sexta-feira, 6 de maio de 2016

Eça e os judeus (2).

 
 
 
 
Benjamin Disraeli
 
 
 
 
4. Eça, Disraeli e o anti-semitismo alemão dos anos 80
 
Voltando às crónicas inglesas dos anos 80, reunidas depois nas Cartas da Inglaterra, detenhamo-nos antes de mais naquela intitulada “Israelismo”, onde Eça onde se interessa pelo proliferar e adensar de ódios anti-semitas na Alemanha, em contraste com o sucesso que na Grã-Bretanha gozava os judeus e a estatura institucional do pai do Império que foi essa grande figura política chamada Benjamin Disraeli  (Londres, 1804 – idem, 1881), lorde e primeiro conde de Beaconsfield, primeiro-ministro inglês duas várias vezes (1868 e 1874-1880) e uma das figuras mais marcantes da construção do império colonial inglês no século XIX,  que remataria na atribuição, em 1876, com o título de imperatriz das Índias dado à rainha Vitória (1819-1901), que teve neste filho de um judeu levantino[1] o seu ministro preferido, sobretudo como corifeu do imperialismo britânico.[2]
Na crónica “Israelismo”, Eça ocupa-se em poucas linhas de Endymion dizendo que nele figuravam, sob nomes transparentes, Napoleão III, a imperatriz Eugénie, Bismarck, o cardeal Manning, os Rothschild, além de muitos lordes, duquesas, marechais. Na crónica “Lord Beaconsfield”, escrita após o falecimento de Disraeli em 19-V-1881, Eça dedica vinte páginas a examinar a carreira intimamente mesclada de escritor e de político de Disraeli, num misto de admiração pelos talentos do primeiro e de pouco apreço pelos talentos de segundo, sintetizando que “uma existência tão episódica, tão cheia, tão emotiva (…) ficará como o seu melhor romance”, acrescentando que seria recordado como “um homem de estado que fez romances”, sublinhando o paradoxo de que seria a “encarnação de tudo o que é contrário ao temperamento, às maneiras, ao gosto inglês”, pois, “tendo nascido judeu – tornou-se o chefe da aristocracia saxónia e normanda, a mais orgulhosa da terra, já que “a existência de Lord Beaconsfield foi, com efeito, um perpétuo paradoxo em acção.”
A crónica inglesa de Eça intitulada “Israelismo”, de 1880, pretendia examinar a sensação do mês, a publicação do romance Endymion de Disraeli, pretexto para contrastar a ausência de anti-semitismo na Inglaterra e a sua presença crescente no país de Bismarck. Fora, de facto, nesta década que se deram os primeiros movimentos europeus claramente dirigidos contra o povo da Aliança, tanto na Rússia − na qual o assassinato de czar Alexandre II, em 1881, desencadearia uma série de pogroms desde essa data até 1884, ao mesmo tempo que surgiam os primeiros apelos de regresso dos judeus russos ao seu território original −, como na Alemanha, e se editavam algumas obras judias pioneiras no sentido de reclamar a auto-emancipação ou a afirmação de nacionalismo hebraico, como aconteceria com as obras Roma e Jerusalém – Derradeira questão dos Nacionalistas (1862), de Moisés Hess (1812-1875),[3] publicada em Leipzig, onde se considerava a restauração do Estado judaico como uma necessidade tanto para o povo judeu como para a humanidade, ou ainda A Auto-Emancipação. Apelo dum Judeu aos seus Irmãos (1882), de Leon Pinsker, médico de Odessa, editada em alemão. Fora aliás em Odessa, em 1871, que se registara um dos primeiros grandes massacres colectivos organizados de judeus que abriria uma sucessão de morticínios que se escalonariam recorrentemente até aos começos do século XX. O aparecimento do movimento sionista de Herzl fora não só suscitado por estes movimentos que alastravam na Europa de leste, mas ainda pelo facto de na França republicana dos Direitos do Homem se ter condenado em 1894 o capitão Dreyfus, tendo Herzl assistido pessoalmente, como jornalista do Neue Freie Presse de Viena, à cerimónia pública de degradação desse alegado traidor, no grande pátio da Escola Militar de Paris, perto da torre Eiffel, o que o levaria a iniciar a redacção do seu livro O Estado judaico (Judenstaat), publicado no ano seguinte. Como veremos adiante, o affaire Dreyfus chocaria profundamente Eça de Queiroz.


 

