Apresentação de O Estado Novo de Salazar
–
Uma terceira via autoritária na era do fascismo
Começo por saudar o coordenador, António
Costa Pinto, amigo de muitos anos, e todos os colaboradores deste livro,
dizendo-lhes, antes de mais, e com toda a franqueza, que estais perante um erro
de casting, e por uma razão muito
simples: tendo investigado há uns anos alguns aspectos do salazarismo, não faço
investigação há algum tempo nesta área (em bom rigor, em área nenhuma), ou
seja, distraí-me, deixei passar este e muitos outros comboios, e há dias,
quando comecei a folhear este livro, apercebi-me da complexidade, da
diversidade e da profusão de estudos que actualmente existem sobre o Estado
Novo, fruto do dinamismo que este campo alcançou, do trabalho das novas
gerações de investigadores, cuja precariedade não afectou a qualidade, do nível
de internacionalização que aqui se atingiu, existindo muita investigação de
estrangeiros ou obras colectivas co-organizadas por estrangeiros.
O estudo do Estado Novo mudou, e mudou
muito, sem dúvida para melhor no que ao alargamento de horizontes respeita, e é
de elementar justiça afirmar, hoje e aqui, que o principal artífice desta
mudança se chama António Costa Pinto.
Trata-se do culminar de uma
trajectória por ele iniciada há anos – não diria há muitos e muitos anos, pois
o António ainda é jovem – e começada logo nos trabalhos do seu doutoramento em
Florença, em 1992. Logo aí, seja no ensaio sobre os «camisas azuis» de Rolão
Preto, seja no livro de enquadramento sobre o salazarismo e o fascismo europeu,
se notava o propósito de situar o estudo do regime de Salazar num contexto mais
vasto, com vista a romper o círculo vicioso em que caíra a discussão paroquial
sobre se o regime do Estado Novo fora ou não um fascismo.
Compreender o Estado Novo no ambiente
internacional da época, o tempo dos fascismos do entre-guerras, não significa
perdoar-lhe os defeitos ou negar-lhe a natureza de ditadura. Eis um caso
clássico em que tout compreendre não
é tout pardonner, longe disso.
Simplesmente, e na peugada daqueles que, em obras notáveis, tinham desbravado
os primeiros caminhos para um estudo histórico do salazarismo, de Manuel Lucena
a Braga da Cruz, passando por Fernando Rosas ou Fátima Patriarca, importava dar
um passo adiante, sem necessariamente ir contra o que já se havia avançado; e esse
passo adiante, até por força de ter sido dado por António Costa Pinto numa
instituição estrangeira e internacional, passava necessariamente por um esforço
comparativo.
António Costa Pinto foi, assim, o
primeiro historiador que se debruçou sobre o Estado Novo a partir de fora,
duplamente a partir de fora: fazendo-o inserido numa rede internacional de
colegas que historiavam os autoritarismos e fazendo-o com o benefício da
distância em relação às controvérsias domésticas que radicavam, na maioria das
vezes, em apriorismos ideológicos de parte a parte, como, de resto, ainda hoje em
dia sucede, aliás.
Para alguns, mais provincianos,
tratou-se de um excesso de estrangeiramento, mas o decurso do tempo mostraria
que era este o caminho certo, o caminho da internacionalização, que acabaria
por se converter no paradigma das ciências sociais portuguesas, porventura
excessivamente em certos casos, diria eu.
Este cosmopolitismo deu a António
Costa Pinto outra vantagem, tremenda e muito invejada: deu-lhe uma visão distanciada,
distendida e complacente em face das misérias do nosso quotidiano académico
(que, no entanto, continua a acompanhar com a ávida curiosidade de uma
porteira), uma tolerância face às falhas alheias e próprias, uma joie de vivre e um espírito de
convivialidade, de amizade, de diálogo aberto e moderação que fazem dele um
caso singular da nossa academia.
A preocupação em situar os temas e os problemas
em contextos mais vastos, a par dos contactos internacionais que a sua
transbordante simpatia foi forjando por esse mundo fora, levaram António Costa
Pinto, naturalmente, para os estudos comparatísticos, que desenvolveu não
apenas na História, mas noutro dos seus domínios de interesse, a ciência
política, de que é exemplo o Oxford
Handbook of Portuguese Politics, que coordenou com Pedro Magalhães e Jorge
Fernandes e que em breve será publicado entre nós.
E
agora, nos seus trabalhos mais recentes, começa a trilhar até caminhos
jurídicos, ligados ao constitucionalismo comparado ou àquilo a que pomposamente
se chama o interconstitucionalismo.
