Ao contrário de Yann Martel, John
Gibbons não escreveu um sucesso mundial adaptado ao cinema, cujo enredo tem por
personagens um menino e um tigre que, após um naufrágio, percorrem os oceanos a
bordo de um salva-vidas. Não admira, pois, o alarido mediático suscitado pelo
último livro de Martel, As Altas
Montanhas de Portugal, dedicado a Trás-os-Montes. Menos compreensível, no
entanto, é o esquecimento a que a obra de Gibbons continua a ser votada.
Por ocasião do 250º aniversário da vila
de Carrazeda de Ansiães, a edilidade promoveu em 1984 a edição de Não Criei Musgo. O livro já foi alvo de uma excelente dissertação académica (O Portugal de Salazar Visto de uma Varanda
Transmontana, de Ana Isabel Nú Calado, 2005) e de um interessante artigo na
Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, da autoria da geógrafa
Fátima Loureiro de Matos, mas, estranhamente, continua a não despertar a atenção dos nossos editores.
A ideologia do autor não ajuda, é
certo. E, em 1939, a obra foi galardoada com o Prémio Camões pelo Secretariado
de Propaganda Nacional, o que só piora as coisas. Gibbons, que traduziu para
inglês as entrevistas de António Ferro a Salazar, não só não esconde a sua
admiração pelo ditador como lhe tece rasgados elogios, à semelhança dos vários
escritores estrangeiros que visitaram Portugal nos anos trinta – com excepção
de Ralph Fox, militante comunista e biógrafo de Lenine cujo livro Portugal Now foi publicado entre nós pela
Tinta-da-china, em 2006.
John
Stephen Reynolds Gibbons nasceu no Sul de Londres em 1882, filho de um advogado
oriundo de uma família de pequenos proprietários rurais do Lincolnshire. Passou
a infância e a juventude em York, sonhando com viagens a países longínquos. Aos
dezassete anos, abraçou a fé católica, tornando-se praticante, e, quatro anos
depois, casou com Mabel Woodhead, de quem teve duas filhas. Por essa altura, torna-se
investigador na biblioteca do Museu Britânico, fazendo pesquisas para outros a
troco de magros honorários. Alistado como voluntário, partirá para a Flandres
em 1914, de onde regressa em 1918 com uma doença nervosa de guerra – a shell shock – e o esboço do seu primeiro
livro. Em 1922, será abalado pela morte da mulher e pelo adensar da frustração
de, aos 45 anos de idade, não ter ainda concretizado o velho sonho de deambular
pelo mundo. Tendo casado de novo, uma filha deste matrimónio adoece gravemente
e, a instâncias da mulher, Gibbons tenta levá-la em peregrinação a Lourdes.
Para o efeito, procura o apoio da revista semanal católica Universe, que o contrata para escrever uma série de reportagens
sobre a sua ida a França, pouco depois reunidas no livro Tramping to Lourdes. É aí, numa fase da vida em que as esperanças
de ser um escritor-viajante se desvaneciam, que a sua sorte começa a mudar. O Daily Express contrata-o para escrever
um conjunto de artigos sobre a Irlanda e o êxito alcançado levá-lo-á a Itália,
sobre a qual escreve Afoot in Itlay,
onde manifesta a sua admiração pela obra de regeneração nacional levada a cabo
por Mussolini. O Duce leria o livro
e, através dos canais diplomáticos, fez saber a Gibbons que o autorizava a
dedicar-lhe uma eventual segunda edição da obra, o que veio a acontecer. Por
essa altura, Gibbons dá à estampa London
to Sarajevo e, no ano seguinte, em 1931, Afoot in Portugal, a primeira obra que dedica ao nosso país.
