O regresso das palavras
O texto com que Charlotte Delbo abre o livro, A Medida
dos Nossos Dias, incluído em Auschwitz e Depois (CFB Editores, 2018,
pp. 315-321), intitula-se significativamente «O regresso». Não se trata de
tornar a uma Ítaca abandonada a contragosto e tomar posse do mundo que nunca se
perdeu: os rostos familiares, os objectos ordenados como lhes compete, as ocupações
próprias de uma condição social e os deuses que zelam pela harmonia do todo.
Através dos perigos arrostados, Ítaca permanece o Norte magnético: corrige os
desvios, anula os erros e, sobretudo, é a memória que vivifica, que tanto mais
estende as suas asas acolhedoras e fiéis quanto mais demorado e acidentado é o
regresso. Quanto mais longe dela, mais brilha a origem. À memória que guia
Ulisses como a varinha do vedor indica a água, fonte da vida, responde a memória
que guia Penélope nas suas astúcias, de olhos postos no que há-de vir. O
reencontro será feliz e rico: uma realidade confirmada e potenciada pelo tempo
vivido.
A experiência concentracionária do regresso é de outra
ordem. A viagem de regresso, conforme
descrita por Delbo, desrealiza gradualmente as sobreviventes, como se o mundo
normal arrebatasse a vida dos regressadas.
Em primeiro lugar e, num aparente paradoxo, depois da fome
concentracionária, no próprio corpo, «[v]ia-as [as companheiras] a
transformarem-se sob os meus olhos, tornarem-se transparentes, tornarem-se
vagas, tornarem-se espectros.» Uma tal desaparição física, corpórea, não é um
dado, um facto bruto. Pelo contrário, deriva da experiência mais originária da
perda de sentido. É a linguagem que dá a medida da realidade. Por isso, Delbo
acrescenta de imediato «[a]inda as ouvia, mas começava a não perceber o que
diziam.» A libertação, o ansiado regresso, não é o reencontro com um mundo
abandonado, o reconhecimento em comunhão com o que lá ficara, paciente,
esperando. À chegada, o mundo desapareceu, os outros desapareceram, o próprio
eu solta as amarras; erra, desliza, flutua, são os verbos que Delbo usa
repetidamente. Fora do mundo, «[n]ão sentia nada, não me sentia existir, não
existia.» Para se reapossar do mundo é
necessário – precisamente o oposto de Ulisses e Penélope – um esforço de
memória, «mas porque dizer: um esforço de memória se já não tinha memória?» A
cabeça esquecida é a cabeça vazia, incapaz de reflectir, «como reflectir,
quando já não se possui uma única palavra, quando se esqueceram as palavras
todas?» E, no entanto, esse momento de suspensão da continuidade do eu é
necessário como uma reacção química que aparentemente isola os elementos de um
composto. É nele que se funda a passagem entre duas condições de vida incomensuráveis.
Uma passagem entre uma linguagem concentracionária que Primo Levi por momentos
julgou possível, como se pudesse existir uma experiência verdadeira do Lager,
verdadeira precisamente no sentido de ser dada numa linguagem própria, sem um
denominador comum com a linguagem normal. Uma linguagem que não fosse uma
linguagem do mundo da vida, da experiência humana, mas da morte, da morte em
vida. O tempo da incompreensão a que se refere Delbo não deixa de poder ser
compreendido. Significa isso que também nesse meio tempo houve linguagem, por
mais tacteante que tenha sido. Com ironia, e sempre com espanto, interroga-se:
«Quanto tempo fiquei assim, em suspensão de existência? (Como vêem, depois
voltei a encontrar as palavras).» A resposta à pergunta está dada entre
parêntesis: o tempo durante o qual não encontrou as palavras. Esse é o tempo em
que o seu corpo não tinha peso, a sua cabeça não tinha peso, chegando ao
extremo do que começara com a desrealização das companheiras, também elas sem
peso, também elas sem palavras compreensíveis. Um exemplo claro que evidencia a
ligação umbilical aos outros e ao mundo, por esta ordem e pela linguagem.
O regresso às palavras, ou talvez melhor, o regresso das
palavras faz-se pela recusa da possibilidade de uma linguagem do Lager.
A linguagem dos homens normais retoma o seu lugar quando se nega o privilégio
da verdade ao Lager, como se aquilo fosse a verdade do homem
perante o qual a vida normal fosse falsa. Delbo dá conta da sensação de
estranheza, de inautenticidade, no encontro com os outros e, ratificando o
modelo hermenêutico do texto como um tu, com os livros. «Tal como
baixava os olhos para não ver as caras porque as caras se despiam sob os meus
olhos, porque, a partir do momento em que as fixava, via tudo das pessoas
através das caras delas, e isso incomodava-me ao ponto de ser obrigada a baixar
os olhos, e também me afastava dos livros porque via através das palavras. Via
a banalidade, a convenção, o vazio. [...] Tudo, caras e livros, era falso, tudo
me mostrava a própria falsidade [...].» A falsidade geral só pode ser medida
pela linguagem pseudo-verdadeira do Lager, que é a linguagem adâmica
satanicamente invertida. Em vez da identidade plena e feliz entre coisa e
palavra, é uma identidade degradada, já não a identidade da vida mas sim a da
morte em vida, como se o acto de desumanização fosse a verdade. Por isso, a
descrição de Delbo do regresso das palavras não acompanha um processo de
reconstrução da linguagem a partir de elementos quimicamente isolados. A
palavra vem como palavras, num sistema impreciso, indefinível, enigmático: «Como
é que tudo se passou? Não sei. Um dia, peguei num livro e lio-o.» Ou seja,
deixou de «viver num mundo sem mistério». Não lhe é possível calcular
esse momento em que passa a haver sentido; não por acaso, o logos grego
foi traduzido por ratio mas também por verbum.
Num texto breve (Voltar do campo voltar ao normal,
pp. 371-373), Delbo vê o regresso à vida como a saída da história. Que
história? Não a história com maiúscula, a epopeia cumulativa da Humanidade,
nem, em declinações famosas, a história que lê o passado à luz de uma
ideologia. Trata-se antes da história que diz o que cada qual é, que o esbulha
da sua interioridade; a história que transforma o homem numa superfície, sem
mistério, sem perigo e, por isso, sem banalidade, sem inautenticidade e sem
falsidade. Já não é história, é mitologia, que rouba o tempo e dele faz espaço
exterior. É a palavra – fatum – que vem do exterior, avassaladora, cega
como uma aluvião que soterra as casas e as vidas. Sair da história para entrar
na vida não é um momento de criação que seja acessível aos não
concentracionários. Dá testemunho do nascimento da linguagem e da vida antes da
história. A vida regressada tem de excluir o horror absoluto como factor capaz
de alterar todas as contas. O que não acontece por inércia, por esquecimento;
mas por uma decisão. «Inspirar piedade, não, não queria, mas para admitir que
Auschwitz não entra na balança do deve e do haver, precisamos de nos endurecer
brutalmente.» (p. 412). Se a luta de
Jacob o deixou marcado por um poder superior a quem pede a benção, aos
concentracionários a luta com o mal legou-lhes uma maldição: endurece-te
brutalmente. Talvez Primo Levi ou Jean Améry tenham sucumbido a uma tal
maldição, o que amplia a lista dos agravos. Charlotte Delbo não. Viu o mal e
lutou. Talvez se tenha endurecido brutalmente, a forma de coxear que Auschwitz
lhe impôs, mas venceu o mal regressando à vida, à vida toda, à vida até ao fim.
João Tiago Proença
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