terça-feira, 21 de novembro de 2023

França em Julgamento: O Caso do Marechal Pétain.

 


 

Editado pela Penguin, em 2023, o magnífico livro, France on Trial The Case of Marshal Pétain, de 480 páginas, do historiador inglês Julian Jackson é uma obra imprescindível para todos os que se interessam pela política, pela história, pelo direito e pela justiça nas suas intersecções mais profundas.

Abençoado pelo maior historiador de Vichy, Robert Paxton, que o qualifica como um atraente livro, escrito com mestria, trata-se, de facto, de um relato muito completo e enquadrado, de ritmo absolutamente magistral, do julgamento de Philippe Pétain, em 1945, pelas acusações de traição e colaboração com a Alemanha nazi.



Pétain nasceu em 1856 de uma modesta família de camponeses perto de Calais e viu o exército como um caminho para o progresso, formando-se na prestigiada academia de Saint-Cyr. A maior parte da sua carreira militar foi “respeitável, mas normal”, nunca ultrapassando o posto de coronel. A Primeira Guerra Mundial proporcionou-lhe a oportunidade perfeita para demonstrar as suas excepcionais capacidades organizacionais e o seu temperamento como comandante.

A sua defesa de Verdun em 1916, vista pelos franceses como a batalha definidora da Primeira Guerra Mundial, e a sua afinidade com os soldados elevaram-no a herói militar e a uma popularidade notável. Agraciado com o título de Marechal, por serviço excepcional na guerra, era o único Marechal de França vivo em 1945.

A sua elevada estatura, os seus penetrantes olhos azuis, os cabelos brancos como a neve e o seu célebre “semblante de mármore” criaram uma aura em seu redor e granjearam-no a um estatuto mítico.

Após a humilhante derrota militar de 1940, Pétain tornou-se chefe do Estado francês sediado na desocupada Vichy e o seu regime foi reconhecido como um governo legítimo pelos EUA, pela União Soviética e pelo Vaticano, entre outros.

Desprezando os políticos tradicionais, Pétain tentou remodelar a França à sua própria imagem, modificando os slogans republicanos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade para Trabalho, Família e Pátria.

O general Charles de Gaulle, um antigo “filho amado do Marechal” que ergueu a bandeira da França Livre em Londres, foi denunciado pelo regime de Vichy por traição e condenado à morte à revelia.

Assim, com a vitória dos aliados, o destino de Pétain tornou-se um problema a resolver, sobretudo, depois do seu regresso a França, indesejado por de Gaulle, mas a que o Marechal não se escusou.

Dessa forma, o maior herói francês da Primeira Guerra Mundial, o vencedor de Verdun, começou a ser julgado no Palácio da Justiça de Paris, a 23 de Julho de 1945 e terminou, com apreciável celeridade, a 15 de Agosto enquanto a guerra ainda lavrava no oriente (coincidindo o seu fim com o fim do julgamento).

 A acusação a Pétain defrontou-se com o clássico problema de não existir propriamente uma incriminação à medida dos seus actos. Com a criatividade habitual dos juristas foi burilado o conceito de indignidade nacional que acarretava a uma espécie de morte cívica e acusado pelo crime de traição durante a Segunda Guerra Mundial, considerando a colaboração com a Alemanha nazi incluída no artigo 75 do Código Penal.



Para o julgamento foi criada a Haute Cour de Justice o que levantou, igualmente, problemas de composição uma vez que o corpo jurídico tinha, na sua grande maioria, estado ao serviço de Vichy (embora, no seu decurso, com resistências diversas à sua política judiciária). Para presidir ao julgamento era competente, por inerência, o primeiro presidente da Cour de Cassation que, após sete recusas, ficou a cargo de Perre Mongibeaux, tido como calmo, prudente e pouco dado ao trabalho e que tinha prestado, como todos os outros, o juramento de lealdade a Pétain em 1941, mas que no dia da Libertação surgiu no Palácio da Justiça envergando a tricolor da resistência.

 Aos três juízes togados juntavam-se doze jurados que tinham de ter participado na resistência e doze parlamentares contrários a Pétain. A imparcialidade deste conjunto suscitava dúvidas até aos próprios resistentes tendo um desabafado “estou feliz por participar no julgamento, mas não quero participar num assassinato”. O processo penal que comporta sempre riscos para o poder como contrapartida do poder de legitimação da justiça comportava indubitavelmente, neste caso, menos riscos que o habitual.

No primeiro dia do seu julgamento, Pétain, de 89 anos, leu uma declaração, integralmente transcrita no livro, escrita pelo seu brilhante advogado Jacques Isorni (o mais novo da equipa de defesa, mas o que mais se destacou) onde começou por negar legitimidade à Haute Cour para o seu julgamento referindo que “pela sua composição não representa o povo francês” e que se dirigia “apenas ao povo”. Acrescentou ter herdado uma “situação catastrófica que não foi criada por mim” e que o armistício foi um “acto necessário de salvação nacional” e que “todos os dias, com uma espada na garganta, combati contra os pedidos do inimigo”. Lançou uma incisiva farpa, da sua autoria, mencionando que “o facto de já não estar no exercício do poder significa que alguns esqueceram o que escreveram e disseram” e que pretendeu “preservar uma França que sofria, mas estava viva. O que teria sido ganho libertando uma França em ruínas, uma França de cemitérios?”. E terminou, em grande estilo, entregando-se a Deus e à posteridade, oferecendo-se às mãos do seu País.

