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Esta é a mensagem que a Taylor & Francis colocou há dias na página digital onde constava, para venda, a obra Sexual Misconduct in Academia. Informing An Ethics of Care in the University, publicada pela Routledge, chancela daquele grupo editorial, e coordenada por Erin Pritchard e Delyth Edwards.
A obra fora suspensa há dois meses, não tendo sido indicados
os fundamentos que concorreram para tal decisão. Esta semana, soube-se que a
Routledge decidiu eliminar do livro o capítulo 12, intitulado "The walls
spoke when no one else would. Autoethnographic notes on sexual-power
gatekeeping within avant-garde academia" (pp. 208-223), assinado por
Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Myie Nadia Tom.
Aquilo
que começou por ser uma denúncia de abuso sexual e extractivismo académico,
tornou-se agora, como facilmente se percebe, um caso gritante e grotesco de
censura, um inconcebível ataque às liberdades: à liberdade de expressão e de
pensamento, desde logo; e à liberdade científica, pois, não o esqueçamos, o
texto censurado não é um artigo de opinião, é um artigo científico, publicado
de acordo com os mais exigentes protocolos (v.g., peer-review), por uma
das editoras mais prestigiadas na área das ciências sociais.
Não
por acaso, o principal visado no texto das três académicas, Boaventura Sousa
Santos (BSS), publicou na Routledge os livros Globalizing Institutions. Case
Studies in Regulation and Innovation (2000, com
Jane Jenson), Epistemologies of the South. Against Epistemicide (2014), Reinventing
Democracy. Grassroots Movements in Portugal (2019, com Arriscado Nunes), Knowledges
Born in the Struggle. Constructing the Epistemologies of the Global South
(2020, com Maria Paula Meneses), Demodiversity. Toward Post-Abyssal
Democracies (2020, com José Mendes), The Pluriverse of Human Rights: The
Diversity of Struggles for Dignity (2021, com Bruno Sena Martins), Decolonizing
Constitutionalism. Beyond False or Impossible Promises (2023, com Sara
Araújo e Orlando Aragón Andrade), From The Pandemic to Utopia. The Future
Begins Now (2023).
Caso para perguntar: a mesma editora de BSS publica artigos
com falsidades e difamações?
Recuemos
um pouco. No início de Junho, a Routledge recebeu uma carta de cease-and-desist
de um obscuro "portuguese lawyer", cuja identidade se desconhece,
agindo em nome de alguém cujo nome também nunca foi revelado (porventura um dos
alegados assediadores visados no referido capítulo 12). Não se sabe, ninguém dá
a cara, ninguém tem a coragem ou a hombridade de assumir que falou com a
Routledge – é importante dizer que não foi por iniciativa desta, mas a pedido
ou mando de um inquisidor oculto, que a editora actuou.
O
“portuguese lawyer” exigia que a Routledge suspendesse a publicação daquele
texto e que adoptasse algumas "formas de mitigação do dano causado à
reputação, saúde e trabalho académico" do suposto assediador, bem como da
reputação do Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra. Caso
a Routledge não respeitasse as suas exigências, avançaria para tribunal.
Perante
isto, a Taylor & Francis e a Routledge decidiram suspender temporariamente
o livro, retirando-o do mercado e limitando-se a dizer, na sua página online,
que a obra estava "sob revisão": "This content is temporarily
unavailable as it's currently under review" ("O conteúdo deste livro
está temporariamente indisponível, por se encontrar sob revisão").
Três
meses depois, a 31 de Agosto, a Routledge tomou a decisão final de censurar o
capítulo, revertendo os respectivos direitos de publicação para as autoras.
Segundo a mensagem da editora, enviada às três autoras do artigo, as duas
coordenadoras do livro teriam “aceitado e compreendido a posição da Routledge”
("We have spoken with Erin and Delyth, who understand this decision").
