Editado
pela Penguin, em 2023, o magnífico livro, France on Trial The Case of
Marshal Pétain, de 480 páginas, do historiador inglês Julian Jackson é uma
obra imprescindível para todos os que se interessam pela política, pela história,
pelo direito e pela justiça nas suas intersecções mais profundas.
Abençoado pelo maior historiador de Vichy, Robert Paxton, que o qualifica como um atraente livro, escrito com mestria, trata-se, de facto, de um relato muito completo e enquadrado, de ritmo absolutamente magistral, do julgamento de Philippe Pétain, em 1945, pelas acusações de traição e colaboração com a Alemanha nazi.
Pétain
nasceu em 1856 de uma modesta família de camponeses perto de Calais e viu o
exército como um caminho para o progresso, formando-se na prestigiada academia
de Saint-Cyr. A maior parte da sua carreira militar foi “respeitável, mas
normal”, nunca ultrapassando o posto de coronel. A Primeira Guerra Mundial
proporcionou-lhe a oportunidade perfeita para demonstrar as suas excepcionais
capacidades organizacionais e o seu temperamento como comandante.
A
sua defesa de Verdun em 1916, vista pelos franceses como a batalha definidora
da Primeira Guerra Mundial, e a sua afinidade com os soldados elevaram-no a herói
militar e a uma popularidade notável. Agraciado com o título de Marechal, por
serviço excepcional na guerra, era o único Marechal de França vivo em 1945.
A
sua elevada estatura, os seus penetrantes olhos azuis, os cabelos brancos como
a neve e o seu célebre “semblante de mármore” criaram uma aura em
seu redor e granjearam-no a um estatuto mítico.
Após
a humilhante derrota militar de 1940, Pétain tornou-se chefe do Estado francês sediado
na desocupada Vichy e o seu regime foi reconhecido como um governo legítimo
pelos EUA, pela União Soviética e pelo Vaticano, entre outros.
Desprezando
os políticos tradicionais, Pétain tentou remodelar a França à sua própria
imagem, modificando os slogans republicanos de Liberdade, Igualdade e
Fraternidade para Trabalho, Família e Pátria.
O
general Charles de Gaulle, um antigo “filho amado do Marechal” que
ergueu a bandeira da França Livre em Londres, foi denunciado pelo regime de
Vichy por traição e condenado à morte à revelia.
Assim,
com a vitória dos aliados, o destino de Pétain tornou-se um problema a resolver,
sobretudo, depois do seu regresso a França, indesejado por de Gaulle, mas a que
o Marechal não se escusou.
Dessa
forma, o maior herói francês da Primeira Guerra Mundial, o vencedor de Verdun, começou
a ser julgado no Palácio da Justiça de Paris, a 23 de Julho de 1945 e terminou,
com apreciável celeridade, a 15 de Agosto enquanto a guerra ainda lavrava no
oriente (coincidindo o seu fim com o fim do julgamento).
A acusação a Pétain defrontou-se com o
clássico problema de não existir propriamente uma incriminação à medida dos
seus actos. Com a criatividade habitual dos juristas foi burilado o conceito de
indignidade nacional que acarretava a uma espécie de morte cívica e acusado
pelo crime de traição durante a Segunda Guerra Mundial, considerando a colaboração
com a Alemanha nazi incluída no artigo 75 do Código Penal.
Para
o julgamento foi criada a Haute Cour de Justice o que levantou,
igualmente, problemas de composição uma vez que o corpo jurídico tinha, na sua grande
maioria, estado ao serviço de Vichy (embora, no seu decurso, com resistências
diversas à sua política judiciária). Para presidir ao julgamento era
competente, por inerência, o primeiro presidente da Cour de Cassation que,
após sete recusas, ficou a cargo de Perre Mongibeaux, tido como calmo, prudente
e pouco dado ao trabalho e que tinha prestado, como todos os outros, o
juramento de lealdade a Pétain em 1941, mas que no dia da Libertação surgiu no
Palácio da Justiça envergando a tricolor da resistência.
Aos três juízes togados juntavam-se doze
jurados que tinham de ter participado na resistência e doze parlamentares contrários
a Pétain. A imparcialidade deste conjunto suscitava dúvidas até aos próprios
resistentes tendo um desabafado “estou feliz por participar no julgamento,
mas não quero participar num assassinato”. O processo penal que comporta
sempre riscos para o poder como contrapartida do poder de legitimação da
justiça comportava indubitavelmente, neste caso, menos riscos que o habitual.
No
primeiro dia do seu julgamento, Pétain, de 89 anos, leu uma declaração,
integralmente transcrita no livro, escrita pelo seu brilhante advogado Jacques
Isorni (o mais novo da equipa de defesa, mas o que mais se destacou) onde começou
por negar legitimidade à Haute Cour para o seu julgamento referindo que
“pela sua composição não representa o povo francês” e que se dirigia “apenas
ao povo”. Acrescentou ter herdado uma “situação catastrófica que não foi
criada por mim” e que o armistício foi um “acto necessário de salvação
nacional” e que “todos os dias, com uma espada na garganta, combati
contra os pedidos do inimigo”. Lançou uma incisiva farpa, da sua autoria,
mencionando que “o facto de já não estar no exercício do poder significa que
alguns esqueceram o que escreveram e disseram” e que pretendeu “preservar
uma França que sofria, mas estava viva. O que teria sido ganho libertando uma
França em ruínas, uma França de cemitérios?”. E terminou, em grande estilo,
entregando-se a Deus e à posteridade, oferecendo-se às mãos do seu País.