Ou seja, António Costa Pinto foi o
primeiro e o pioneiro no estudo comparado do salazarismo, sendo este livro o
culminar desse percurso de três décadas. Mas há, naturalmente, uma evolução
notável: enquanto no passado estudou a circulação dos modelos de fora para dentro, ou seja, aquilo que
o salazarismo terá recebido do fascismo europeu e dos demais autoritarismos,
agora dá-se um passo mais ousado, muitíssimo mais ousado (e até arriscado), que
é analisar o salazarismo de dentro para
fora, como artigo ou modelo de exportação para outras paragens.
Como disse, é um passo arriscado e
diria até polémico, o que não deixa de surpreender, pois sendo António Costa
Pinto tão consensual, tão português suave,
acaba por produzir obras que escandalizam. E se no passado escandalizou por,
sem quaisquer negacionismos, chamar a atenção para a necessidade de estudarmos
o salazarismo na sua época e no ambiente geocultural europeu, agora vai muito
mais longe e eleva o Estado Novo a arquétipo e paradigma de autoritarismos da
Europa e da América Latina.
Para aqueles que cultivam um tipo de
História «militante» que não se destina tanto a estudar o passado, mas a
denegri-lo, isto parecerá uma heresia, pois à primeira vista é, digamos, um
«ponto a favor» de Salazar, dizendo-se que o seu regime, apesar de provinciano
e tacanho, foi apreciado e saudado pelo mundo fora, foi «modelar» no
estrangeiro.
Quando pensava na proposta de António
Costa Pinto e dos demais autores deste livro, sopesando os seus méritos e os
seus problemas, lembrei-me de uma frase de uma escritora britânica recentemente
falecida, Hilary Mantel, que teve, se quisermos, uma daquelas intuições
femininas de pitonisa, surgidas do nada, situadas fora dos seus campos de
trabalho e de escrita, e que também encontramos em mulheres como uma Agustina
Bessa Luís ou uma Clarice Lispector, por ex.
Dizia
Hilary Mantel: «os factos não são a verdade, ainda que façam parte dela. E a
História não é o passado – mas sim o método que desenvolvemos para organizarmos
a nossa ignorância do passado. É o registo das coisas de que existe registo»,
da mesma maneira que uma certidão de nascimento não é um nascimento, que um
mapa não é uma viagem, que um guião não é um filme.
Ou seja, e sem cairmos num relativismo
pós-moderno em que tudo é precário e instável, tudo se dissolve no ar, importa,
na verdade, percebermos de uma vez por todas que é tão grande, tão colossal, a
nossa ignorância do passado, é tão vasto aquilo que não sabemos e nunca viremos
a saber (as conversas telefónicas de Salazar com os seus ministros, as trocas
de olhares e o body language nas
audiências em São Bento, os bilhetes e os papéis que foram destruídos, o que
verdadeiramente sabiam e pensavam os vários actores desse drama pretérito), é
tão grande este nosso desconhecimento, dizia, que, na verdade, a História não é
uma disciplina de conhecimento, mas de organização de ignorância. E o dia de
ontem ou a semana passada não são «História» não por causa de ainda serem
demasiado próximos de nós, a eterna questão da «distância», mas por sabermos
demasiado como foram o dia de ontem ou a semana passada. Mais do que distância,
a História exige ignorância. Caso contrário, será memória, não História.
Vem esta conversa a propósito do presente
livro de António Costa Pinto & friends porque, como qualquer livro de
História, como qualquer bom livro de História, ele parte da ignorância e, a
partir dela, formula uma hipótese. Uma grande escritora russa, Maria Stepanova,
autora de um livro deslumbrante há pouco publicado entre nós, Memória da Memória, fala justamente da
memória e da História como uma “operação de salvamento”, de resgate, muito na
linha daquilo que atrás falei sobre a ignorância do passado. E este livro
coordenado por António Costa Pinto, como qualquer bom livro de História, é uma
operação de resgate, que extrai do esquecimento dados e informações que de todo
ignorávamos, desde logo sobre a vastidão e a profundidade com que o salazarismo
foi estudado, ou pelo menos citado, dos dois lados do Atlântico. À excepção de
França, pouco se sabia disso e, por isso, este livro é já uma aposta ganha, no
que toca ao avanço de conhecimento que traz e partilha. Mas o livro vai mais
longe e, a partir desse conhecimento novo, formula uma hipótese, tem uma
«tese».