 
Sem aludir a nenhum destes factos ou obras, a crónica de Eça sublinhava antes que a agitação anti-semita na Alemanha, onde se registava “a inacreditável ressurreição das cóleras piedosas doo século XVI”, o que contrastava com a situação na Inglaterra, onde os judeus também abundavam, “influindo na opinião pelos jornais que possuem (entre outros o Daily Telegraph, um dos mais importantes do reino), dominando o comércio pelas suas casas bancárias, e em certos momentos mesmo governando o Estado pelo grande homem da sua raça, o próprio Beaconsfield. Aqui, decerto, estamos longe de ver desenvolver-se um ódio nacional, uma perseguição social contra os judeus (…). Não vejo, por exemplo, que o que se está passando na Alemanha, apesar de exalar um odioso cheiro de auto-de-fé, provoque uma grande indignação na imprensa liberal de Londres,”( Cartas de Inglaterra).  Ocupa-se então Eça em esclarecer o que se passa na  Alemanha, “na sábia e tolerante Alemanha, depois de Hegel, de Kant e de Schopenhauer, com os professores Strauss e Hartmann, vivos e trabalhando, se recomece uma campanha contra o judeu, o matador de Jesus, como se o imperador Maximiliano estivesse ainda (…) decretando a destruição da lei rabínica e ainda pregasse em Colónia o furioso Grão-de-Pimenta, geral dois dominicanos - é de facto para ficar de boca aberta todo um longo dia de verão”, acrescentando que o venerável professor Virchow[4] se erguera no parlamento alemão a defender os judeus, a sabedoria dos livros hebraicos, as sinagogas, asilo de pensamento durante os tempos bárbaros”, limitando-se o governo germânico a afirmar secamente que “não tenciona por ora alterar a legislação relativamente aos israelitas!” (itálico do original), já que “uma tal declaração não é menos ameaçadora” deixando a colónia judaica em presença da irritação da grossa população germânica – e lava simplesmente as suas mãos ministeriais na bacia de Pôncio Pilatos”, pelo que se pode dizer que “todo esse mundo venerado e obedecido não vêem ódio ao judeu com entusiasmo, não deixam, todavia, de o aprovar nos seus corações cristãos.” Pergunta então Eça pela origem desse ódio antijudeu, lembrando que, se “Bismarck estivesse de toga, no pretório sobre a cadeira curul de Caifás, teria assinado a sentença fatal tão serenamente como o dito Caifás, certo de que nesse momento salvava a sua pátria da anarquia. Os conservadores de Jerusalém foram lógicos e legais, como são hoje os de Berlim, de Sampetersburgo ou de Viena: no mundo antigo, como agora, havia os mesmos interesses santos a guardar.” Voltando à Relíquia, podíamos cotejar esta observação com a que Eça faz no seu romance, ao falar da coligação de conservadores que tinha condenado Jesus, já que este também juntara contra ele “sacerdotes, patrícios, magistrados, soldados, doutores e mercadores para (o) matarem ferozmente no alto de um morro.”(A Relíquia).
Respondendo, na crónica inglesa de 1880, à pergunta sobre a origem do ódio germânico aos judeus, Eça explica que “o furor anti-semítico é simplesmente a crescente prosperidade da colónia judaica, colónia relativamente pequena, apenas composta de 400.000 judeus, mas que, pela sua actividade, a sua pertinácia, a sua disciplina, está fazendo uma concorrência triunfante à burguesia alemã”, porquanto “a riqueza do judeu o irrita, a ostentação que o judeu faz da sua riqueza o enlouquece de furor. E neste ponto, devo dizer que o alemão tem razão. A antiga legenda do israelita,  magro, esguio, adunco, caminhando cosido com a parede, e coando por entre as pálpebras um olhar torvo e desconfiado – pertence hoje ao passado. O judeu hoje é um gordo. Traz a cabeça alta, tem a pança ostentosa, enche a rua.” (Cartas…). E na Alemanha, continua Eça, “o judeu, lentamente, surdamente, tem-se apoderado da duas grandes forças sociais – a Bolsa e a Imprensa. (…). Tudo isto seria suportável se o judeu se fundisse com  a raça indígena. Mas não. O mundo judeu conserva-se isolado, compacto, inacessível e impenetrável. (...) Tudo isto, no entanto, é a luta pela existência. O judeu é o mais forte, o judeu triunfa. O dever do alemão seria exercer o músculo, aguçar o intelecto, esforçar-se, puxar-se para a frente para ser, por seu turno, o mais forte. Não o faz: em lugar disso, volta-se miseravelmente, covardemente, para o governo, e peticiona, em grandes rolos de papel, que seja expulso o judeu dos direitos civis, porque o judeu é rico, e porque o judeu é forte.” (p. 63). Por outro lado, faltando uma guerra, “o príncipe de Bismarck distrai a atenção do alemão esfomeado – apontando-lhe o judeu enriquecido. Não alude naturalmente à morte de Nosso senhor Jresus Cristo, Mas fala nos milhões do Judeu e no poder da Sinagoga. E assim se explica a estranha declaração do governo alemão.”
 

 