A declaração de Pétain defendia a teoria da
espada (de Gaulle) e do escudo (Pétain) e como observa Jackson, estava repleta
de meias verdades e evasões, ignorando o seu papel no ataque a judeus, maçons e
comunistas e na prisão de antigos líderes políticos, muitos dos quais estavam
no tribunal.
Durante
o resto do julgamento, Pétain permaneceu, quase totalmente, em silêncio,
recusando-se a ser interrogado e cochilando, ocasionalmente, por causa do calor
sufocante que se fazia sentir.
No
total, 63 testemunhas prestaram depoimento num tribunal muito pequeno para o
extraordinário interesse que despertava. Incluíam a nata do sistema francês: um
antigo presidente da república, cinco antigos primeiros-ministros, generais,
diplomatas e funcionários públicos e até um príncipe Bourbon. Como reconheceu o
juiz no início do julgamento, o arguido despertou os sentimentos mais
contraditórios, uma “espécie de amor” entre os seus apoiantes e uma “hostilidade
extremamente violenta” entre os seus adversários e numa tirada premonitória
considerou que “a história julgará um dia os juízes e julgará, certamente, a
atmosfera na qual este julgamento vai ser conduzido”.
Em
France on Trial o historiador Julian Jackson transporta-nos para um
julgamento maior do que o próprio Pétain, envolvendo toda a França e as feridas
da ocupação nazi.
A
verdade é que o maior crime do regime de Vichy, as leis raciais do regime que
autorizavam a polícia francesa a internar judeus e depois a entregá-los aos
alemães para serem deportados para as câmaras de gás, nenhuma menção teve no
julgamento e nenhuma testemunha judaica testemunhou em tribunal (“queríamos falar,
mas ninguém nos ouvia” disse Simone Veil). O célebre aperto de mão entre
Pétain e Hitler, ocorrido a 24 de Outubro de 1941, na zona ocupada, foi mais
discutido na sua intensidade e envolvência que o destino dos judeus…
Cumprindo
um dever pesado, mas rigoroso a acusação pediu a pena de morte de Pétain
e nas suas alegações finais, Jacques Isorni (celebrizado numa foto em que
aparece como um arcanjo por trás de Pétain) contrapôs a ideia que Pétain estava,
de facto, a expiar uma culpa colectiva, se Pétain era culpado, a França também
era: “o armistício foi acolhido com uma enorme sensação de alívio que talvez
não fosse heroica…foi bem recebido porque acabava a batalha” e “se
devemos ouvir os que foram perseguidos, também devemos ouvir os que foram
protegidos”.
No
entanto, o júri considerou Pétain culpado das acusações proferidas contra ele e
condenou Pétain à morte (aparentemente por 14 votos a favor e 13 contra, onde
se incluíam os três juízes togados) e com o voto, extremamente raro, de que a
sentença de morte não fosse executada.
Mais tarde, De Gaulle manteve essa
recomendação e Pétain passou o resto da vida preso na Île d'Yeu, na costa da
Bretanha, onde morreu em 1951.
O
livro de Jackson mostra como os ecos do julgamento de Pétain se repercutiram na
política francesa até hoje e os seus apoiantes, especialmente entre a extrema
direita francesa, continuaram a retratá-lo como uma figura quase semelhante a
Cristo, que se sacrificou pela sua nação.
As
sondagens que, de forma continuada, desde os anos 80, revelam que 60 por cento
da população defende o armistício e os pouco mais de vinte por cento que
condenam completamente Pétain são números que dão que pensar.
Serão
os franceses filhos de quarenta milhões de Pétainistas ou filhos da
resistência? Fica sempre à reflexão a poderosa frase de Talleyrand segundo a
qual a traição é apenas uma questão de datas e, talvez, de vencedores e
vencidos.
A
extraordinária tessitura deste livro, no cruzamento da sempre conturbada
relação entre a política e a justiça, levanta poderosas questões morais que
quase todos os vulgares cidadãos franceses foram forçados a enfrentar durante
quatro anos de Vichy e que permanecem actuais: o que esperar dos funcionários
perante um regime destes: a submissão ou a demissão? A obrigação de obedecer à
lei é absoluta? Neutralidade significa colaboração? Qual deve ser o veredicto
de uma geração que julga a precedente sem demonstrar, ela própria, o seu
heroísmo?
O
livro de Julian Jackson não pretende, nas suas palavras, reabrir o julgamento
para tentar provar que Pétain foi tratado muito duramente ou pouco duramente,
mas comprova a perspectiva de François Mauriac, atento observador deste evento,
quando referiu “para todos, o que quer que aconteça, para os seus
admiradores, para os seus adversários, Pétain vai continuar a ser uma figura
trágica, apanhado entre a traição e o sacrifício…um julgamento como este nunca
acaba e nunca vai ter fim”.
Luís
Eloy Azevedo
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