quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Um documento estarrecedor: Churchill publico e privado, 1940, Londres em chamas

  



O título soa um tanto romanesco para um período que oscilou entre o dramatismo e a cavalgada apocalítica da guerra, aquele determinante ano de 1940 em que Winston Churchill se pôs à frente dos destinos da Grã-Bretanha e levantou o moral do seu povo, cumpria-se o seu vaticínio de sangue, suor e lágrimas; mas o que há de completamente inédito nesta poderosa investigação que em certos momentos assume o perfil de um guião de série televisiva, vamos ver o "Velho Leão” no seu círculo político mais privado, irão assomar personalidades desconcertantes, acompanharemos a vida privada do primeiro dos resistentes, as consecutivas manobras de um político habilidosíssimo que vai atraindo o presidente Roosevelt para o combate às tiranias europeias. É um documento de leitura obrigatória: O Esplendor e a Infâmia, por Erik Larson, Publicações Dom Quixote, 2022.

Maio-junho de 1940, a França caminha para a capitulação, as forças alemãs parecem imparáveis, invadiram a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo, utilizando blindados, bombardeiros de mergulho e tropas paraquedistas, com efeitos avassaladores, os contingentes franceses esboroam-se, a força expedicionária britânica corre risco de ficar aprisionado. É neste clima que o rei Jorge VI dá posse a Churchill como primeiro-ministro. E logo ficamos a saber que a vida do primeiro-ministro não é nada fácil, tem um filho que é esbanjador, infiel e truculento, e uma filha rebelde. Entramos ao mesmo tempo no tal círculo privado de Churchill, o seu gabinete pessoal, o secretário particular, Colville, que anda embeiçado por uma menina de alta roda, sempre a esgueirar-se. Os EUA são manifestamente hostis a que se entre na guerra, preferem o isolacionismo, as relações de Churchill com o embaixador Kennedy são péssimas; o chefe do seu gabinete militar é o major-general Hastings Ismay, será outra presença permanente no grupo dos fiéis de Churchill. Churchill envia um telegrama secreto a Roosevelt, dá-lhe a saber que o Reino Unido resistirá com todas as suas forças, mas não é de excluir um Europa completamente subjugada e nazificada, pede-lhe apoio, logo o financeiro, toda a correspondência subsequente alargará o leque de pedidos, inclusivamente no campo militar. O primeiro-ministro dá primeira prioridade à produção aeronáutica, a Luftwaffe é considerada muitíssimo superior à RAF, numa escolha genial nomeia Lorde Beaverbrook ministro da produção aeronáutica, vai iniciar-se uma estranhíssima relação entre dois colossos, é uma delícia acompanhá-la neste livro, será este homem o grande impulsionador da construção de uma frota aérea se revelará temível e capaz de suster as vagas de bombardeamentos até que Hitler decrete a invasão da União Soviética, tudo será alterado, independentemente do Reino Unido sofrer ataques submarinos que provocam perdas catastróficas de alimentos e armamento.

Erik Larson gera uma teia de interligações que nos permite aferir o plano perpetrado por Göring para pôr de joelhos o Reino Unido, na sombra Hess, o considerado vice de Hitler, começa a maquinar uma tentativa de acordo, no seu delírio viajará até à Escócia, será detido até ser julgado em Nuremberga.

A um ritmo que impede o leitor de fazer pausas, iremos assistir à retirada de Dunquerque, ao aparecimento de cientistas que trarão uma enorme mais-valia ao conhecimento das tecnologias da Luftwaffe; a queda da França irá arrostar situações de uma enorme intensidade dramática, como a decisão de bombardear a frota francesa em Mers-el-Kébir, porto argelino; há os fins de semana em Chequers, repousantes para Churchill mas aonde podemos assistir a uma vida familiar heteróclita. É justamente relevado o desempenho de Lorde Beaverbrook, sempre a dizer que se metia e Churchill sempre a acalmá-lo, há os amores infelizes de Colville e os preparativos para um possível invasão alemã, Hitler ainda não decidira desencadear a operação Leão Marinho, preferia um acordo de paz, sempre recusado por Churchill e vai começar a dinâmica dos bombardeamentos, eles acentuam-se a partir de agosto, terão o seu ponto alto em novembro, já se intimidara Londres, Coventry será fustigada brutalmente, torna-se no símbolo da destruição pela barbárie, como Erik Larson escreverá: “As incendiárias salpicaram os telhados e terrenos da famosa Catedral St. Michael, a primeira das quais caiu por volta das oito da noite. Uma caiu no telhado, que era feito de chumbo. O fogo derreteu o metal, fazendo-o pingar no interior da madeira e pegando-lhe fogo. A equipa de bombeiros não pôde fazer mais do que ficar a ver. A conduta de água tinha sido destruída por uma bomba. À medida que o fogo avançava e começava a consumir o coro, as capelas e as pesadas vigas de madeira do telhado, alguns funcionários da igreja correram lá para dentro para resgatar tudo o que conseguiam. O prior da catedral escreveu que todo o interior estava transformado numa massa fervilhante de chamas e de pilhas de vigas e madeiras flamejantes, envoltas e encimadas por um denso fumo cor de bronze.” E o autor faz-nos estremecer com cenas de horror, cães com membros humanos na boca, corpos decapitados, torços carbonizados. Prosseguem as escaramuças entre o primeiro-ministro e o seu ministro hipersensível, Churchill chega a atingir grandes níveis de epistolografia, do género: “Não tem o direito, no auge de uma guerra como esta, de me onerar com os seus fardos. Ninguém sabe melhor do que você quanto dependo de si para conselho e conforto. Não deve esquecer, perante pequenas contrariedades, a vasta escala de acontecimentos e o palco bem iluminado da história em que nos encontramos”.

Há magníficas descrições como um jantar Glasgow, Churchill bem adoentado ao lado de Hopkins, o representante que Roosevelt nomeara para apurar a situação da Grã-Bretanha, Churchill pergunta-lhe o que é que ele irá dizer ao presidente e Hopkins recitou uma passagem bíblica do Livro de Rute: “Aonde fores irei; onde ficares ficarei; o teu povo será o meu povo; e o teu Deus será o meu Deus”. Churchill chorou. Empolgante é a descrição da viagem de Averell Harriman, enviado especial de Roosevelt junto de Churchill, haverá mesmo uma passagem por Lisboa em que o político comprará um saco de tangerinas para oferecer a Clementine, esta ficará deslumbrada. E não se pode perder a viagem de Churchill aos Estados Unidos, ficou na Casa Branca, à hora da deita Churchill foi para o seu quarto e conversa animadamente com o seu colaborador Thompson, batem à porta, é Roosevelt na sua cadeira de rodas. Churchill está nu e diz ao presidente, não tenho nada a esconder. “Churchill prosseguiu, atirando uma toalha sobre o ombro, e durante a hora seguinte conversou com Roosevelt, enquanto andava pelo quarto nu, a beber a sua bebida, de vez em quando voltando a encher o copo do presidente. O inspetor Thompson irá escrever que Churchill não teria sequer pestanejado se a Sra. Roosevelt também tivesse entrado no quarto.”

É inspiradora esta obra, neste nosso tempo, ao vermos a resiliência de Churchill, temos aqui a esperança e o exemplo da resistência quando os tiranos nos batem à porta.

De leitura obrigatória, pois.


 Mário Beja Santos





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