Uma
hipótese que deve também ter presente o seguinte: para a reconstrução do
passado, importam tanto os factos como o discurso que se fez sobre os factos.
Ou seja, se quisermos, os discursos são, ou foram, tão constitutivos da
realidade quanto os próprios factos, ainda que, obviamente, em níveis e com
incidências diferentes.
No fundo, o «programa» deste livro é
um programa de Begriffgeschichte em
torno da circulação da ideia de corporativismo, a partir do qual é possível
fazer algumas reflexões que, porventura, poderão servir para aprofundamentos
futuros:
1
– A primeira tem que ver com a diferença entre factos e discursos, ou seja,
mesmo assumindo que os discursos, as ideias, são tão constitutivas da realidade
como os factos, são elas mesmas «factos», quando se estuda a circulação de uma
ideia e se afirma, ademais, o seu valor modelar ou paradigmático, importa não
ver apenas se essa ideia circulou e foi ventilada, citada em escritos de
intelectuais ou manifestos políticos; interessa saber se tal ideia ou conceito
moldou efectivamente a construção e a prática jurídica de um Estado, impregnou
a sua vivência social, dominou o seu panorama intelectual. Que uma ideia
circulou, é comprovado por ser citada, falada, discutida etc (e até, se fosse
possível, seria interessante fazer uma métrica disso, como nas revistas
científicas de agora). Coisa diferente é essa ideia ter valor modelar ou
paradigmático, efectiva concretização prática, o que implica ver a influência
real e o perfil e o peso das personalidades que a veicularam (os «salazaristas»
estrangeiros eram pessoas influentes nos seus países ou intelectuais
marginais?), os textos legais, a prática política. Neste livro dá-se esse
passo, indo-se da teoria à prática, mas ele deve ser aprofundado em
investigações posteriores, até através de um cruzamento com saberes jurídicos
que António Costa Pinto, leitor de Mirkine-Guetzevitch, bem conhece
2
– Por outro lado, se usamos este método comparativo, importaria fazer uma
«comparação das comparações», isto é, não analisar apenas se o corporativismo
salazarista é falado e citado, mas cotejar com a frequência e a influência com
que outros também são citados, desde logo o fascismo, mas também outras
experiência autoritárias. É que uma coisa é isolarmos o corporativismo salazarista
e registarmos o número de ocorrências e citações, outra é colocá-lo ao lado de
outros possíveis modelos ou fontes de influência, porventura tão falados ou
citados como ele. E há também, como o livro em parte mostra, diversas formas e
intensidades de alusão ao salazarismo, ou seja, uma coisa é referi-lo como uma
curiosidade interessante, outra é assumi-lo verdadeiramente como modelo ou
figurino.
3 – Em terceiro lugar, confesso que a
expressão «terceira via» pode merecer reservas, até pela confusão com outras e
bem recentes tentativas de third way
feitas pelo blairismo. E, mais ainda, porque «terceira via» é demasiado
multiforme, como aliás se nota neste livro, pois tanto pode ser uma via
intermédia ou um tertio genus entre
socialismo e liberalismo, como entre fascismo e comunismo, como entre fascismo
e nazismo. Por exemplo, na página 10 deste livro tanto se aponta para uma
terceira via entre fascismo e comunismo, como entre democracia liberal e fascismo, ou seja, é possível e até
provável que o corporativismo procure um meio caminho no meio de uma floresta
ou galáxia de ideologias, mas devemos ter presente que nuns contextos e numas
geografias o corporativismo salazarista foi, como cá, uma terceira via entre
liberalismo e socialismo, enquanto noutros terá sido ou poderá ter sido entre
liberalismo e comunismo e, noutros ainda, entre liberalismo e fascismo. Ou
seja, há contextos em que a «ameaça» do comunismo pode ter sido mais intensa,
noutros a mais intensa terá sido o fascismo ou o nazismo (como na Europa
ocupada), pelo que se o corporativismo se situa à distância ou à equidistância
de dois pólos, interessa saber quais foram.