 
5. Os judeus d’Os Maias
 
         Interessa-nos agora abordar, na produção de Eça como ficcionista, a sua única obra que inclui personagens judias, o romance Os Maias, Episódios da Vida romântica (1888), sem dúvida a sua mais grandiosa e complexa evocação histórico-romanesca de um país e da sua sociedade dirigente e intelectual, desde o início da revolução vintista à Regeneração, com a maturidade, crise e declínio da sua própria geração setentista a que o autor pertenceu, o seu opus magnum pela riqueza temática e simbólica, nos aspectos sociais e culturais abordados, a rica trama da intriga e autognose do seu país numa fase em que se punha, de algum modo, a questão da falência ou redenção de uma colectividade nacional, livro ao qual o azedo Fialho de Almeida chamou, com alguma razão, uma “dança macabra”.
O facto de n’Os Maias haver cinco figuras judias não pode ser tomado como mera curiosidade, antes nos deve levar a examinar esse grupo tão diverso entre os seus componentes – Jacob Cohen e a mulher Raquel, o comerciante Abraão que tem uma  loja de bric-à-brac na rua do Alecrim, o detestável e detestado Dâmaso Salcede e, por fim, o seu já falecido pai, o Silva agiota. O banqueiro Jacob Cohen e a mulher, a “divina Raquel”, formam um duo essencial, até porque a ele se agregará, a relação adúltera daquela com João da Ega, uma das figuras centrais deste romance, amigo de Carlos da Maia desde os ano na universidade, festejado intelectual, autor dum livro iniciado nos tempos de Coimbra mas que nunca publicaria, embora a sua fama já tivesse chegado ao Brasil, as Memórias de um Átomo, uma epopeia em prosa, narrando a história duma partícula de matéria – o famoso Átomo do Ega - desde o caos primitivo até aos tempos presentes,  havendo nele um episódio chamado A Hebreia, passado num bairro medieval de Heidelberg, encarnando então o átomo no coração do príncipe Franck, poeta, cavaleiro e bastardo do Imperador, que palpitava pela judia Ester, filha do sábio rabino Salomão, perseguido pelo “ódio teológico do geral dos dominicanos”– e num monólogo, o átomo contava que era uma declaração de amor a Ester, o que era a confissão da paixão de Ega à mulher de Cohen. Seguia-se nas Memórias, o drama da perseguição aos judeus, a fuga da família hebraica através dois bosques e aldeias, a aparição do príncipe Franck que vinha proteger a sua amada hebreia, o tropel da turba fanática que corria a queimar o rabino e os seus livros, a morte do príncipe nos braços de Ester, que falece também no mesmo beijo. Dias depois de ler esta cena a Carlos da Maia, este lê na Gazeta do Chiado o relato duma leitura feita por Ega em casa de Jacob Cohen daquele episódio das Memórias dum Átomo, dizendo o jornalista que vira “lágrimas em todos os olhos da numerosa e estimável colónia hebraica.”                               
Figura irreverente, Ega era conhecido como “demagogo de Celorico”, já que nas tertúlias e jantares que esmaltam esta obra o vemos a perorar com verve sempre excessiva e impetuosa sobre questões polémicas de candente actualidade política como a falência de Portugal a partir da insolvência das nossas sempre cambaleantes finanças, a invasão do nosso país pela Espanha e, no final desses desastres, uma revolução forçosa, o único trauma capaz de nos redimir por completo.[5] Exageros demagógicos que levam o prudente director do Banco Nacional a moderar aqueles rompantes e a pedir-lhe que regressasse ao bom senso: “Evidentemente, ele era o primeiro a dize-lo, em toda essa gente que figurava desde 46 havia medíocres e patetas, - mas também homens de grande valor! – Há talento, há saber – dizia ele  (Cohen) com um tom de experiência. − Você deve reconhece-lo, Ega…Você é muito exagerado! Não senhor, há talento, há saber”. E Ega, embora contrariado, sobretudo porque algumas dessas bestas eram amigos do Cohen – ao qual o jantar fora dedicado e cuja ementa o demagogo de Celorico mandara inscrever delicadamente um prato chamado “petits pois à la Cohen”, tanto mais que a divina Raquel era sua amante −, reconhece-lhes talento e saber... No retrato deste banqueiro, debuxado sucintamente, Eça ficava-se pelos seus traços fisionómicos − era um “homem  baixo, apurado, de olhos bonitos, e suíças tão pretas e luzidias que pareciam ensopadas em verniz” −, sem lhe acrescentar quaisquer outros dados familiares, de origem ou carreira, dossiê parco que contrasta com tantas outras figuras, apesar deste romance ter sido concebido nos cânones dum realismo de “registo civil”, como diria Balzac.[6]
Em Ega não é difícil sentirmos uma espécie de evidente autocaricatura do próprio Eça hipercrítico das Farpas e dos romances feitos por um “ artista vingador” − como ele se definia, em 1878, em carta a Teófilo Braga[7] −, com os quais quisera escalpelizar e mostrar as mazelas essenciais de Portugal, em obras como O Crime do Padre Amaro ou O Primo Basílio. De qualquer modo, o que agora nos interessa é mostrar que esta paixão de Ega pela bela judia Raquel o arrasta para um desastre que se consumará com a expulsão do escritor sem obra da soirée de carnaval, na rua do Ferragial, onde morava Cohen. Este, vestido de beduíno, expulsara um João da Ega ironicamente trajado de Mefisto, numa cena que remata, com invulgar humor negro, no episódio subsequente, aquele em que o demagogo nortenho, Satanás de entrudo  humilhado pelo marido enganado de Raquel, vem pedir a ajuda de Carlos da  Maia para reparar essa afronta e vão os dois até à quinta do inglês Craft, nos Olivais, para ouvir o seu prudente conselho de gentleman.[8]
Outro judeu nos surge n’Os Maias, numa curta cena que precede o jantar no Hotel Central acabada de mencionar, o já referido tio Abraão, um velho de barba grisalha, que tem uma loja de bric-à-brac na rua do Alecrim, usa um barrete sujo e se exprime numa linguagem misturada de inglês. Mostra este a Carlos da Maia uma “maravilhazinha” que há na loja, um óleo de uma espanhola, sobre um fundo audaz de cor-de-rosa murcha, uma face velha picada de bexigas, com um sorriso bestial. Por este retrato oferece Carlos dez tostões, ao que o bom Abraão, com num riso mudo numa boca onde se via um só dente, responde que a oferta é uma “chalaça dos seus ricos senhores”, acrescentando que se a obra tivesse por baixo o nomezinho bendito de Fortuny,[9] custaria pelo menos dez continhos de reis. Ainda assim valia pelo menos dez notazinhas de vinte mil reis, proposta a que no médico retorque: “− Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma!” E Eça acrescenta que saíram, deixando “o velho intrujão à porta, curvado em dois, com as mãos sobre o coração, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos.” Na rua, acrescenta Carlos: “Não tem uma única coisa boa, este velho Abraão”, observação a que Craft acrescenta: “-Tem a filha.” Embora curta, não deixa toda esta cena de denotar uma leve mas inegável tónica de antipatia antijudaica, pois os adjectivos escolhidos, o tom depreciativo do retrato, assim como a sujidade e atitudes do tio Abraão são toques descritivos esquiçados com clichés negativos.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  
Outra figura judaica deste romance é uma das personagens mais antipáticas de todo o elenco da obra, o parvenu Dâmaso Cândido Salcede, a cuja família, tiques, comportamento psicológico de subserviência e cobardia, e demais elementos do seu background o romancista dá uma larga atenção, que em muito supera, por exemplo, os escassos elementos que nos fornece sobre o casal Cohen, ultrapassando os que dá sobre algumas figuras centrais do livro.[10] Na relação entre Carlos Eduardo da Maia e Maria Eduarda desenvolve-se esse “segredo terrível” que é um “horror”, porquanto aquele inesperado e improvável encontro amoroso se consumava um incesto que destrói o velho Afonso da Maia, ao saber que o seu neto a continuar a dormir com a irmã, embora sabendo quem ela é, o que confere a essa cruel revelação uma dimensão de tragédia grega na qual podemos discernir o símbolo duma espécie de maldição insuportável de contornos catastróficos, pesando não só sobre a vida de Carlos da Maia - pondo fim à carreira de médico rico e janota que nunca praticara medicina e que acaba por se expatriar alguns anos em Paris -, mas ainda sobre o próprio país como colectividade e destino, incapaz de superar uma perversão ínsita na sua realidade histórica. [11]
Dâmaso era um homem endinheirado, “moço gordo e bochechudo”, baixote, “frisado como um noivo de província, de camélia ao peito e plastron azul celeste”, filho de um agiota já falecido, o judeu Silva, que Alencar diz a Carlos da Maia ser “um velhaco” que “esfolou muito teu pai e a mim também”, falando Pedro da Maia dele como “Silva judeu, dinheiro a rodo!” O seu apelido era Silva, e o nome Salcede seria portanto inventado, a menos que fosse nome da mãe, irmã do sr. Guimarães. Tendo sucedido a João da Ega na posição de amante da divina Raquel, o demagogo de Celorico vota ao desprezível Dâmaso uma ojeriza imensa que será saciada na famosa cena em que o escritor, por ter obtido do Palma Cavalão documentos de um artigo injurioso que o Dâmaso queria publicar na Corneta do Diabo, o força a assinar uma carta ignominiosa na qual o infeliz confessa que por se “achar no mais completo estado de embriaguês”, que seria aliás hereditária, confissão que Salcede copia com a sua letra aplicada, numa folha onde se ostenta o seu brasão com um  leão, um torre e a divisa “Sou forte!”, confissão escrita que lhe evita ter de se bater em duelo com Carlos mas não impede que essa ignominiosa carta seja publicada na Tarde, o mesmo jornal que, algum tempo volvido, volta a falar do detestado parvenu como “um distinto sportman.”
O caso de Dâmaso − figura desprezível que só tem equivalente em defeitos humanos à ignóbil personagem chamada Alípio Abranhos, caricatura cruel do político padrão do constitucionalismo monárquico[12] − interessa-nos aqui, apenas, como um dos cinco personagens judeus do livro de Eça, ainda que tendo mudado de apelido e feito esquecer, na sua admiração beata pelo chic, o seu comportamento que todos os demais classificam em termos de desprezo, desde o tio Guimarães aos janotas do high-life lisboeta (que idolatrara Carlos da Maia, por este ser “chic a valer”), a sua paixão de parvenu que compra uma quinta em Sintra e sonha, como provinciano que é, com  o “boulevardezinho” de Paris, acabando por cortejar a divina Raquel, aquela judia que Ega dizia a Carlos “lembrar uma mulher da Bíblia. Não digo lá uma dessas viragos, uma Judite, uma Dalila…[13] Mas um desses lírios poéticos da Bíblia…É seráfica…” Curiosamente, os dois mais verdadeiros representantes do povo judaico, Jacob e a sua bela mulher Raquel que o trai, não mereceram a Eça, apesar de ser leitor atento de Balzac e Flaubert, debuxar  mais do que retratos sumários que fomos citando, sendo o director do Banco Nacional dado em rápidos traços fisionómicos, nada nos deixando conhecer do seu meio familiar, origens e comportamento, para além da longa cena do jantar que lhe é dedicado no Hotel Central, em que o prudente argentário, como vimos, defende o mundo oficial pós-cabralismo, aquele mundo da Regeneração que o “exagerado” Ega (como o define Cohen) tanto vituperava. Também de Raquel nada mais acrescenta Eça quanto ao seu background social, familiar, cultural, etc. Não pretendemos dizer que por via desse reduzido dossiê psicológico, humano e social, o casal Cohen deixasse de ter uma importância central na teia de sentimentos, ódio, amores e influências no mundo das acções descritas no romance. Todavia, como o salientámos, já o “infame” e “cavalgadura” do Dâmaso – que no final do romance nos aparece  “barrigudo, nédio, mais pesado, de flor ao peito, mamando um grande charuto , embrutecido e pasmaceando, como o ar regaladamente embrutecido dum ruminante farto e feliz” - ocupa neste romance um papel central, tanto mais que ele se cruza com os dois amigos Carlos da Maia e João da Ega, acabando por suscitar a feroz inimizade destes, envolvendo-se numa trama onde o ódio de João da Ega, o despeitado amante de Raquel,  lhe valeria sofrer desaires sem par.
Por outras palavras, a neutralidade de Eça em relação a estas figuras judaicas – exceptuando o caso do repulsivo Dâmaso e o seu empenhado esforço em mostrar neste um homem a todos os títulos detestável no comportamento, na cobardia da sua conduta e na mesquinhez do seu espírito vácuo -, remetidas a um elenco marginal, impede-nos de esquiçar uma explicação daquilo a que se poderia chamar a visão queirosiana dos judeus nas elites lusas na Lisboa  dos anos 50 a fins de 80.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   


