teu coração. / Expele de ti as víboras latentes / de uma vida que
nunca foi tua / e reanima a voz omnipotente / que te ordena: veste-te nua!”
Continuo a pensar que este extraordinário poeta aguarda
condizente biografia. Um seu amigo muito querido, Alçada Baptista, quando
Cinatti partiu para as estrelas, observou: “Agora, há que ter cuidado com a
lenda, é certo e seguro que se vai desenvolver o mito do santo de Timor para
deixar na sombra o homem que ele foi”. E, de facto, não faltam hossanas para o
trovador de Timor, parece que Cinatti não possuía ideologia política, não
deixou outra obra científica que a de Timor, que toda aquela sua poesia
posterior à revolução não era um abalo de terra que simplesmente confirmava o
que ele já sabia, o império estava agónico, era tudo uma questão de tempo; e
põe-se Cinatti no altar como se ele fosse um ente assexuado. E mais lacunas há,
só espero que para além das litanias uma universidade se lembre de que o homem
Cinatti merece ser recordado.
Mário Beja Santos
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