Diplomata
e teatrólogo, o asturiano Julián Ayesta escreveu o seu único título de ficção
em 1952, é um registo tão vivo e admirável que passadas estas décadas
engrenamos sem qualquer dificuldade na Espanha destes anos 1950 e somos
galvanizados por um quadro que tem tanto de idílico como de rigoroso da transição
da infância para a adolescência, do relato saímos esmagados, ninguém pode
prever tanta simplicidade a descrever os afetos que qualquer um de nós pôde
experimentar ou sonhar, poucas coisas há de tão sublime como o primeiro amor.
Logo
o arranque da prosa, um almoço no jardim: “O doce de ginja brilhava
vermelhíssimo entre as vespas amarelas e pretas e o vento remexia os ramos dos
carvalhos e as manchas do sol corriam sobre o musgo, sobre a erva macia e
húmida e sobre a cara dos convidados e das mulheres e dos homens que estavam a
fumar e a rir todos ao mesmo tempo. E brilhavam também os cálices azuis do Marie
Brizard e os talheres de sobremesa. E os pontinhos de luz – os grandes
perseguindo os pequenos, corriam sobre a toalha cheia de nódoas roxas de vinho
e de migalhas.”
É,
pois, um cenário sensorial, luzes, risos, cheiros, notas de conversas, uma
cadeira que se partiu. E todos partem para a praia, de tarde, porque o melhor
banho era ao fim da tarde, e o retrato volta a encenar-se com a descrição
daqueles familiares à beira-mar, os comentários chocarreiros, aquela tia que
nadava com umas pulseiras que nunca tirava, e não faltava a comida, logo a
tortilha, depois a limpeza dos restos do banquete, começavam a aparecer as
estrelas. Era assim que se passava o verão, os primos eram ainda meninos, o tio
Arturo vinha contar histórias às meninas, ao deitar havia lutas de almofadas no
quarto das raparigas, os rapazes vieram para a brincadeira, torna-se percetível
que Helena irá ter um papel central em toda a trama.
A
obra muda de prisma e rotação, é o ideário católico quem mais ordena,
desvela-se o que vai na cabeça de uma criança, o sofrimento de Jesus na cruz, a
presença de Lúcifer, a submissão à autoridade da Igreja, a inquietação pelo
pecado mortal, o papel do diretor espiritual, a permanente ansiedade de afastar
os maus pensamentos e maus pensamentos podia ser imaginar uma mulher a fazer as
suas necessidades, e então ficava-se enojado, mas havia o refúgio em Nossa
Senhora, o autor entra numa aparente deriva sobre tais sonhos até lugares
exóticos para se chegar ao quadro do arrependimento: “E escondíamos a cabeça
entre as mãos e chorávamos, com os olhos ardendo de raiva pela nossa miséria, e
depois, quando esse primeiro arrebatamento passava, chorávamos com uma pena e
uma dor muito fundas, que nos faziam pele de galinha, e se puséssemos a mão no
peito reparávamos que quase não nos batia o coração. Era uma grande tristeza
pela distância de Deus, porque Ele não nos via nem nos escutava e não se
importava que O amássemos nem que estivéssemos dia e noite a lutar contra o
Diabo.” E daqui se transfere a graça de Deus para a sala de jantar e para as
conversas corriqueiras, e as alegrias à mesa, surgia um quadro de harmonia, que
assim se exprimia: “Eu senti uma felicidade tão grande por dentro que todo o
meu corpo tremia e eu ria sem saber porquê. Sentia-me cheio da graça de Deus,
em paz com Deus e, com todas as pessoas que amava amigas e felizes a meu lado,
teria adorado que o mundo parasse naquele momento e que o tempo deixasse de
passar e que aqueles instantes durassem para sempre.”
E
virá de novo o verão, faço relevo à burra e ao jardineiro, que era o dono da
carroça que vinha buscar os primos que chegavam de Madrid para passar o verão.
Mais prosa com todos os sentidos: “Há uns prados cobertos de orvalho e outros
já cheios de sol e papoilas. Cheirava a morangos de maio e ao sol azul (…) As
ruas de Gijón estão com uma sombra lilás muito limpa e fresca e não há quase
ninguém porque as ruas de manhã estão perfumadas pelo cheiro das algas do mar.”
A
família reencontra-se, chilreiam comentários leves, é a alegria do reencontro,
há paragens para beber cidra, cantarola-se. Helena ganha forma: “Começava a
fazer calor e passavam vespas a zumbir e moscas brilhantes. Ao fundo, entre as
árvores, viam-se prados verdes, aldeões trabalhando entre os milheirais, carros
azul-claros, bois e uma nesga de mar. Vinha um cheiro da erva húmida aquecida
pelo sol do meio-dia, e eu, morto de felicidade, com Helena a meu lado,
semicerrava os olhos e mergulhava no fundo dos meus pensamentos. Pensava no
verão que me esperava junto a Helena, sob aquele céu, entre os prados verdes,
os rios e as árvores, sabendo que ela gostava de mim, e quase se me enchiam os
olhos de lágrimas.” E há um passeio pelo bosque, a ternura do encontro a dois,
ele aproxima-se, ela tenta fugir, ela foge depois de o morder, dá-se a
reaproximação, Helena põe-lhe um curativo na ferida, recomeça a perseguição, lá
vai ele, felicíssimo. Temos agora a tarde e o crepúsculo, de novo o convívio, o
fumo dos charutos dos homens, a sala de jantar mergulhada na penumbra e desse
escuro ouvem-se as cigarras e os grilos. Vão até à praia os dois. “Helena e eu
íamos calados. De vez em quando, Helena parava, colhia umas quantas amoras e
oferecia-me metade. E continuávamos a caminhar muito próximos, sem dizer nada,
mas tremendo. Algumas vezes o meu amor – que era a Helena, tão linda, com a
pele tão morena e o cabelo tão louro e os olhos azuis e tão livre e valente –
parava outra vez para apanhar amoras e picava-se num espinho. Oferecia-me então
o seu dedo ensanguentado e eu chupava-lhe o sangue, que era tão vermelho, tão
salgado, tão lindo cintilando ao sol.”
E
chegam à praia, pequena e de difícil acesso, lançam-se contras as ondas frias,
bancas e espumosas, nadam juntos, o autor socorre-se da antiguidade clássica, e
aquele jovem, tremendo, com voz rouca, confessa o seu amor a Helena, e ela
corresponde.
E
esta noveleta que já não tem idade termina de uma forma ímpar:
“Não
falámos mais. Íamos juntos, sós, entre o silêncio do crepúsculo. Íamos só entre
o silêncio do mundo. Sós entre o silêncio do tempo. Sós para sempre. Juntos e
sós, andando juntos e sós entre o silêncio do mundo e do mar e do mundo,
andando andando. E tudo era como um grande arco e nós íamo-lo atravessando e do
outro lado estava o nosso mundo e o nosso tempo e o nosso sol e a nossa luz e a
nossa noite e as estrelas e os montes e os pássaros e sempre…”
Há
um poder de sugestão, uma magia das palavras que se desprende deste relato da
iniciação amorosa, uma tremenda elegância na forma que nos embarga a leitura, e
chegamos ao fim com a convicção que um dia a ela retornaremos, tal a sua
intemporalidade que nos recorda a inocência perdida.
Mário Beja Santos
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