4
– Uma outra questão que interessaria analisar é a seguinte: falar com admiração
não significa assumir como modelo. Tentando explicar: nos anos 30, o
salazarismo foi, do ponto de vista interno, português, uma fórmula de sucesso,
pois conseguiu responder às duas maiores ansiedades do tempo – as contas
públicas e a paz social -, ou seja, fizera uma «revolução na paz», equilibrando
o défice sem greves nem sobressaltos. Se esse sucesso se fez sentir em termos
domésticos, garantindo a Salazar o lugar de «mago» ou «ditador das finanças» e
um apoio generalizado da população, é mais do que óbvio e natural que o êxito
também seria admirado lá fora. Ou seja, este livro não vem descobrir o óbvio,
vem apenas atestar a vastidão e a profundidade da admiração que existiu pelo
salazarismo e que, aliás, não terminou nos anos 30 (no pós-guerra e no contexto
de Guerra Fria, existir uma dictablanda um pequeno país da Europa, sem riscos
de comunismo, era uma bênção para personalidades como Eisenhower, o que
favoreceu a nossa imediata adesão à NATO. Também Pio XII foi, mesmo no
pós-guerra, um admirador de Salazar). Nos anos 30, e como o seu nome é citado
no livro, basta lembrar o marechal Pilsudski, quando disse, a propósito dos
revoltosos que foram deportados para a Madeira: «abençoado país que tem a sua
Sibéria na ilha da Madeira». Quer dizer, e penso que este ponto não é
devidamente salientado no livro, num contexto de uma Europa em convulsão, a
tranquilidade portuguesa era motivo de admiração. No fundo, aquilo que servira
para a propaganda do regime na frente doméstica também o ajudou na frente
externa, ainda que, e o ponto é curioso, não tenha existido um especial esforço
propagandístico no exterior, isto é, Salazar parece não ter tido grande
interesse em exportar o seu figurino.
Além disso, a par da segurança e da
paz social (no fundo, como nos dias de hoje, com os estrangeiros que
gentrificam Lisboa), também haveria apreço técnico pelo Salazar-economista que
pusera ordem nas finanças. E, assim, poderão não ter sido apenas razões ideológicas
puras, mas antes a percepção destas duas realidades práticas – ordem nas ruas,
contas em ordem – que levaram à admiração pelo regime português. Compreende-se:
aos que se amedrontavam perante a violência dos camisas negras ou castanhas,
mas também dos comunistas, o corporativismo salazarista era uma escapatória
radiosa, luminosa, soalheira e pacata, ademais protectora da fé cristã e dos
bons costumes, ou seja, tratou-se muito mais de uma atracção emocional,
pragmática, do que uma adesão ideológica a um dado corpo de doutrinas, tanto
mais que, no plano doutrinário, à parte umas proclamações retóricas sob o
capital e o trabalho e do amparo evangélico da Quadragesimo Ano, o corporativismo não tinha grande elaboração ou
profundidade para apresentar. Até por isso, e uma vez que estamos muito, como
se disse, no território da história dos conceitos, importaria distinguir com
mais finesse noções então convergentes, mas distintas, como corporativismo,
reacionarismo, tradicionalismo, conservadorismo.
E, sobretudo, importa separar
claramente afirmação e louvor, por um lado, de adesão a um corpo ideológico e a
um modelo político, por outro.
Um
Eisenhower, por exemplo, poderia ficar sossegado com o Portugal de Salazar, mas
não o assumiu como «modelo» para a América. Ou seja, é importante fazer a
destrinça – que este livro faz, em boa parte, mas não completamente – entre
referências laudatórias, expressões de admiração e até fascínio, por um lado,
e, por outro lado, assimilação efectiva de uma doutrina e de uma concepção
política.
5
– Sobre esta concepção política, e permitam-me este aparte, poderíamos talvez
chegar a uma ideia paradoxal, que era a de julgar que Salazar, que tinha fama
de grande realismo político, foi, ao cabo e ao resto, um grande pensador
utópico, quase diria um socialista utópico, no sentido de que sonhava com uma
utopia corporativa em que capital e trabalho deixassem de se digladiar. Uma
utopia que falhou em toda a linha, como se tornou evidente nos anos 40 e 50,
quando se fez um balanço nada entusiasmante dos falhanços do modelo, aquilo a
que Fezas Vital chamou os «desvios do corporativismo português». Aliás, se
atentarmos na discussão na génese da Constituição de 1933, os Integralistas
afastam-se de Salazar justamente por esta questão, por ele não ter levado o
corporativismo integral até às últimas consequências, nomeadamente quando não
consagrou a representação orgânica na Assembleia Nacional e relegou a Câmara
Corporativa para um lugar secundário (ao contrário do que ainda se diz, a Câmara
Corporativa não era uma segunda câmara de um parlamento bicameral, era um órgão
auxiliar de uma assembleia unicameral).
