John Runnings, pacifista norte-americano, conhecido por The Berlin Wall Walker |
“Não devemos derramar nem uma lágrima por aqueles que saem”, terão sido estas as palavras do líder da República Democrática Alemã (RDA), Honnecker, em 1989, no momento em que boa parte da sua população manifestava o desejo de abandonar o país.
A RDA tinha uma configuração política distinta de todos os outros satélites soviéticos. Durante a primeira fase da sua História, todos os que queriam sair puderam fazê-lo, para a vizinha do lado que os recebia de braços abertos. Até 1962 deixaram a RDA, na maior parte para a República Federal da Alemanha (RFA), mais de 100.000 alemães por ano. Depois, apesar do Muro, continuaram a sair, embora sempre menos de 50.000 por ano. A verdade é que a situação se manteve no que respeitava aos opositores: o que se pretendia era impedir os cidadãos comuns de sair, não os dissidentes. Estes continuaram a abandonar o país, recebendo a RDA uma média de 40.000 marcos alemães por cabeça. Um excelente negócio, que equilibrava as contas do orçamento de Estado.
Suite de Honnecker no Cliff Hotel, na ilha de Rügen, no Báltico, assim designada em sua homenagem |
Para o SED, Partido Socialista Unificado, esse êxodo constituiu a técnica perfeita de controlo político. Na RDA nunca houve verdadeira oposição. A saída dos dissidentes era a melhor solução. Não foi necessário ter campos de concentração, hospitais psiquiátricos ou outros meios de confinamento da oposição. Não havia simplesmente oposição porque os opositores, antes de se organizarem, saíam.
Quarto de dormir e sala de estar na RDA, no popular estilo Gelsenkirchen Baroque, aqui |
A STASI era importante justamente por identificar a dissidência no berço. Metade da população era constituída por informadores para que os ouvidos da STASI chegassem a todo o lado, determinando quem devia sair o mais cedo possível, isto é, antes de o potencial opositor descobrir os seus pares e empreender ação coletiva. Não era necessário haver repressão, porque já não havia a quem reprimir.
No exterior também não eram uma ameaça. Ao contrário dos exilados de outros satélites soviéticos, os alemães de Leste não se organizavam em comunidades ativas que promovessem a agitação interna. Fixando-se na RFA, pura e simplesmente integravam-se na outra Alemanha e seguiam a sua vida. Viam-se, não como alemães exilados, mas como alemães na Alemanha.
Além disso, a RDA era a linha da frente do confronto com o Ocidente. No seu território encontrava-se uma concentração sem paralelo de forças soviéticas. Acresce que, ao contrário dos seus vizinhos polacos, húngaros e checos, a RDA não tinha tradição nacional nem instituições independentes que dessem identidade e agregassem a oposição. Havia, portanto, enormes obstáculos práticos à dissidência. Sempre foi muito mais fácil sair do que lutar.
RDA à noite, os carros Trabant estacionados, aqui |
Muitos alemães de Leste ficaram porque quiseram ficar. Não se opuseram, viveram a sua vida, adaptaram-se, como Kurt Masur. Pelo menos até à construção do Muro, quiseram ficar. Em 1989 já não queriam mais ficar. Algo mudara no Estado que vendia a imagem do socialismo alemão, aquele que, como prognosticara Karl Marx, demonstraria a viabilidade de uma sociedade socialista.
Em 1976, o caso Wolf Biermann deu conta de que algo mudara. Este cantor famoso era um caso especial: filho de um operário judeu vítima do nazismo, com 17 anos emigrou, da RFA para a RDA, por considerar que no Ocidente não podia viver os seus ideais comunistas. Embora continuando a ser comunista, em 1963 quis fazer um espetáculo sobre a construção do Muro, o qual foi proibido pelas autoridades. Estas não sabiam lidar com ele: comunista, inconformista, iconoclasta. Mas o que acima de tudo as intrigava era que Wolf Biermann queria continuar a viver e a trabalhar na RDA. Aproveitaram uma viagem à RFA, onde deu um célebre espetáculo em Colónia, para o impedir de regressar ao seu país. Tentou voltar e foi proibido. Pela primeira vez, alguém que levantava a voz não queria sair.
Wolf Bierman, o concerto em Colónia, 1976 |
No período de contestação que a perestroika permitiu a partir de 1985, os cidadãos comuns da Alemanha de Leste começaram por reclamar o direito de sair do país, de que só beneficiavam os dissidentes. Em 1989, tantos partiram que, apesar da política de “nem uma lágrima”, a liderança da RDA se viu forçada a fechar a fronteira com um parceiro do Pacto de Varsóvia, a Hungria. Ficaram na memória de todos os alemães de Leste as imagens de um povo que deixava o seu próprio país em massa, vistas nos canais de televisão da RFA a que tinham acesso.
Vários governantes da RDA dessa fase escreveram memórias em que deram conta do desânimo que grassava nas hostes do SED. Tinham vergonha de um Estado que vê sair os seus cidadãos e que, assim, perde a sua base humana. Tinham vergonha, sobretudo, da política de “nem uma lágrima”. Não há sistema político que resista às imagens da debandada da sua base humana.
Ora, o momento chave ocorre quando nas manifestações de 1989 se ouve pela primeira vez gritar Ich bleibe hier! Primeiro, foi uma pessoa, incomodada por todas as palavras de ordem reclamarem o direito a abandonar o seu país. Depois, outra voz se ergueu. No fim do dia, eram tantos os que pediam para sair como os que proclamavam querer ficar. Aconteceu no dia 4 de setembro de 1989. Em Leipzig.
“Ich bleibe hier!” O que queriam dizer? Que ficamos, mesmo não gostando. Ficamos, para que as coisas mudem. E, sobretudo, ficamos, não vão conseguir ver-se livres de nós. Querem ver-se livres de nós para impor a vossa vontade. Ver-se livres de nós no momento em que o regime, sem povo e sem futuro, tem o desplante de festejar o seu quadragésimo aniversário. Pois não vão ver-se livres de nós. Ficamos!
Algo mudara em Leipzig.
José Luís Moura Jacinto
Sem comentários:
Enviar um comentário