 A declaração de Pétain defendia a teoria da espada (de Gaulle) e do escudo (Pétain) e como observa Jackson, estava repleta de meias verdades e evasões, ignorando o seu papel no ataque a judeus, maçons e comunistas e na prisão de antigos líderes políticos, muitos dos quais estavam no tribunal. 

Durante o resto do julgamento, Pétain permaneceu, quase totalmente, em silêncio, recusando-se a ser interrogado e cochilando, ocasionalmente, por causa do calor sufocante que se fazia sentir.

No total, 63 testemunhas prestaram depoimento num tribunal muito pequeno para o extraordinário interesse que despertava. Incluíam a nata do sistema francês: um antigo presidente da república, cinco antigos primeiros-ministros, generais, diplomatas e funcionários públicos e até um príncipe Bourbon. Como reconheceu o juiz no início do julgamento, o arguido despertou os sentimentos mais contraditórios, uma “espécie de amor” entre os seus apoiantes e uma “hostilidade extremamente violenta” entre os seus adversários e numa tirada premonitória considerou que “a história julgará um dia os juízes e julgará, certamente, a atmosfera na qual este julgamento vai ser conduzido”.

Em France on Trial o historiador Julian Jackson transporta-nos para um julgamento maior do que o próprio Pétain, envolvendo toda a França e as feridas da ocupação nazi.

A verdade é que o maior crime do regime de Vichy, as leis raciais do regime que autorizavam a polícia francesa a internar judeus e depois a entregá-los aos alemães para serem deportados para as câmaras de gás, nenhuma menção teve no julgamento e nenhuma testemunha judaica testemunhou em tribunal (“queríamos falar, mas ninguém nos ouvia” disse Simone Veil). O célebre aperto de mão entre Pétain e Hitler, ocorrido a 24 de Outubro de 1941, na zona ocupada, foi mais discutido na sua intensidade e envolvência que o destino dos judeus…

Cumprindo um dever pesado, mas rigoroso a acusação pediu a pena de morte de Pétain e nas suas alegações finais, Jacques Isorni (celebrizado numa foto em que aparece como um arcanjo por trás de Pétain) contrapôs a ideia que Pétain estava, de facto, a expiar uma culpa colectiva, se Pétain era culpado, a França também era: “o armistício foi acolhido com uma enorme sensação de alívio que talvez não fosse heroica…foi bem recebido porque acabava a batalha” e “se devemos ouvir os que foram perseguidos, também devemos ouvir os que foram protegidos”.

No entanto, o júri considerou Pétain culpado das acusações proferidas contra ele e condenou Pétain à morte (aparentemente por 14 votos a favor e 13 contra, onde se incluíam os três juízes togados) e com o voto, extremamente raro, de que a sentença de morte não fosse executada.

 Mais tarde, De Gaulle manteve essa recomendação e Pétain passou o resto da vida preso na Île d'Yeu, na costa da Bretanha, onde morreu em 1951.




O livro de Jackson mostra como os ecos do julgamento de Pétain se repercutiram na política francesa até hoje e os seus apoiantes, especialmente entre a extrema direita francesa, continuaram a retratá-lo como uma figura quase semelhante a Cristo, que se sacrificou pela sua nação.

As sondagens que, de forma continuada, desde os anos 80, revelam que 60 por cento da população defende o armistício e os pouco mais de vinte por cento que condenam completamente Pétain são números que dão que pensar.

Serão os franceses filhos de quarenta milhões de Pétainistas ou filhos da resistência? Fica sempre à reflexão a poderosa frase de Talleyrand segundo a qual a traição é apenas uma questão de datas e, talvez, de vencedores e vencidos.

A extraordinária tessitura deste livro, no cruzamento da sempre conturbada relação entre a política e a justiça, levanta poderosas questões morais que quase todos os vulgares cidadãos franceses foram forçados a enfrentar durante quatro anos de Vichy e que permanecem actuais: o que esperar dos funcionários perante um regime destes: a submissão ou a demissão? A obrigação de obedecer à lei é absoluta? Neutralidade significa colaboração? Qual deve ser o veredicto de uma geração que julga a precedente sem demonstrar, ela própria, o seu heroísmo? 

O livro de Julian Jackson não pretende, nas suas palavras, reabrir o julgamento para tentar provar que Pétain foi tratado muito duramente ou pouco duramente, mas comprova a perspectiva de François Mauriac, atento observador deste evento, quando referiu “para todos, o que quer que aconteça, para os seus admiradores, para os seus adversários, Pétain vai continuar a ser uma figura trágica, apanhado entre a traição e o sacrifício…um julgamento como este nunca acaba e nunca vai ter fim”.   

 

                                                                                            Luís Eloy Azevedo





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