 

 
6. Eça e a questão Dreyfus
 
O caso Deyfus,[14] começado em Outubro de 1894, levaria Eça a tomar posição indignada em relação à a recondenação daquele oficial judeu no tribunal militar de Rennes, em 1899, o que levaria no nosso escritor a manifestar a sua imensa desilusão em relação ao comportamento dos franceses num caso tão obviamente injusto como aquele que condenara um inocente à degradação perpétua na Ilha do Diabo. Fê-lo Eça em duas cartas, por um lado, ao seu amigo brasileiro Domício da Gama e, por outro, à sua mulher Emília. Leiamos esses dois depoimentos capitais de Eça sopre o trágico caso de martírio de Dreyfus. Ao diplomata brasileiro, em carta de uma pequena aldeia onde passava férias estivais com a família, uma aldeia tão pequena que nem tinha padeiro, Eça dizia, em 26-IX-1899, já depois do processo de Rennes ter terminando . “sentir uma grande tristeza com a indecente recondenação do Dreyfus”, já que, “com ela,  morreram  os últimos restos, ainda teimosos, do meu velho amor latino pela França. Os Suíços, querido Domício, não se enganaram atribuindo o julgamento de Rennes «à própria essência do espírito nacional». Quatro quintos da França desejaram, aplaudiram a sentença. A França nunca foi, na realidade, uma exaltada de Justiça, nem mesmo uma amiga dos oprimidos. Esses sentimentos de alto humanismo pertenceram sempre e unicamente a uma élite, que só tinha, parte por espírito jurídico, parte por um fundo inconsciente de idealismo evangélico.” [15]
E, depois de explicar que, por altura de 1848, esta elite conseguira propagar o seu sentimento na larga burguesia sensibilizada desde 1830 pela educação romântica,  mas logo com o Segundo Império regressara “à sua natureza natural, e recomeçou a ser, como sempre, a Nação videira, formigueira, egoísta, seca, cúpida. Devia talvez acrescentar cruel – porque de facto todas as grandes crueldades da História Moderna, desde os Albigences às Matanças de Setembro, têm sido cometidas pela França. O seu pretendido Humanitarismo e Messianismo do Amor é uma mera réclame montada pela literatura romântica (…). E o processo de Rennes provou que a mesma Bondade, a bondade individual, é nela rara, ou tão frouxa, que se some, apenas a França, por um momento, se constitui em multidão. Em nenhuma outra nação de encontraria uma tão larga massa de povo para unanimemente desejar a condenação de um inocente (que sentia inocente) e voltara as costas, ou mesmo ladrar injúrias, à sua longa agonia.”[16]



 
 