O
corporativismo português falhou, pois isso estava escrito nas estrelas: é que,
na teoria e no plano dos conceitos, o corporativismo pressupõe um elevado grau
de autenticidade, o que implica que os seus diversos actores tenham autonomia.
Ou seja, só há uma duradoura composição de interesses se os diferentes corpos
da sociedade e da economia tenham uma independência e uma autonomia pouco
compatíveis com a ideia de «corporativismo de Estado», uma contradictio in
terminis, e menos ainda compatíveis com uma ditadura. Não é por acaso, que as
actuais experiências neo-corporativas de concertação, em regime democrático,
são bem mais duradouras e consistentes do que o corporativismo autoritário dos
anos 30. Num certo sentido, para que o esquema corporativo possa funcionar
exige-se liberdade. Caso contrário, tudo não passa de uma farsa, de um
simulacro, coisa de que os diversos intervenientes rapidamente se apercebem.
Veja-se, de resto, a ambiguidade de estatuto dos dois esteios do regime, a
Igreja e as Forças Armadas: sacerdotes e militares pertenciam a corpos
autónomos, com interesses próprios e capacidade de actuação autónoma, ou eram
funcionários públicos idênticos aos demais?
Talvez
seja demasiado ousado dizê-lo, mas tudo leva a crer que Salazar nunca acreditou
no corporativismo e nas suas virtudes. Desde logo, porque aquilo que o levava a
descrer da democracia em Portugal era a impreparação dos povos latinos, o seu
atraso, muito na linha de vários autores franceses, que enalteciam a qualidade,
mas a singularidade irreplicável, da democracia anglo-saxónica. Isto é, se o
povo português não estava preparado para a democracia, também não o estava para
o corporativismo. E este, ademais, se se desenvolvesse e articulasse
verdadeiramente iria ser um sério entrave à dominação que Salazar pretendia
imprimir. Ou seja, é muito mais credível que, em lugar de uma utopia com que
Salazar sonhou, o corporativismo foi um, mais um instrumento do seu poder, seja
como chavão propagandístico, seja como meio de disciplina das forças sociais,
dos corpos do Estado, do capital e do trabalho.
Por isso, talvez este livro pudesse
ter tido o título «o passado de uma ilusão», como o de Furet, pois tudo indicia
que o corporativismo foi mais uma das muitas ficções em que o teatro de sombras
do salazarismo foi fértil. E talvez isso explique o pouco empenho de Salazar em
exportá-lo ou apresenta-lo ao mundo. E talvez isso leva à conclusão de que, á
semelhança de muitos portugueses, em que se destacavam jovens ardentes como
Marcello Caetano e Pedro Theotónio Pereira, os «intelectuais-políticos»
católicos de vários países foram enganados pelo «manholas de Santa Comba». Ao
contrário do que dizia Manoieluscu, outro dos enganados, o corporativismo
português não era «autêntico» nem «sério». Porquê? Porque «pluralismo limitado»
é coisa que não existe: a partir do momento em que se consente o pluralismo,
este adquire uma dinâmica que não consente limitações.
O produto que compraram estava
avariado, tinha um defeito congénito, de fabrico, a falta de liberdade
política, económica e social, pelo que não estranha que, apesar de muito
louvado por leigos e membros da Companhia de Jesus, o modelo salazarista nunca
frutificou verdadeiramente em lugar algum.
Daí a abissal distância entre a
grandeza da promessa e a sua nula concretização, entre a teoria aclamada e a
prática depois vivida, entre as ideias e os factos, os discursos e as
realidades.
Ainda assim, e enquanto artificio
ideológico e encenação verbal, foi uma indiscutível trouvaille no áspero e conflituoso panorama doutrinal dos anos 30.
Se não garantia a salvação dos povos, adiava a solução dos problemas, dissimulava
as falhas, camuflava aspirações insatisfeitas de operários e de patrões, da
pequena e da grande burguesia, dos corpos intermédios da sociedade e do Estado.
Quem conseguisse passar a tormenta da luta épica entre fascismo e comunismo,
poderia pensar depois como iria resolver o dilema, o insolúvel dilema, entre
corporativismo social e ditadura política. Quase todos os que seguiram o
«modelo» de Salazar acabaram por soçobrar. Ele, sobreviveu.
E é também a história dessa
sobrevivência – ou, como agora se diz, dessa resiliência – que se adivinha e
pressente em cada página deste livro, uma das obras mais importantes e
desafiantes que nos últimos anos se têm publicado sobre o Estado Novo do dr.
Salazar.
Muito obrigado.
António Araújo
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