Ora,
isto é falso, descaradamente falso, como se depreende pelo artigo da jornalista
Fernando Câncio, no Diário de Notícias de 31 de Agosto – "Editora
britânica retira capítulo que acusa Boaventura [de Sousa Santos] em livro sobre
assédio sexual" –, onde as coordenadoras, Erin Pritchard e Delyth Edwards, afirmam estar
"muito desapontadas com o facto de a Routledge ter tomado a decisão de
retirar permanentemente de publicação o capítulo 12 e possivelmente o próprio
livro. Isto corresponde a pôr-se do lado dos que estão a tentar silenciar este
livro, sem fazer qualquer tentativa de apoiar o livro contra as ameaças legais
e, portanto, não defendendo a liberdade académica nem o direito dos
sobreviventes de assédio sexual de falarem das suas experiências. Tomar a
decisão de retirar permanentemente o capítulo não é mais que uma forma de
apoiar o abuso de poder sistemático na academia". Um entendimento bem diferente,
portanto, daquele que a editora dava a entender na mensagem enviada às autoras
do capítulo 12.
Percebe-se
a atitude das coordenadoras e das autoras do livro. Desde logo, porque nem umas
nem outras conhecem os fundamentos da decisão, já que a Routledge, em nenhum
momento, as informou das razões que a levaram a censurar aquele capítulo.
De igual modo, a
Routledge ainda não revelou o nome do advogado português que escreveu e enviou
para Inglaterra a carta de "cease-and-desist", que levou à censura do
capítulo, nem revelou a identidade do queixoso.
Quem
pensa que não é importante conhecer o nome do "portuguese lawyer" e
do seu mandante, está inteiramente enganado. Ambos têm de dar a cara. Quem são
eles?
Para
se poderem defender da denúncia do advogado, as autoras do capítulo precisam de
saber os nomes de quem está por trás disto tudo (não será descabido perguntar,
também, porque é que a Routledge mantém o anonimato do "portuguese lawyer"
e do cliente que contratou os seus serviços).
É
que a Routledge, ao censurar o capítulo 12 – praticando um epistemicídio,
como diria BSS –, parece corroborar assim o sentido das queixas de
Boaventura de Sousa Santos (BSS), segundo o qual estaria a ser alvo de uma
"difamação vergonhosa e vil".
Isto
depois, não esqueçamos, de o próprio BSS já ter admitido "comportamentos
inapropriados", típicos de quem, como ele, nascido em 1940, pertence a uma
geração em que tais atitudes eram aceites pela sociedade ("Reconheço que em determinados momentos possa ter sido protagonista de alguns desses comportamentos", Expresso, 4 de Junho de 2023);
e de a própria Routledge ter publicado há cerca de um mês (Julho) uma obra
coordenada por BSS, Decolonizing Constitutionalism, Beyond False orImpossible Promises.
Uma
decisão também, já agora, enquanto decorre no CES um inquérito (liderado pela
Comissão Independente do Centro de Estudos Sociais, "para o esclarecimento
de eventuais situações de assédio"), cujas conclusões ainda ninguém sabe
quais serão.
E
se o inquérito vier a demonstrar que BSS praticou, realmente, alguns daqueles
actos graves, descritos no capítulo 12? Como ficará a reputação e o prestígio
da Routledge? Não teria sido mais prudente e avisado ter aguardado pelas
conclusões do inquérito? Este timing não é estranho? Ou será que a
Routledge já sabe que o inquérito não vai dar em nada e, temendo um futuro
processo judicial, resolveu antecipar-se?
Por
outro lado, não é estranho que, dos nomes falados na esfera pública – mas nunca
citados no artigo, note-se, e a saber, BSS, Bruno Sena Martins e Maria Paula
Meneses –, nenhum tenha a coragem e a frontalidade de assumir que se queixou à
editora?
Bruno
Sena Martins negou a autoria da acção ("Não desencadeei qualquer acção legal junto da editora"),
BSS começou por não responder – andou às voltas, com rodriguinhos e meias
palavras – e depois reconheceu que conversou com a Routledge sobre o capítulo
12, mas não assumiu a paternidade da queixa e da diligência junto da sua
própria editora.
Um
processo inaudito: nem o nome do advogado se conhece! Quem e o quê se pretende
esconder? A má consciência por ter promovido uma censura académica?
Como
quer que seja, uma evidência se impõe: nunca se viu uma coisa assim. Uma
editora de um país democrático como Inglaterra, que se rege pelo princípio da
liberdade de expressão, decidiu censurar um artigo académico. E, caso se
confirme que a diligência do “portuguese lawyer” se deveu a BSS, tem este agora
de responder por duas suspeitas graves: a de assédio sexual e a de censura
académica.