 
         Pouco antes, em carta à sua mulher Emília, o romancista, achando-se no Grand Hotel Terminus, em Paris, escrevia em 9-IX, sobre o processo de Rennes, dizendo que a capital vivia m efervescência, ardendo de ansiedade e de febre: “Em torno dos quiosques de jornais há já magotes enormes à espera das últimas edições. Mas por ora nada se sabe, excepto que Me Demange [17] acabou a sua espantosa plaidoirie, no meio da maior emoção. Deus permita que tudo termine bem, e que haja sossego e que se possa tirar  a atenção, enfim, da melancólica cidade de Rennes.”[18]   E nesse mesmo dia, em Forest, desse mês, no dia em que o processo terminaria, Emília faz-lhe antevisões sobre este, baseada no seu “profético coração”, condoída como está com a situação do capitão e lembrando que reza por ele: “Nesta última hora, tenho estado m.to preocupada, pensando  no que se está passando em Rennes! diz o Figaro de ontem , que hoje ao meio-dia se devia dar a sentença! A esta hora portanto está tudo consumado! O meu profético coração diz-me que é uma condenação! Tenho estado a rezar pelo desgraçado, pedi por ele a Nossa Senhora, que ele não conhece, e ao Deus de Israel, que ele conhece tão bem! Que dó dele, da mulher, dos filhos! Pergunto-me se haverá forças humanas para sofrer tanto!”[19]
Dois dias depois, vendo confirmada a profecia do seu coração, Emília volta a escrever ao marido com imensa tristeza:
         “Que me dizes à sentença Dreyfus? A mim parece-me mais uma prova que os juízes não acharam o crime provado, pois que circunstância atenuante podia haver, num  crime de traição cometido por um oficial? Não se atrevem a absolve-lo, por medo dos generais, refugiaram-se neste mia media; já é bem bonito que entre 7 se encontrem 2 homens de coragem e consciência!”[20] Uns dias antes, noutra carta ao marido, Emília, escrevendo de Bourbonne, referira-se  ao caso Dreyfus: “Eu li m.to jornal, fiquei com dor de cabeça de tanto bordereau: que me dizes ao atentado contra o Labori? hoje ainda não tive notícias, porque os jornais chegam de tarde”,  referindo que falara com uma senhora dreyfusarde num meio muito hostil ao capitão judeu, tendo aquela ficado tão feliz com a simpatia da portuguesa pelo acusado que até lhe passara  a ciática.[21] Por fim, num bilhete postal expedido de Forest, escreve laconicamente que ficou “triste com  a decisão conselho de guerra. Contentará alguém?”[22]




Última fotografia conhecida de Theodor Herzl, fundador do sionismo.



 
Embora Eça tivesse vivido os derradeiros anos da sua existência em Paris, desde 1888 até à sua morte, compondo um romance, de edição póstuma, A Cidade e as Serras,[23] que tem a capital francesa como um dos seus cenários centrais, a verdade é que o affaire do capitão judeu injustamente condenado duas vezes, não obstante o trauma profundo que causou ao seu velho amor pela França, a questão judaica e o judaísmo só tinham ocupado, desde os anos 80, algumas das suas crónicas inglesas acima referidas, pelo que através das citadas cartas e 1899 se comprovava que a questão judaica e as perseguições ao povo da Aliança o preocupavam, ainda que, por paradoxo, não fosse na Alemanha do seu tempo que estalasse esse caso onde o rábido ódio anti-semita se havia de revelara mais furiosamente vivo – na França republicana, terra dos direitos do Homem e do Cidadão e uma das nações mais cultas e progressistas da Europa -, facto que teria pesado no destino do povo judeu, já que o livro de Herzl, propondo a  restauração do Estado judaico, tivera uma relação directa com o facto do jornalista austríaco ter assistido à cerimónia pública de degradação militar de Dreyfus, acima referida: nos seus artigo remetidos para o seu jornal, Neue Freie Presse de Viena, Herzl multidões fanáticas francesas gritavam “Morte a Judas!”(era assim que o criador do sionismo traduzia o brado Mort aux Juifs!). [24]Mais tarde, o próprio Herzl confessaria: “O julgamento de Dreyfus – que eu assisti em Paris em 1895 −, fez de mim um sionista.”[25] Por outro lado, como também procurámos analisar, a própria existência de cinco personagens judeus no opus magnum eciano pouco adianta para justificar uma releitura dessa temática como algo de central na sua produção, mau grado constituir uma novidade no panorama da literatura lusa do oitocentos −  Pinheiro Chagas fora um dos raros escritores coevos a ocupar-se do anti-semitismo português, no século XVI, na sua peça A Judia (1869).[26]  Uma vez mais, a quase nula relação pessoal de Eça com os judeus lusos ou estrangeiros não lhe permitia ir mais longe do que foi. E, na verdade, o que ele escreveu nas crónicas inglesas e na cartas pessoais, estas sobre o affaire Dreyfus, ultrapassa muito o pequeno grupo de judeus que habitam o espaço literário d’Os Maias, esse pouco simpático grupo hebraico que funciona como amostragem dos judeus lusos, ligados sempre ao dinheiro da banca, ao comércio e à usura - por outras palavras, incluídos numa humanidade sobre a qual pesavam imemorialmente estereótipos antipáticos, embora paradoxalmente, o próprio romancista defendesse o povo da Aliança quando se preocupava com a onda crescente do anti-semitismo germânico ou se indignava com a súbita irrupção do ódio aos judeus na tão civilizada França finissecular do affaire, ele que fora, desde a infância, um afrancesado, embora crítico e recalcitrante.[27]
 
 
 João Medina
 
 
 
 
 
 






[1] Chamava-se  Isaac D’Israeli (1766-1848), estabelecido na Itália e, mais tarde, na Grã-Bretanha, literato convertido ao anglicanismo. Eça menciona-o, dizendo que, “felizmente para os destinos futuros do seu filho, rompeu com a sinagoga, e todos os Disraeli se fizeram cristãos.” O pai de Disraeli foi um literato interessado na história literária, publicando diversos volumes intitulados Curiosidades literárias e uma história de Carlos I de Inglaterra. Byron estimava-o.


[2] Sobre Benjamin Disraeli, político e romancista, veja-se Eça, as crónicas “Israelismo” e “Lorde Beaconsfield”, in Cartas de Inglaterra, Porto, Lello & Irmão, s.d., respectiv. pp.55-65 e 81-105. O seu primeiro romance, publicado anónimo em 1826, foi Viviam Grey (1826), formando um a trilogia com  O Jovem Duque e Allroy, seguindo-se O Casamento infernal, Ascensão de Lisander, Henriette Templin, uma nova trilogia constituída por Coninsby (1849), Sybill (1845) e Tancred (1847). Sobre este último, Eça explica que o herói Tancredo vai a Jerusalém e à Síria com o fim de “penetrar o mistério asiático”, pois foi ali “o único ponto do universo em que Deus jamais conversou com o homem”, perguntando: o que descobriu o viajante inglês sobre o tal “mistério asiático? Parece que o não achou.”(p.101). Disraeli pulicou ainda dois romances, Lothaire (1870) e Endymion (1880).


