A historiadora Anne Applebaum conduziu uma impressionante
investigação à fome deliberada dos camponeses ucranianos, e o relato Fome
Vermelha, A Guerra de Estaline Contra a Ucrânia, Bertrand Editora, 2022, é
uma das mais impressionantes câmaras de horrores posta em letra de forma.
Estaline, ao contrário de Lenine, decretou a coletivização dos campos, forçou
os camponeses a desistir das suas terras e a aderir a quintas coletivas. Um
conjunto de colaboradores do ditador enviou-lhe mensagens urgentes de toda a
URSS, descrevendo a crise. Mas Estaline não só queria pôr de joelhos essa
Ucrânia que aspirava a soberania e ao respeito pela identidade nacional, como
precisava de todas aquelas toneladas de cereais para exportar, decretou a
rapinagem de tudo quanto se pudesse trazer das casas dos camponeses, era
preciso ter dinheiro para comprar as máquinas que levassem à industrialização
acelerada. “O resultado foi uma catástrofe: pelo menos 5 milhões de pessoas
morreram à fome entre 1931 e 1934 por toda a URSS. Entre estes, contam-se mais
de 3,9 milhões de ucranianos.” Ainda hoje os ucranianos estudam e comemoram
este extermínio, o Holodomor, o extermínio pela fome. Mas o pesadelo foi mais
longe, como refere a historiadora: “Enquanto os camponeses morriam no campo, a
polícia secreta soviética lançou em simultâneo um ataque contra as elites
intelectuais e políticas ucranianas. À medida que a fome se espalhava, foi
desencadeada uma campanha de calúnia e repressão contra intelectuais,
professores, curadores de museus, escritores, artistas, padres, teólogos,
funcionários públicos e burocratas ucranianos. Qualquer pessoa ligada à efémera
República Popular Ucraniana, que existiu durante alguns meses, a partir de
junho de 1917, qualquer pessoa que tivesse promovido a língua ou a história
ucraniana, qualquer pessoa com uma carreira literária ou artística
independente, era suscetível de ser publicamente vilipendiada, presa, enviada
para um campo de trabalho ou executada.” Como um rolo compressor encetou-se a
sovietização da Ucrânia e a neutralização de qualquer contestação à unidade
soviética. Como nos informa a autora, o livro abre em 1917 com a revolução
ucraniana e o movimento nacional ucraniano que foi aniquilado em 1932-1933.
Termina no presente, com uma discussão sobre a política de memória em curso na
Ucrânia. É um livro que reflete um quarto de século de investigação, acesso aos
arquivos de Kiev, e cresce o número de estudos, o movimento nacional ucraniano
foi reavivado em 1991, ao recusar-se fazer parte de uma federação russa a
Ucrânia fez implodir a URSS.
O mínimo que se pode dizer desta investigação é que é um
trabalho admirável, escalpeliza a questão ucraniana, as suas aspirações à soberania,
desvela a revolução de 1917 e a hostilidade do país aos bolcheviques, mas estes
voltaram, a Ucrânia submeteu-se, era vital para Moscovo manter este celeiro
disponível para impedir as fomes. A Nova Política Económica de Lenine não dava
os resultados desejados. 10 anos após a revolução, o nível de vida na União
Soviética era ainda mais baixo do que sob o jugo dos czares. Estaline irá
instituir a repressão policial, começou pelos comerciantes de cereais, a
expulsão dos kulaks, abriu-se caminho para a coletivização, e montou-se um
processo intimidatório para pôr fim a qualquer forma de ucranianização,
inventaram-se conspirações, espionagem, sedições em marcha, chegara a hora de
requisição dos alimentos. Com a coletivização, estalou a revolução nos campos,
inventaram-se novas conspirações, fizeram-se listas negras para castigos,
fomentou-se a paranoia do inimigo, em 1930 os camponeses ucranianos
revoltaram-se, foram esmagados. E temos o retrato do fracasso da coletivização,
os camponeses em fuga, Estaline exige aumentar as exportações de cereais,
usa-se mesmo os cereais como arma política: “Em 1920, exigiram, em troca dos
cereais, que a Letónia reconhecesse a República Socialista Soviética da
Ucrânia. Em 1922, o Governo soviético informou o Secretário dos Negócios
Estrangeiros britânico, lorde Curzon, de que, a menos que a Grã-Bretanha
assinasse um tratado de paz com a Rússia soviética, podiam cortar o
fornecimento de cerais aos mercados britânicos.”
E chegou a hora do cataclismo, os camponeses têm que entregar
tudo, o próprio partido comunista ucraniano estava dividido, Estaline vivia
obcecado com a perda da Ucrânia, intensificaram-se as requisições, as listas
negras, a vigilância das fronteiras. Encontrou-se um bode expiatório, para uso
interno da URSS: era o sentimento nacionalista ucraniano, antissoviético, que
levava ao fracasso das requisições, havia inimigos por toda a parte,
procedeu-se a uma purga dentro do partido comunista ucraniano, desapareceram
instituições, foram proibidas as representações teatrais em ucraniano,
fuzilou-se a intelectualidade, publicou-se uma lista de autores banidos, os
periódicos ucranianos receberam listas de palavras que não deviam ser usadas.
Seguem-se buscas e confiscações, morre-se em casa, nas ruas, no trabalho. A descrição
da autora é impressionante, logo a explicar-nos o que é a inanição: “Na
primeira fase, consome as reservas de glicose do corpo. Instalam-se as
sensações de fome extrema, a par de pensamentos constantes sobre comida. Na
segunda fase, que pode durar várias semanas, o corpo devora as proteínas,
canibalizando tecidos e músculos. À medida que os desequilíbrios extremos
começam a provocar retenção de líquidos, a pele acaba por ficar mais fina, os
olhos distendidos, as pernas e a barriga inchadas. Os mínimos esforços levam à
exaustão. Ao longo do processo, vários tipos de doenças podem acelerar a morte:
escorbuto, formas clássicas de desnutrição proteica-calórica, pneumonia, tifo,
difteria e um amplo leque de infeções de pele provocadas, direta ou indiretamente,
pela escassez de alimentos.” O leitor que se prepare para ouvir testemunhos de
sobreviventes, quadros de horror de toda a espécie, até mesmo de canibalismo.
Os pais matavam os filhos ou atiravam-nos a um poço.
Sobreviveu-se com dor, comia-se de tudo, desde comida
podre a cães, gatos e ratos, fazia-se sopas de urtigas e comia-se pão com
amaranto; a população vivia bloqueada, procurou fendas e interstícios como a
troca de joias por comida. A fome ucraniana atingiu o auge na primavera de
1933. Estaline dizia publicamente que os agentes do antigo regime iam
desaparecer. À cautela, fez-se uma operação de encobrimento. E a autora dá-nos
conta como o Holodomor passou a fazer parte da história ucraniana. “Se o estudo
da fome ajuda a explicar a Ucrânia contemporânea, mas também explica algumas
atitudes da Rússia contemporânea, muitas das quais se enquadram em padrões de
comportamento mais antigos.” Todo o discurso do ódio continua a demonizar as
pretensões do Kremlin, instrumentaliza-se a linguagem para pôr as pessoas umas
contra as outras. Milhões de pessoas foram exterminadas, a nação continua no
mapa, os ucranianos de hoje discutem e debatem o seu passado. Os arquivos estão
abertos: o extermínio pela fome mostra até que ponto o presente é moldado pelo
passado.
Mário Beja Santos
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