quinta-feira, 11 de maio de 2023

Um gigante da literatura visitou a URSS do deus Estaline e denunciou a fraude.

 


 


 

Nunca entendi como um documento histórico e documental como o que André Gide escreveu por ocasião da sua viagem à URSS, em 1936, jamais tenha conhecido tradução portuguesa. Posso perceber que o Estado Novo não consentiria que um dos maiores vultos da literatura contemporânea, alicerçado em ideologia anticapitalista, que tenha feito o elogio fúnebre de Máximo Gorki, em plena Praça Vermelha, perto de Estaline e outros consagrados da época, viesse dizer abertamente que guardava a esperança a despeito das monstruosidades que observara, algumas bem próxima das que podiam ser praticadas pelo regime de Adolfo Hitler. Teria sido o maior embaraço para a nossa despótica censura. Mas que em democracia tenha preciso chegarmos em 2023 para conhecer este primor da escrita e a tremenda denúncia deste espírito independente é para mim incompreensível. É urgente conhecer e guardar nas estantes Regresso da URSS, por André Gide, Publicações D. Quixote, 2023.

Antes de mais, o primor literário, temos aqui observações esplendentes do consagrado Prémio Nobel da Literatura de 1947. Oiçam só: “Garanto que há qualquer coisa de trágico na minha aventura soviética. Enquanto entusiasta convicto, fui para admirar um novo mundo, e ofereceram-me, para seduzir, todas as prerrogativas que eu detestava no antigo.” Dirá no prefácio que houvera da sua parte admiração e amor pela URSS. “Ali, ocorria uma experiência sem precedentes que nos enchia os corações de esperança, e da qual esperávamos um progresso imenso, um impulso capaz de arrastar toda a humanidade. Nos nossos corações e nos nossos espíritos, ligávamos decididamente o destino glorioso da URSS ao futuro da própria cultura.” Visitou, percorreu largos troços do país, assediado pela classe política e pelo aparelho do partido comunista, preferiu ir conversar com gente política, o que permitiu ditar a seguinte observação: “Ali existe o bom e o mau; direi mesmo: o excelente e o pior. O excelente foi obtido muitas vezes à custa de um enorme esforço. O esforço nem sempre obteve, em toda a parte, aquilo que pretendia obter. Pode por vezes pensar-se: ainda não. Por vezes, o pior acompanha em dobro o melhor. E passa-se do mais luminoso ao mais sombrio com uma brusquidão desconcertante. Acontece com frequência que o viajante, de acordo com convicções pré-estabelecidas, seja apenas sensível a um ou ao outro. Demasiadas vezes, os amigos da URSS recusam-se a fazer o mal, ou pelo menos a reconhecê-lo; de modo que, demasiadas vezes, a verdade sobre a URSS é dita com ódio, e a mentira com amor.”

Não esconde a alegria profunda que usufruiu no contacto direto, em acampamentos infantis ou estaleiros, por exemplo, afirma mesmo que em nenhum outro lugar contacto com quem quer que seja se estabelece de forma tão fácil. Observou as numerosas filas em que centenas de pessoas esperam pacientemente; constata a indolência de muitos, uma massificação sem gosto, móveis feios; e não esconde o seu completo desapontamento com a falta de liberdade de opinião, a fábrica de manipulação montada pelo comunismo: “Na URSS, é aceite à partida e uma vez por todas que, sobre qualquer questão, não pode haver mais do que uma opinião. Além disso, as pessoas têm uma mente tão condicionada que esse conformismo se torna fácil, natural, insensível, ao ponto de não parecer que haja qualquer hipocrisia nisso.” E refletindo sobre tantos padrões de falta de qualidade dirá que a felicidade dos operários russos é feita de esperança, confiança e ignorância. Mais adiante, dirá mesmo que o cidadão soviético vive numa extraordinária ignorância do estrangeiro. “Convenceram-no de que tudo no estrangeiro, em todos os domínios, corre muito pior do que na URSS. Esta ilusão é habilmente mantida, pois é importante que todos, por menos satisfeitos que estejam, se congratulem com o regime que os preservem dos piores males.”

Deu-lhe para perceber que estava à assistir à reconstituição de camadas da sociedade ou mesmo de classes, via-se à vista desarmada o aburguesamento, o espírito pequeno-burguês. E procurou observar as diferentes tiradas ou palavras de ordem, o uso inflacionado de contrarrevolucionário. “O menor protesto, a menor crítica está sujeita às piores penas.” E empregará uma frase que lhe merecerá pesadas críticas quando o livro foi publicado: “Duvido que em qualquer outro país, mesmo na Alemanha de Hitler, o espírito seja menos livre, mais limitado, mais receoso (aterrorizado), mais submissivo.”

Todo este discurso de André Gide irá pôr os comunistas franceses em rebuliço, como é que aquele gigante literário, convidado pelo deus Estaline a discursar sobre Máximo Gorki se atreveu a escrever: “A efígie de Estaline está em toda a parte, o seu nome em todas as bocas, e os louvores que lhe são feitos surgem também sem falta a todos os discursos. A duração, amor ou medo, não sei; sempre e em toda a parte ele está presente.” A receção do seu escrito foi alvo de um vendaval. Gide atrevera-se a fazer reparos, ao nível de um qualquer “contrarrevolucionário”: fizera críticas demolidoras à guerra antirreligiosa, ao condicionalismo férreo das mentalidades, a maus-tratos a trabalhadores agrícolas. Gide não perdeu tempo, respondeu aos insultos, apreciou algumas críticas de boa-fé, e para surpresa do leitor verificará que o genial escritor de Os Moedeiros Falsos estava altamente documentado, como se não tivesse viajado à procura de ver a esperança, e reponta com os moralistas que o criticam: “Uma análise superficial, um julgamento apressado, foi dito do meu livro. Como se não fosse precisamente a primeira impressão, na URSS, o que nos encantou! Como se não fosse ao olhar mais profundamente que encontrámos o pior. É no fundo do fruto que o bicho se esconde. Mas quando digo que esta maçã tem bicho, acusam-na de não ver claramente ou não gostar de maçãs. Se me tivesse contentado em admirar, não me teriam feita essa censura; e nesse caso, seria merecida.”

E rebate as acusações que lhe fazem, ponto por ponto, deita por terra as infantilidades dogmáticas, lembra que esse colosso do cinema que era Serguei Eisenstein foi obrigado a uma autocrítica idiota, teve que parar um novo filme por não estar de acordo com as exigências da doutrina; desmonta a propaganda de que estava a pôr termo ao analfabetismo, de que o operariado era altamente participante, todo um embuste, os sovietes já não funcionavam, e volta-se para os comunistas franceses para os acusar de não terem mentido aos operários.

Não se deve ler a primeira narrativa de Gide sem se ler a sua resposta aos críticos, a altíssima qualidade da sua escrinha não desfalece, desmonta as mentirolas sem humilhar os fanáticos.

Trata-se de um relato magistral na denuncia da monstruosidade do estalinismo. Gide foi à URSS atraído pelas questões sociais e não esconde a desilusão de ver a esperança tão maltratada.

De leitura obrigatória. 


Mário Beja Santos 





2 comentários:

  1. Sem qualquer nota sobre a apresentação de Paulo Tunhas, que certamente deve lá ter um contributo esclarecedor.

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  2. "Como se não fosse precisamente a primeira impressão, na URSS, o que nos encantou! ", por isto é que a censura não deixou publicar.

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