[3] Veja-se Moses Hess, Rome et Jérusalem, pref. de Simon Schwarzfuchs, Paris, Albin Michel,1981.


[4] Rudolf Wirchow (1821-1902), médico, fundador da histologia patológica, autor de Die Cellularpathologie (1851), deputado liberal no parlamento, hostil a Bismarck, fundou com Funck von Dassau e o historiador Theodor Mommsen a Associação de Defesa contra o Anti-Semitismo.


[5] Veja-se, por exemplo, o jantar no qual João da Ega e o velho poeta romântico Tomás de Alencar discutem e se zangam a propósito de literatura e, sobretudo, o debate nesse mesmo jantar oferecido a Cohen, no Hotel Central, em torno da crise financeira portuguesa e o empréstimo necessário para salvar o nosso país, a inevitável invasão espanhola resultante dessa crise e, por fim, a revolução (Maias).


[6] Logo no começo do primeiro volume deste romance, Eça traça-nos a genealogia da família central desta obra e que lhe dá, aliás, o título, desde a sua Beira natal, evocada em quatros gerações e,  a partir de certa altura, estabelecida em Lisboa, no palacete do Ramalhete: Caetano Maia (o Antigo Regime), Afonso (a revolução liberal (1820 e seguintes), Pedro (A Regeneração, 1850 e ss) e Carlos Eduardo (o Portugal coevo do próprio romancista, 1875 e ss).


[7] Veja-se Eça, Correspondência, carta de Newcastle a Teófilo Braga, de 12-III-1878,  Correspondência, Porto, Lello & Irmão,1963, p.53.


[8] Queixa-se ali o esguedelhado Ega do vexame sofrido, além de desagradável hipótese de esperar que o banqueiro lhe mande os seus padrinhos para um duelo a que o ofendido judeu tem direito, ao mesmo tempo que se consola, a comer e beber excessivamente, embriagando-se e rematando a sua bebedeira com um delirante aparte: “Queres que te diga o que penso de Darwin? É uma besta. Ora aí tens. Dá cá a garrafa”, caindo em seguida sobre o chão, como um fardo. Entretanto, enquanto devorava talhadas de peru, uma porção imensa de presunto de York, sandes de foie gras e bebia Chambertin, o enxovalhado Mefisto não deixava de evocar a sua paixão por Raquel, banhando-se “no mar das confidências vaidosas”, confidências que o inglês comenta com um fleumático “-Muito curioso!”


[9] Mariano Fortuny (Réus, Catalunha, 1838 – Roma,1874), instalado em Roma em  1857, onde viveu a maior parte da sua vida, fez em 1860 uma viagem acompanhando o general Prim na expedição de Marrocos, pintando uma série de quadros célebres históricos, com temas folclóricos e exóticos (A Odalisca, 1861), o que lhe deu celebridade e uma verdadeira fortuna. Sensível à vibração da luz, desenvolveu um estilo de cores fortes, primeiro em temática orientalista e depois, mais resolutamente realista,  pintando boémios e velhos. Fortuny foi também autor de águas-fortes.


[10] Resumamos o elenco essencial dos personagens d’ Os Maias: Carlos Eduardo da Maia, o seu pai Pedro e o avô Afonso;  João da Ega, “o Mefistófeles de Celorico”; o velho poeta  romântico Tomás de Alencar; o flácido Eusebiozinho que Carlos desde a infância sova e esfrangalha a roupa; o “Calino republicano” chamado Sr. Guimarães, que seria amigo de Gambetta e vivia há muitos anos em Paris, não passando de um insignificante e pobre jornalista do Rappel, traduzindo notícias de jornais espanhóis e italianos, embora o seu sobrinho Dâmaso o declarasse uma figura política de primeira importância; o Conde de Gouvarinho, par do reino, asno e caloteiro - versão actualizada e soft da figura típica do ignorante e nulo pessoal político nacional que Eça já debuxara no repulsivo Conde de Abranhos − e  a sua mulher, condessa que tem uma fugaz ligação com Carlos da Maia; o maestro Cruges; a misteriosa Maria Eduarda pela qual Carlos terá uma grande paixão, sem saber que ela é, na verdade, sua irmã.


[11] Veja-se o tópico da geração de 70 como geração falhada no nosso capítulo “Ascensão e queda da geração de 70”, in Eça político, Lisboa, Editora Seara Nova, 1974, pp.35-42. E sobretudo o capítulo “O «Nihilismo» de Eça de Queiroz n’«Os Maias»” no nosso livro Eça de Queiroz e a Geração de 70.  Lisboa, Moraes Editores, 1980, pp.73-86. João da Ega confessa a Carlos da Maia, quando este volta a Lisboa para uma curta visita e tornam os dois amigos a visitar o Ramalhete: “Falhámos a vida, menino!” (Maias). Dizemos ali que este é “um romance sobre a decadência nacional. A história simbólica da ruína de uma família que, a seu modo, na sucessão das suas gerações, desde o antigo regime até ao Portugal contemporâneo de Eça, representa o destino e até os períodos da história de um país – Portugal (p.73), segundo o teorema seguinte: “se uma família nobre, ligada aos destinos e às decisões capitais do país pelo facto de se situar na cúpula do poder e da fortuna, condensando o melhor da sua colectividade, pode encerrar como raça e como fibra (…), se, portanto, nesta família e nesta casa (o Ramalhete) se resumem algumas décadas de história e todas as virtudes . e defeitos – de uma progénie representativa, e se nessa mansão simbólica e nessa estirpe superior se introduz a moléstia invisível da decadência para as arruinar, abater e destroçar, que dizer então do próprio Portugal que nestes símbolos subjaz?”(idem). Em resumo, “ a nacionalidade parece fadada a um malogro evidente, malogro que domina Os Maias como seu secreto e forte leitmotiv trágico, ecoando ao longo do romance, aflorando a cada instante”(p.75), sendo o incesto o emblema fatídico dessa fatalidade ominosa, o tal “ascoroso segredo” (Maias). Daí a nossa conclusão: “Livro nihilista, livro desesperado mesmo, Os Maias são o dobre a finados duma nação retratada com vitriólica ironia e vingativa sátira. (…). Cada personagem d’Os Maias falha individualmente, e falham as figuras em conjunto como geração ou como colectividade: este romance podia intitular-se Os Maias ou Os Vencidos da Vida.”(pp.79-80). Como resume o maestro Cruges na passeata a Sintra: “-Isto é um país impossível!”(Maias). Note-se que Eça já fizera a confissão do falhanço da sua geração, mas sobretudo no esforço de produzir uma literatura capaz de emendar o país, num artigo que dedicara a Ramalho Ortigão, datado de 25-II-1878, publicado na revista Renascença, recolhido nas Notas contemporâneas (póstumo); veja-se Notas Contemporâneas, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp.22-41; maxime p.31: “Onde estão os livros? Esta geração tem o aspecto de ter falhado.”


