quinta-feira, 21 de setembro de 2023

O mais pungente relato de sobrevivência nos campos da morte nazis.

 





 

 

Livro publicado em 1958, é um relato que nos toca desde a primeira página por uma serenidade que vai evoluindo para o quadro de uma existência onde pontifica, como único objetivo encontrar uma razão para sobreviver, vendo os familiares e amigos partirem para fornos crematórios e, todos os outros, levarem a existência mais degradante que se possa imaginar. Noite, por Elie Wiesel, Publicações Dom Quixote, 2023, é uma dolorosa viagem desde uma pequena cidade da Transilvânia até aos campos da morte onde se consumou o Holocausto. É então o autor um jovem de quase 13 anos, profundamente crente, estudioso do Talmude, assíduo frequentador de uma sinagoga hassídica (o hassidismo é um dos movimentos judaicos). Estamos em 1941 e de repente começaram as expulsões dos judeus estrangeiros levados pela polícia húngara. Alguém volta no final do ano seguinte e alerta para o extermínio judaico. A comunidade em que ele se insere recebe notícias maravilhosas da frente russa, estava-se na primavera de 1944. Nisto surgem os soldados alemães, começam os decretos humilhantes, criam-se guetos, segue-se a deportação, abandona-se tudo, Eliezer segue com a família, pais e irmãs, para um novo gueto e depois a estação do caminho de ferro. Até aqui, temos uma descrição comum a muitos outros relatos. O título desta narrativa é metafórico, a noite transfigura, a alvorada é longínqua, é o lastro da vida de cada um que faz resistir, superar o negrume do mais horrendo dos presentes que a existência pode oferecer.

A bestialidade manifesta-se na viagem de comboio, viajam esfomeados, surgem casos de loucura, e assim se chega à estação de Auschwitz, Birkenau. Homens à esquerda, mulheres à direita, em fila de cinco, Eliezer mente, diz que tem 18 anos, segue no grupo dos homens, por ali perto passeia-se o famoso Dr. Mengele, já não há ilusões, os fornos crematórios estão a funcionar. E há aqui uma nota que nos prende por inteiro: “Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada. Nunca esquecerei aquele fumo. Nunca esquecerei os pequeninos rostos das crianças cujos corpos eu vi transformarem-se em espirais sob um céu mudo. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram para sempre a minha Fé. Nunca esquecerei aquele silêncio noturno que me privou, para a eternidade, do desejo de viver. Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram o meus Deus e a minha alma, e que transformaram os meus sonhos em cinzas. Nunca esquecerei, mesmo que tenha sido condenado a viver tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.”

E entramos num cenário da crueldade, da desumanidade, vestidos de farrapos, o cabelo rapado, os amigos e vizinhos encontram-se e choram, parece que desapareceu o instinto de sobrevivência, o amor próprio. Eliezer procura amparar-se com o pai, são lhes destinados trabalhos rudes, um oficial das SS avisa-os: “Auschwitz não é uma casa de repouso. É um campo de concentração. Aqui, têm de trabalhar senão, vão direitos para a chaminé. Para o crematório.” São as chamadas incontáveis. Eliezer sai de Birkenau e vai para Auschwitz. Um responsável do bloco, um jovem polaco, fala-lhes com humanidade: “Um longo caminho repleto de sofrimento espera-vos. Mas não percam a coragem. Já escaparam ao perigo mais grave: a seleção. Reúnam as vossas forças e não percam a esperança. Todos veremos chegar o dia da libertação. Afastem o desespero e assim de vós afastarão a morte. Somos todos irmãos e sofremos todos o mesmo destino. Ajudem-se uns aos outros. É a única maneira de sobreviverem.” Procuram-se familiares e amigos, a quem ali acaba de chegar e pergunta onde encontrar os seus familiares, o melhor é mentir, dar um pouco de esperança. Os médicos selecionam quem vai para o crematório ou quem continua no trabalho desumano, tudo ao som de uma marcha militar.

Os dentistas retiram coroas de ouro, o Terceiro Reich precisa de ouro. Os bombardeamentos do exército salvador são insistentes, pressente-se que a guerra caminha para o colapso nazi. Há enforcamentos exemplares, os alemães estão implacáveis. A esperança dos judeus ainda não desfaleceu, é o que o autor descreve na véspera do Roch Hashaná, abençoado seja o Eterno, eleva-se a voz do celebrante entre as lágrimas, os soluços e os suspiros da assistência, vem depois o Yom Kippur, o dia do Grande Perdão, Eliezer sente um grande vazio. Estamos já em janeiro de 1945, no meio de um grande sofrimento, Eliezer é operado a um pé. O pai de Eliezer está cada vez mais enfraquecido. Com o Exército Vermelho a aproximar-se, os judeus são forçados a marchar com a neve a cair em flocos, é uma descrição lancinante, percorrem-se povoações e são novamente transportados em vagões próprios para animais, procura-se desesperadamente sobreviver ao frio. “Um dia em que estávamos parados, um operário alemão tirou da sua sacola um bocado de pão e atirou-o para o vagão. Foi uma correria. Dezenas de homens esfomeados lutaram desesperadamente por causa de algumas migalhas. No vagão onde o pão tinha caído, uma verdadeira batalha tinha eclodido. As pessoas lançavam-se umas sobre as outras, pisando-se, dilacerando-se, mordendo-se. Aves de rapina soltas das amarras, com o ódio animal nos olhos: uma extraordinária vitalidade tinha-se apoderado delas, tinha aguçado os seus dentes e as suas unhas.” E assim chegaram ao campo de Buchenwald, é aqui que o seu pai vai falecer, não resistiu a tanto sofrimento. A 10 de abril, com os libertadores à porta do campo, há um movimento de resistência e os SS fugiram. À tarde chegou o primeiro tanque norte-americano.

Eliezer é transferido para um hospital onde passou duas semanas entre a vida e a morte. E assim finda este tão dramático e pessoal testemunho de um candidato à morte que sobreviveu e dedicou a sua vida a tantas causas da faz e que recebeu em 1986 o Prémio Nobel:

“Um dia, consegui levantar-me, depois de ter reunido todas as minhas forças. Queria ver-me ao espelho, que estava na parede em frente. Desde o gueto que não me via a mim mesmo.

Do fundo do espelho, um cadáver contemplava-me. O seu olhar nos meus olhos nunca me abandonou.” Alguém comentou que este testemunho dilacerante devia ser de leitura obrigatória para toda a humanidade. Faço votos para que assim seja.



Mário Beja Santos





Sem comentários:

Enviar um comentário