Os meses finais do chamado regime de Marcello Caetano
foram dominados por acontecimentos imprevistos, uns, outros uma tentativa
desesperada para comprar armas sofisticadas na quimera de que era possível
manter uma guerra em três frentes, num quadro de solidão internacional, e num
país sem dinheiro e com graves carências de oficiais. O ensaio Rumo à
Revolução, de José Matos e Zélia Oliveira, Guerra e Paz Editores, 2023,
alicerçado numa grande consulta de documentos e arquivos nacionais e
estrangeiros, revela o que de fundamental aconteceu nos meses que precederam à
queda da ditadura num só dia. Trata-se de uma narrativa que irá seguramente
enfurecer aqueles que insistem que a guerra colonial tinha sustentabilidade, os
recursos não faltavam, para eles a hecatombe foi a falta de vontade em
combater, e por tal “crime” se desmoronou o Império. Num país em que ainda
impera o culto do sebastianismo, tais nostálgicos não serão desarmados pela
verdade dos factos, bem evidentes neste primoroso ensaio.
No essencial, vamos ver aqui abordados: o que de decisivo
representou a publicação do livro de Spínola; a busca de armas, sobretudo
contando com a gratidão dos EUA pela cedência das Lajes após a guerra dos 6
dias, que trouxe consequências nefastas também para a economia portuguesa; as
alterações que se tinham registado em Moçambique, o eterno problema da Guiné, a
movimentação dos capitães; as consequências da demissão de Costa Gomes e de
Spínola; e, como depois da abortada revolta nas Caldas, um golpe fulminante fez
baquear um regime que durara décadas e que parecia não ter fim.
Estamos em 15 de fevereiro de 1974, Marcello Caetano
preside, sem saber, à última reunião do Conselho Superior de Defesa Nacional. O
general Costa Gomes informa os presentes de que tinha sido assinado um contrato
para a aquisição de uma bateria de mísseis antiaéreos e de que se procurava
rapidamente adquirir armas anticarro para enfrentar as viaturas blindadas que
se dizia estarem na posse do PAIGC. O chefe do Governo referiu as grandes
dificuldades em comprar armas nos mercados internacionais, era o que se estava
a passar com os mísseis antiaéreos franceses Crotale. Costa Gomes retoma
a palavra para salientar a degradação da situação interna em Moçambique, nesta
frente militar faltavam helicópteros e caças, o secretário-de-Estado da
Aeronáutica referiu igualmente as dificuldades da sua aquisição e, mais
adiante, chamou a atenção para a necessidade para prosseguir com o
reequipamento da Força Aérea, pendiam graves ameaças na Guiné e Angola. Dias
depois, Caetano irá ler o livro de Spínola, compreendeu que era agora
inevitável o golpe de Estado. Os autores espraiam-se sobre o pensamento daquele
que irá ser o presidente da Junta de Salvação Nacional, uma quase comédia de
enganos de quem autorizou a publicação do livro. Caetano chama os dois generais
enquanto os capitães conspiram, temos aqui uma súmula dos acontecimentos que
vão espoletar o descontentamento corporativo com a legislação do ministro Sá
Viana Rebelo numa tentativa de suprir a escassez de oficiais. Caetano está
demissionário, Thomaz não aceita, começa um período da fuga para a frente,
desde o seu discurso na Assembleia Nacional até à remodelação ministerial.
É bem interessante a exposição que os autores fazem sobre
a esperança em que os EUA fornecessem armas capazes de contrabalançar
equipamento superior de guerrilha, Kissinger, que viera a Lisboa agradecer em
17 de setembro de 1973 o auxílio prestado pelo Governo de Caetano, deixará
claro de que o Congresso nunca permitiria a cedência às claras daquele
armamento, dava como contrapartida o fornecimento e instalação de uma central
nuclear, bolsas de estudo, fornecimento de cereais e colaboração técnica e
financeira na prospeção de energia geotérmica nos Açores. E avivam-se as
dificuldades em Moçambique e na Guiné, a África do Sul compromete-se a fazer um
empréstimo de seis milhões de contos, o que daria para cobrir grande parte das
necessidades portuguesas no campo do armamento, isto enquanto o PAIGC fez a sua
declaração unilateral de independência com o imediato reconhecimento de muitas
dezenas de países.
É o momento azado de se fazer a descrição do nascimento
do MFA, isto enquanto Caetano discursa na Assembleia Nacional, começaram as
transferências compulsivas de militares, inequivocamente críticos do Governo,
este é remodelado, introduzindo-se uma nova orgânica, Luz Cunha substitui Costa
Gomes, segue-se a precipitação da chamada revolta das Caldas, o Governo parece
aliviado e anuncia que há normalidade em todo o território. Escreveu-se no Avante!
que “o Governo e o regime não cairão por si próprios nem tão pouco por ação de
umas dezenas de oficiais do exército, mesmo que corajosos e patriotas. A
sublevação no 16 de março mostra-o mais uma vez”. Não deixa de ser curioso o
que se passa na noite de 24 de abril de 1974 durante um jantar em Bona como
elementos do Partido Social Democrata Alemão em que o ministro das Finanças
disse a Mário Soares que a ditadura portuguesa estava para durar, Mário Soares
não conseguiu convencer o seu interlocutor que o fim do regime português estava
para breve.
O cônsul português em Milão recebe instruções para ir a
Londres, num quadro de total secretismo para falar com o representante da
guerrilha do PAIGC, propunha-se denunciar uma possível independência para a
colónia portuguesa, reunião inconclusiva, fica prevista uma outra para meses
depois, dá-se o 25 de Abril. A 28 de março, Caetano profere a sua “conversa em
família”, deixa claro que se mantém intransigente, a guerra prosseguirá.
A súmula dos acontecimentos do golpe de 25 de Abril, pelo
seu rigor e frescura narrativa, revela-se um dos mais belos textos sobre a
organização do golpe, num contexto que alguns ainda acreditavam ser de completa
normalidade: 23 de abril reúne pela última vez o Conselho de Ministros, Caetano
é a máscara do cansaço físico e psicológico, há jantares e encontros entre os
homens do Estado na noite de 24, temos o desenrolar dessa noite, tudo culminará
com a tomada da PIDE/DGS, no amanhecer de 26, isto enquanto Spínola dá a
primeira conferência de imprensa na Pontinha:
“Ao contrário do que seria de esperar, os arquivos da
polícia política que continham milhões de fichas foram encontrados
aparentemente intactos. Nas mesas de alguns agentes encontraram algumas
revistas Playboy e Penthouse. No gabinete de Silva Pais permaneciam três
quadros fixos na parede com as imagens de Américo Thomaz, Marcello Caetano e
Salazar. São dadas ordens para os retirar e Silva Pais prontifica-se para tal,
mas o de Salazar era mais difícil por estar mais alto. Diz-se que alguém foi
então buscar um escadote e o retrato de Salazar também foi removido. O fim do
regime estava consumado.”
Uma narrativa de grande fôlego a não perder.
Sem comentários:
Enviar um comentário