Livro
publicado em 1958, é um relato que nos toca desde a primeira página por uma
serenidade que vai evoluindo para o quadro de uma existência onde pontifica,
como único objetivo encontrar uma razão para sobreviver, vendo os familiares e
amigos partirem para fornos crematórios e, todos os outros, levarem a
existência mais degradante que se possa imaginar. Noite, por Elie
Wiesel, Publicações Dom Quixote, 2023, é uma dolorosa viagem desde uma pequena
cidade da Transilvânia até aos campos da morte onde se consumou o Holocausto. É
então o autor um jovem de quase 13 anos, profundamente crente, estudioso do
Talmude, assíduo frequentador de uma sinagoga hassídica (o hassidismo é um dos
movimentos judaicos). Estamos em 1941 e de repente começaram as expulsões dos judeus
estrangeiros levados pela polícia húngara. Alguém volta no final do ano
seguinte e alerta para o extermínio judaico. A comunidade em que ele se insere
recebe notícias maravilhosas da frente russa, estava-se na primavera de 1944.
Nisto surgem os soldados alemães, começam os decretos humilhantes, criam-se
guetos, segue-se a deportação, abandona-se tudo, Eliezer segue com a família,
pais e irmãs, para um novo gueto e depois a estação do caminho de ferro. Até
aqui, temos uma descrição comum a muitos outros relatos. O título desta
narrativa é metafórico, a noite transfigura, a alvorada é longínqua, é o lastro
da vida de cada um que faz resistir, superar o negrume do mais horrendo dos
presentes que a existência pode oferecer.
A
bestialidade manifesta-se na viagem de comboio, viajam esfomeados, surgem casos
de loucura, e assim se chega à estação de Auschwitz, Birkenau. Homens à
esquerda, mulheres à direita, em fila de cinco, Eliezer mente, diz que tem 18
anos, segue no grupo dos homens, por ali perto passeia-se o famoso Dr. Mengele,
já não há ilusões, os fornos crematórios estão a funcionar. E há aqui uma nota
que nos prende por inteiro: “Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no
campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada. Nunca
esquecerei aquele fumo. Nunca esquecerei os pequeninos rostos das crianças
cujos corpos eu vi transformarem-se em espirais sob um céu mudo. Nunca
esquecerei aquelas chamas que consumiram para sempre a minha Fé. Nunca
esquecerei aquele silêncio noturno que me privou, para a eternidade, do desejo
de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram o meus Deus e a
minha alma, e que transformaram os meus sonhos em cinzas. Nunca esquecerei,
mesmo que tenha sido condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus.
Nunca.”
E
entramos num cenário da crueldade, da desumanidade, vestidos de farrapos, o
cabelo rapado, os amigos e vizinhos encontram-se e choram, parece que
desapareceu o instinto de sobrevivência, o amor próprio. Eliezer procura
amparar-se com o pai, são lhes destinados trabalhos rudes, um oficial das SS
avisa-os: “Auschwitz não é uma casa de repouso. É um campo de concentração.
Aqui, têm de trabalhar senão, vão direitos para a chaminé. Para o crematório.”
São as chamadas incontáveis. Eliezer sai de Birkenau e vai para Auschwitz. Um
responsável do bloco, um jovem polaco, fala-lhes com humanidade: “Um longo
caminho repleto de sofrimento espera-vos. Mas não percam a coragem. Já
escaparam ao perigo mais grave: a seleção. Reúnam as vossas forças e não percam
a esperança. Todos veremos chegar o dia da libertação. Afastem o desespero e
assim de vós afastarão a morte. Somos todos irmãos e sofremos todos o mesmo
destino. Ajudem-se uns aos outros. É a única maneira de sobreviverem.”
Procuram-se familiares e amigos, a quem ali acaba de chegar e pergunta onde
encontrar os seus familiares, o melhor é mentir, dar um pouco de esperança. Os
médicos selecionam quem vai para o crematório ou quem continua no trabalho
desumano, tudo ao som de uma marcha militar.
Os
dentistas retiram coroas de ouro, o Terceiro Reich precisa de ouro. Os
bombardeamentos do exército salvador são insistentes, pressente-se que a guerra
caminha para o colapso nazi. Há enforcamentos exemplares, os alemães estão
implacáveis. A esperança dos judeus ainda não desfaleceu, é o que o autor
descreve na véspera do Roch Hashaná, abençoado seja o Eterno, eleva-se a voz do
celebrante entre as lágrimas, os soluços e os suspiros da assistência, vem
depois o Yom Kippur, o dia do Grande Perdão, Eliezer sente um grande vazio.
Estamos já em janeiro de 1945, no meio de um grande sofrimento, Eliezer é
operado a um pé. O pai de Eliezer está cada vez mais enfraquecido. Com o
Exército Vermelho a aproximar-se, os judeus são forçados a marchar com a neve a
cair em flocos, é uma descrição lancinante, percorrem-se povoações e são
novamente transportados em vagões próprios para animais, procura-se
desesperadamente sobreviver ao frio. “Um dia em que estávamos parados, um
operário alemão tirou da sua sacola um bocado de pão e atirou-o para o vagão.
Foi uma correria. Dezenas de homens esfomeados lutaram desesperadamente por
causa de algumas migalhas. No vagão onde o pão tinha caído, uma verdadeira
batalha tinha eclodido. As pessoas lançavam-se umas sobre as outras, pisando-se,
dilacerando-se, mordendo-se. Aves de rapina soltas das amarras, com o ódio
animal nos olhos: uma extraordinária vitalidade tinha-se apoderado delas, tinha
aguçado os seus dentes e as suas unhas.” E assim chegaram ao campo de
Buchenwald, é aqui que o seu pai vai falecer, não resistiu a tanto sofrimento.
A 10 de abril, com os libertadores à porta do campo, há um movimento de
resistência e os SS fugiram. À tarde chegou o primeiro tanque norte-americano.
Eliezer
é transferido para um hospital onde passou duas semanas entre a vida e a morte.
E assim finda este tão dramático e pessoal testemunho de um candidato à morte
que sobreviveu e dedicou a sua vida a tantas causas da faz e que recebeu em
1986 o Prémio Nobel:
“Um
dia, consegui levantar-me, depois de ter reunido todas as minhas forças. Queria
ver-me ao espelho, que estava na parede em frente. Desde o gueto que não me via
a mim mesmo.
Do
fundo do espelho, um cadáver contemplava-me. O seu olhar nos meus olhos nunca
me abandonou.” Alguém comentou que este testemunho dilacerante devia ser de
leitura obrigatória para toda a humanidade. Faço votos para que assim seja.
Mário Beja Santos
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