[12] Sobre o detestável homem e político Alípio Severo de Noronha, conde de Abranhos, pedante, patife, carácter dúplice e corsário político, veja-se o que dele dizemos no capítulo “A irresistível ascensão de Alípio Severo (Estudo sobre o Conde de Abranhos)” no nosso livro Eça político, Lisboa, Editora Seara Nova, 1974, pp. 11-31.


[13] Recordemos que Judite (em hebreu, Yehudit, “a judia”), introduzindo-se na tenda do general inimigo, degolara o assírio Holofernes, salvando a cidade de Betúlia (cf. Genesis, 16, 34)., onde o matou. Quanto a Dalila, pela qual se apaixonara Sansão, comprada pelos filisteus,  conseguiu saber o segredo da sua força, que residia na sua longa cabeleira,  cortando-a e entregando-o ao inimigo. Sansão acabaria por destruir os filisteus fazendo cair as colunas do templo de Dagon, deus daqueles (cf. Juízes, 16, 4-20).


[14]  O affaire Dreyfus, no começo um simples caso de espionagem, transformou-se depressa numa grave crise política que abalou a III República francesa desde então até aos começos do século XX, dividindo profundamente a opinião e criando uma acentuada clivagem entre a direita e a esquerda nesse país, conduzindo à criação duma “República radical” que duraria até 1940. Em Outubro de 1894 iniciava-se o caso ao ser descoberta uma fuga de segredos militares na embaixada alemã em Paris, recaindo as suspeitas sobre o único oficial judeu no 2e bureau do Estado-Maior do exército, o capitão Alfred Dreyfus (Mulhouse, Alsácia, 1859 – Paris, 1935), duma família judia abastada, que foi preso e julgado de modo sumário, acusado de traição e condenado à degradação militar, em cerimónia pública (5-I-1895), no grande pátio da Escola Militar de Paris, perto da torre Eiffel, sendo mandado em deportação perpétua  para a ilha do Diabo (Cayenne), enquanto a imprensa anti-semita, como o jornal La Libre Parole, de Drumont, insistia na traição dos judeus. Entretanto, em 1896,o major Picquart, novo chefe dos serviços secretos do exército, descobria um documento atestando que a traição se devia na verdade a um outro oficial, Ferdinand Esterhazy (1847-1923), oficial francês de origem húngara, que seria julgado num tribunal militar, embora fosse ilibado (Janeiro de 1898). Quanto a Picquart, foi transferido para a Tunísia. O romancista Zola publica então, no jornal L’Aurore de Clemenceau, um veemente artigo, o famoso “J’accuse”(13-I-1898), pondo em causa a actuação do Estado-Maior, dos juízes militares e do governo, o que o levaria a ser acusado e condenado por difamação, tendo o escritor de se exilar na Inglaterra. Entretanto os dreyfusistas, reunidos na Liga dos Direitos do Homem, batiam-se denodadamente pela inocência do oficial alsaciano, afrontando os antidreyfusistas dos meios clericais, anti-semitas e nacionalistas, que criariam então um movimento monárquico que pesaria na vida política francesa durante décadas (incluindo o regime de Vichy, de 1940 a 1944), a Action Française, dirigida por Charles Maurras. Em Agosto de 1898, a descoberta de um documento falsificado vem inocentar o capitão degredado na Guiana. Em Junho de 1899 forma-se um ministério presidido por Waldeck-Rousseau, sendo Dreyfus de novo julgado em conselho de guerra, agora em Rennes, processo que decorreu entre 8-VII e 9-IX desse ano, sendo o capitão alsaciano de novo condenado, por 5 dos 7 jurados do tribunal, embora fosse logo agraciado (19-IX)  por Loubet, presidente da República, e finalmente libertado. Em 1906, Dreyfus pediria a revisão do seu processo e o supremo tribunal anularia em recurso final a sentença do tribunal de Rennes, reabilitando Dreyfus definitivamente. Sobre a este caso célebre, que teve enorme impacto em Portugal,  veja-se o nosso citado estudo-antologia  O Caso Dreyfus em Portugal, separata da Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 5ª série, nº 16-17, 1994, pp.115-231, ilustr..(sobre Eça e o caso D., p.199, carta a Domício da Gama, de 26-IX-1899, sobre a recondenação de A.D, no julgamento de Rennes, e Eça e a questão judaica: pp.222-3 ).


[15] Carta de Eça a Domício da Gama, escrita em 26-IX-99 em Forest par Chaumes, no Seine et Loire, Correspondência, Porto, Lello e Irmão. 1963, p.282; itálicos do original. Domício da Gama (Maricá, 1862 – Rio de Janeiro, 1925), nascido como Domício Afonso Torneiro, adoptaria o apelido do padrinho que o educou, entrando na carreira diplomática pela mão do barão de Rio Branco, representando o Brasil em diversos países, chegando a embaixador nos Estados /Unidos. Fez parte do grupo fundador da Academia Brasileira de Letras.


[16] Idem, p.283.