A
situação é de uma clareza meridiana: a Routledge submeteu o livro ao sistema de
arbitragem científica, ou revisão por pares (peer review ou refereeing),
o qual deu luz verde à publicação da obra coordenada por Erin Pritchard e
Delyth Edwards.
Goste-se
ou não se goste, os especialistas – e a editora aconselhada por estes –
consideraram que todos os capítulos tinham qualidade suficiente para serem
publicados na "editora académica líder mundial em Humanidades e Ciências
Sociais" ("Today Routledge is the world's leading academic publisher
in the Humanities and Social Sciences. We publish
thousands of books and journals each year. Founded in 1836, we have published
many of the greatest thinkers and scholars of the last hundred years, including
Adorno, Einstein, Russell, Popper, Wittgenstein, Jung, Bohm, Hayek, McLuhan,
Marcuse and Sartre", lê-se no respectivo site).
Agora, confrontada com as ameaças de um "portuguese
lawyer", a editora vem desdizer os especialistas por ela escolhidos,
reconhecendo (implicitamente) que o seu sistema de avaliação está avariado?
Depois do acordo ou consenso entre os especialistas daquela área, decidiu
publicar o capítulo 12 e, depois de publicado, vem agora retirá-lo de
publicação?
É
que, conforme lembrou uma das autoras, "o livro foi feito com altos
padrões de qualidade. Foi sujeito a várias revisões e avaliações antes de ser
publicado. É um livro de alta qualidade. Mas alguém demandou as responsáveis ou
a editora porque contém um artigo que denuncia um caso de assédio sexual, e
essa pessoa não gostou" (afirmações reproduzidas por Fernanda Câncio,
"Acção legal na origem de suspensão de livro que denuncia Boaventura.
Autora fala em 'silenciamento'", Diário de Notícias, 13 de Agosto
de 2023).
Repare-se,
e insista-se, que o texto assinado por Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e
Myie Nadia Tom não é um mero artigo de opinião, passou pelos mais exigentes processos
de revisão científica de uma das mais exigentes editoras europeias.
Para
que não restem dúvidas, Lieselotte Viaene é antropóloga e professora no
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Carlos III, de Madrid, tem um
doutoramento em Direito (Ghent University, Bélgica, 2011), artigos publicados
em revistas internacionais indexadas, como Journal of Transitional Justice, Critique of
Anthropology, International Human Rights Journal, Netherlands
Quartely of Human Rights, Antipoda. Revista de Antropologìa y Arquelogìa,
teve uma bolsa individual Marie Curie (2016-2018) e trabalhou nas Nações
Unidas, no gabinete do Alto Comissário dos Direitos Humanos (2010-2013).
Por sua vez, Catarina
Laranjeiro é investigadora do Instituto de História Contemporânea da Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova de Lisboa), é mestre em
Antropologia Visual e dos Media, na Freie Universitaet Berlin, doutorada em Pós-Colonialismos e Cidadania Global pelo CES
(Universidade de Coimbra), tem artigos na The Internacional History Review
e publicou na editora Palgrave Macmillan (Londres).
Myie Nadia Tom é professora na
Universidade do Nebraska (EUA), estudou na Universidade de São Francisco e na
Universidade Complutense de Madrid, e publicou artigos na International
Review of Education (revista da UNESCO, num número organizado por si), na Comparative
Education Review e na University of Wisconsin Press (EUA).
Erin
Pritchard, uma das coordenadoras do livro, é professora na Universidade de
Liverpool, doutorada pela Universidade de Newcastle, é editora da revista
académica Disability & Society, tem artigos publicados em revistas
como The Canadian Journal of Disability Research ou The Scandinavian
Journal of Disability Research, e investigação publicada na Bloomsbury
Academic ou na Peter Lang.
Delyth
Edwards, a outra coordenadora, foi docente em Sociologia da Infância e da
Juventude na Universidade de Liverpool, é actualmente professora na
Universidade de Leeds (Inglaterra), na área da Inclusão, Infância e Juventude,
fez o doutoramento em Sociologia na Queens University (Belfast), o mestrado em
Investigação Sociológica na University of Essex, tem artigos em revistas
académicas como Cultural Trends e investigação publicada em editoras
como a Sage ou a Springer International Publishing.
