segunda-feira, 9 de abril de 2012

O processo da verdade.



Abraveia, fotografia de António Albuquerque





O processo de Jesus a que sempre regressamos na Páscoa condenou um homem por dizer a verdade. No Novo Testamento encontramos muitas manifestações desse dizer a verdade, dessa revelação da verdade, que aí e no pensamento cristão se confundem com a confiança que podem ter os que acreditam em Deus e os que aceitam pregar “francamente”, como diz São Paulo, em nome de Jesus. Quando se apresenta aos fariseus, Jesus afirma abertamente que é filho de Deus. Jesus assume que tem de usar um discurso directo, claro, desprovido de obscuridade ou figuras de estilo.
Este falar com franqueza, ou este falar livre (não é por acaso que os franceses dizem ‘franc parler’ e os ingleses ‘free speech’, discurso franco ou discurso livre) era uma prática a que os antigos gregos chamavam parrhesia. Na Grécia antiga o conceito de parrhesia significava literalmente "falar tudo" e, por arrastamento, "falar livremente", "falar ousadamente", o que em certos contextos era não só necessário como inescapável. Falar com parrhesia não consistia numa simples actividade verbal, não era apenas liberdade de expressão, porque aquele que discursava com parrhesia aceitava falar tudo, com abertura, aceitava falar a verdade para o bem comum, mesmo em situação de risco pessoal. Não omitia nada, não concedia nada, não tinha em vista convencer uma audiência mas expor uma verdade potencialmente inconveniente e destruidora. E, como não conhecia que consequências recairiam sobre si por dizer o que disse, os riscos podiam ser de morte.
No último curso que deu no Collège de France antes de morrer, Michel Foucault dedicou-se a estudar a parrhesia como conceito essencial da vida política para os gregos, relacionando-o com o papel da verdade e dos discursos sobre a verdade em democracia. Era um conceito ambivalente, difícil de deslindar. Foucault lembrava que já na Grécia a parrhesia era entendida tanto num sentido positivo (o que diz tudo para o bem comum) como negativo (o que diz qualquer coisa que lhe vem à cabeça, o que não se cala, o que não se restringe). Por isso, podíamos ver a democracia como o regime que permitia a parrhesia, mas também como o que facilitava o seu uso destemperado por quem tudo diz sem pensar no que diz.
Para regressarmos ao processo de Jesus Cristo, torna-se agora evidente que a sua condenação não partiu só de uma multidão ou, dizendo de outra maneira, de uma maioria democrática, ansiosa por punir uma voz que lhe parecia fraudulenta e ameaçadora. Foi, mais do que isso, a condenação de um acto de parrhesia, a recusa de um gesto corajoso de franqueza. Porque em democracia – e essa é uma das lições políticas do julgamento de Jesus – são sobretudo os que dizem falar com abertura, falar ousadamente, que mais expostos ficam a um voto de desconfiança e rejeição. Temos muitos exemplos disso sempre que alguém denuncia um escândalo, uma fraude, uma mentira colectiva – e a multidão reage inquieta, talvez por ter sido disturbada no seu sono injusto.
A parrhesia, o acto de dizer a verdade, pode ser perigoso para a sociedade no seu todo, tal como pode ser perigoso para o indivíduo na sua própria vida e integridade. Ninguém diria que viver em democracia é ‘viver perigosamente’, mas é isso exactamente que é. E quem nunca teve ou procurou o seu momento de parrhesia, falando tudo, aceitando todos os riscos de uma espécie de conversão?

Pedro Lomba

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