[17] Eça refere-se a um dos dois advogados de Dreyfus, o Dr. Edgar Demange. O outro advogado,  Fernand Labori (1860-1917), que também defendera Zola, fora alvo de um atentado, que adiante referiremos num postal de Emília de Castro. Sobre o processo Dreyfus, vejam-se duas obras indispensáveis: -Jean Denis Bredin, L’Affaire, Paris, Julliard, 1983, ilustr. (v.g., reprod. da famosa capa ilustrada com a cerimónia de degradação de A.D., no pátio da Escola Militar,  estando o sargento Bouxin a quebrar sobre a sua coxa a espada do capitão, depois de lhe ter arrancado os galões do  boné, das mangas da farda e dos ombros, no Le Petit Journal,  Paris, 13-I-1895). -Bertrand Joly, Histoire politique de l’Affaire Dreyfus, Paris, Fayard, 2014.Veja-se ainda Joseph Reinach, Histoire de l’Affaire Dreyfus, Paris, Robert Laffont, 2006 (apenas com o processo de 1894). Por fim, veja-se o estudo de Marcel Thomas. Esterhazy ou l’envers de l’Affaire Dreyfus, Paris, Vernal/Philippe Lebaud, 1989, estudo sobre o verdadeiro traidor que informava a embaixada alemã em Paris, o major conde Walsin-Esterhazy, 1849-1925). Por fim, veja-se Alfred Dreyfus, Carnets. 1899-1907, Paris, Le Grand Livre du  Mois, 1998.


[18] Carta de Eça à mulher Emília de Castro, in Obra de Eça de Queiroz, vol.III, Porto, Lello & Irmão Editores, 1966, p.1664.


[19] Carta de Emília a Eça, in Eça de Queiroz – Emília de Castro. Correspondência epistolar, org., introd. e notas de A. Campos Matos, Porto, Lello & Irmão Editores, 1995, p.608.


[20] Carta de Emília a Eça, de Forest par Chaumes, de 11-IX-99, in Eça de Queiroz – Emília de Castro…, p.610.


[21] Carta de 16-VIII-99, enviada de Bourbonne, op. cit., p.603.


[22] Ibidem, p.609.


[23] Eça, A Cidade e as Serras,  Porto, Lerllo & Irmão Editores, s.d. Este romance póstumo, editado em 1901 por Ramalho OIrtigão,  na Livraria Chardron de Lello & Irmão, no Porto, teve cerca de metade das provas ainda revistas pelo autor em 1900, sendo reeditado em 1903 e uma terceira edição em 1908. Entre os amigos parisienses de opulento Jacinto, o “Príncipe da Grã-Ventura”, nascido na capital francesa porquanto seu riquíssimo pai, conhecido em Lisboa como D. Galião, devoto miguelista, se expatriara de vez quando D. Miguel partiu de Portugal, vivendo nos Campos Elísios, 202, achava-se  David Efraim, um “terrível banqueiro judeu», com uma “encaracolada barba hebraica” que pretende associar-se com o magnata português numa Companhia das Esmeraldas da Birmânia, que “os dois confederados de bolsa e alcova” - eram ambos amantes de Mme de Trèves −, desconfiando o nosso compatriota dessas esmeraldas soterradas num vale da Ásia, perguntando-lhe se já se provara que havia de facto essas jóias preciosas, questão a que o argentário hebreu replica com uma típica frase lapidar: “- (…). Está claro que há esmeraldas!...Há sempre esmeraldas desde que haja accionistas!”(A Cidade….). Efraim é três vezes mencionado, embora sem especial relevo, na acção desta obra, sendo, numa delas, a célebre cena do peixe assado que se encrava no elevador dos pratos durante o jantar oferecido ao Grão-Duque (pp.57-81). Por outras palavras, esta isolada figura de judeu francês pertence à categoria convencional dos banqueiros poderosos, não passando dum mero cliché tradicional dos homens do dinheiro, esse a que o amigo de Jacinto, o narrador Zé Fernandes, chama “bendito” (“Caramba, bendito seja o dinheiro!”, p.58).


[24] Veja-se o cit. estudo de E.Pawel, The Labyrinth of Exile, pp.206-10,  351-2 e 377.


[25] Ibidem, p.209.


[26] Ver M. Pinheiro Chagas (1842-1898), A Judia. Drama original em 5 actos, Porto, Viúva Moré, 1869. A peça passa-se no final do reinado de D.Manuel e começo do de D.João III: este último apaixona-se por Beatriz, que na verdade é uma judia, tornando-se D.João II quem cria o tribunal do Santo Ofício , em 1536. Sobre este monarca, P.C. diz que iria começar “o reinado dos frades em Portugal e com ele talvez a decadência espantosa de Portugal.” (p.25). Beatriz faz uma patética defesa pública dos judeus, quando D. João descobre que ela é judia, que uma judia no Paço, falando deles judeus como “povo desgraçado, em toda a parte prescrito, em toda a parte inimigo. A terra em que nascem não é pátria, é exílio! Tristes, com a saudade imensa das sua doce Jerusalém, vagueiam no mundo as tribos dispersas, implorando ao estrangeiro apenas o sorriso da hospitalidade, um pouco de compaixão, uma centelha de afecto, e à suas súplicas respondem o ódio, o desprezo, o insulto.(…). Dizem que pesa sobre eles a maldição de Deus! Oh! É mentira. Deus é pai e um pai não amaldiçoa os seus filhos. Cristo perdoou aos algozes; como condenaria os inocentes? ”(pp.138-9). D.Joãoo III responde-lhe: “Amei uma judia!...Amei uma judia!...Ah!, filha de Satanás, mas como és bela assim!”(p.140). Acrescentemos, entre a escassa literatuyra lusa de oitocentos sobre matéria judaica, O Judeu (1865 ) de Camilo Castelo Branco (1825-1890), acerca do dramaturgo António José da Silva.


[27] Veja-se o nosso “À margem dum ensaio de Eça de Queiroz (Nótulas sobre “O Francesismo”, sua cronologia e fontes)”, no cit. estudo Eça político, pp.73-85, acerca do escrito de Eça intitulado “O Francesismo”, in Últimas Páginas, Porto, Lello & Irmão, s.d. (1912), pp.383-411.

2 comentários:

  1. Excelente estudo. Um texto de grande interesse para ser lido, com atenção, por quem goste do tema e da obra de Eça de Queiroz.

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  2. Parece-me muito discutível a afirmação de que Dâmaso Salcede era judeu. Como se sabe o epíteto "judeu" (usado por Alencar)era, até há bem pouco tempo, aplicado a qualquer pessoa avara ou que emprestava dinheiro a juros. De resto, a figura de Dâmaso não apresenta quaisquer traços de pertença a esta comunidade. Não esquecer que este já aparece esboçado na Tragédia da Rua das Flores, onde também nada faz adivinhar tratar-se de um judeu.

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