Estes
são os currículos das mulheres envolvidas. E o livro, nunca é demais insistir,
foi sujeito aos procedimentos de qualidade e rigor científicos da editora do
próprio Boaventura de Sousa Santos.
A
exclusão do capítulo significa que a editora não o considera científico? Se é
assim, por que razão o publicou? Não o devia ter rejeitado antes?
E,
no meio desta história toda, como ficam os cientistas responsáveis pelo peer-review
do livro? A decisão tomada não representará um atropelo à sua dignidade formal
e profissional? O mesmo em relação às autoras, cujos indesejáveis danos
reputacionais são difíceis de prever. E os processos de publicação e controlo
de qualidade científica da Routledge? Não ficam postos em causa? É que, aparentemente,
os procedimentos editoriais da líder mundial em Humanidades e Ciências Sociais
não primam pelo rigor...
Que
BSS se comporte como um senhor feudal, já não nos surpreende. O mesmo não
poderemos dizer de uma editora como a Routledge, cujo acto de censura não honra
a sua história (uma história, não é despiciendo relembrar, que começou em 1836
e que inclui a publicação de pensadores e académicos como Adorno, Einstein,
Russell, Popper, Wittgenstein, Jung, Bohm, Hayek, McLuhan, Marcuse e Sartre).
O
cúmulo da ironia, ou da hipocrisia, é que a Taylor & Francis, proprietária
da Routledge, até se permite (e muito bem!) fornecer conselhos aos seusautores/as vítimas de assédio na academia...
O texto ora censurado,
insiste-se, passou o crivo da revisão científica, foi avalizado pelos
académicos escolhidos pela editora. E, já agora, censurado porquê? Por ser
difamatório? Por falta de qualidade? Não se sabe, porque a Routledge jamais
esclarece. E tem a obrigação de fazê-lo, até para que as lesadas, caso queiram,
contestem a decisão tomada, em tribunal ou fora dele. Assim, sem explicação
alguma, estamos no reino do arbítrio puro, do tirânico “posso, quero e mando”.
Para quem publica obras
sobre a democracia e os direitos humanos, sobre os oprimidos deste mundo, sobre
as vítimas de violência, sobre racismo e feminismo, tudo isto é, como disse uma
das alegadas vítimas de Boaventura, "um escândalo internacional".
A
decisão da Routledge supõe uma grande novidade, de efeitos imprevisíveis, que
deveria deixar apreensivos os investigadores académicos de todo mundo quanto à
sequência dos acontecimentos futuros.
Colocada
entre dois fogos – por um lado, a denúncia das autoras do capítulo 12
(Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Myie Nadia Tom) e, por outro lado, supõe-se,
a queixa de Boaventura de Sousa Santos, um académico com enorme poder
internacional, com vários livros publicados na Routledge, muitos deles traduzidos
noutros idiomas e em vários países da América do Sul, o que representará,
decerto, elevados proveitos para a Routledge) –, a editora escolheu o lado do mais
forte.
O
mesmo lado – o de Boaventura de Sousa Santos – que há um ano dizia, a propósito
da guerra na Ucrânia, da NATO e dos EUA, que se estava a criar "um novo período de caça às bruxas muito semelhante ao que se viveu nos EUA na década de 50 e que ficou conhecido por Macarthismo".
Não
tenhamos dúvidas: estamos perante um acto insofismável de censura, que viola o
espírito de crítica e de liberdade de pensamento, e que deve ser denunciado sem
quartel nem tréguas. Casos como estes não podem ser escamoteados ou
relativizados, com base em interesses ideológicos, profissionais ou pessoais.
Perante este acto de silenciamento, estranha-se o silêncio dos que se proclamam
defensores dos mais fracos e oprimidos.
O
que se passou neste final de Agosto de 2023 é um dos mais bárbaros e iníquos
atentados à liberdade de expressão académica, perpetrado por uma das editoras
mais prestigiadas do mundo que se arrogou no direito de censurar um texto que
havia publicado – e, pior ainda, fazendo-o com base numa denúncia anónima de um
“portuguese lawyer” e sem justificar ou fundamentar o seu acto.
O
poder académico perpetuou, durante anos, situações de assédio sexual e moral e
de extractivismo intelectual. Agora, amordaça o pensamento e censura a
liberdade. E nós, calamo-nos?
João Pedro George
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