Seguir-se-lhe-ia, em 1936, Playtime in
Portugal. An Unconventional Guide to the Algarves, fruto de uma viagem
realizada em 1934 a convite das Comissões de Iniciativa de Turismo daquela
região. Dois anos depois, em finais de 1938, regressa a Portugal, desta feita
ao Alto Douro. Antes dessa jornada, estivera em vários lugares – Norte de
África, Estados Unidos, Palestina, Irlanda, Finlândia, países bálticos –, sendo
um prolífico escritor de viagens já bastante conhecido e popular, que a par
disso publica obras em jeito de almanaque de curiosidades (Fun and Philosophy. Curious Corners of Unwritten History, saído em
1932 e vergastado pela crítica) e títulos de cariz religioso ou hagiográfico.
Se a sua admiração por Mussolini foi patente em escritos anteriores, Gibbons
não deixará de apelar a que os jovens do seu país se alistassem em defesa de
Inglaterra. «I am English, and I am sufficiently old-fashioned always to think
of England as the Finest Country in the World», escreveu em Roll on, Next War!, livro de 1935,
redigido, portanto, na iminência de um novo conflito bélico.
Quando,
em 1938, chega a Portugal pela terceira vez na sua vida, Gibbons teria já,
muito provavelmente, abandonado o seu deslumbramento pelo fascismo italiano.
Talvez por isso, veja em Salazar o modelo ideal de um governante católico e
conservador, avesso ao culto das multidões tumultuosas e dos belicismos
sangrentos. A sua experiência na Grande Guerra marcara-o profundamente (como se
detecta, aliás, nas páginas de Roll on,
Next War! em que adverte os mancebos ingleses para os horrores da frente de
batalha). A povoação de Coleja, em Trás-os-Montes, revela-se o refúgio ideal
naqueles dias tempestuosos. Fora lá parar porque um amigo de nacionalidade
portuguesa, que vivia em Londres há vários anos, pôs à sua disposição a casa
que tinha naquela aldeia transmontana e prontificou-se a escrever a um
habitante de Coleja para que recebesse condignamente o viajante inglês. Esta
circunstância fortuita acaba por ser decisiva para a importância e o valor de Não Criei Musgo: ao contrário dos
escritores-viajantes que percorriam en
passant os pontos turísticos mais conhecidos – o Bussaco, a Batalha, Lisboa
e Porto – ou estanciavam em hotéis termais, John Gibbons irá permanecer quatro
meses seguidos numa aldeiazinha de Trás-os-Montes, como se realizasse trabalho
de campo semelhante ao de um antropólogo ou de um etnógrafo. Mesmo os que queiram
questionar a qualidade do livro – que, obviamente, não tem quaisquer pretensões
científicas – terão de reconhecer a sua absoluta singularidade dentro do género
«estrangeiros em Portugal».
Viajando
em terceira classe, como sempre fazia, e equipado sumariamente com uma bagagem
reduzida, um guarda-chuva e uma máquina de escrever, John Gibbons instala-se na
povoação – e começa a observá-la. O retrato que traça do quotidiano de Coleja e
terras limítrofes dá-nos uma ilustração do dia-a-dia dos habitantes, que de
certo modo se comportavam como indígenas exóticos: analfabetos, presos ao
amanho da terra, amantes do seu copito, passavam os serões a jogar às cartas,
sem qualquer espécie de interesses intelectuais. Quando começa a receber, com
semanas de atraso, exemplares do Daily
Telegraph, nenhum habitante de Coleja mostra particular apetência em saber
o que se passava no estrangeiro. De uma forma quase militante, ignoravam o que
sucedia longe dali, da aldeia onde viviam, aprisionados a um destino agreste.
Não Criei Musgo,
assim se chama o livro, é uma tradução difícil do título original – I Gathered no Moss –, o qual, por sua
vez, pode revestir-se de um duplo significado. Como observa Ana Isabel Calado
na tese que atrás citámos, pode remeter para a expressão inglesa «a rolling
stone gathers no moss», que designa uma pessoa que muda constantemente de profissão
ou local de trabalho, nada fazendo de consequente e perene e nunca chegando a
alcançar sucesso ou a amealhar fortuna. Nesse sentido, seria um auto-retrato do
autor, em permanente errância pelo mundo fora. Existe, todavia, um outro
significado possível para o título do livro, algo críptico. Não Criei Musgo poderá querer dizer que,
tendo-se instalado em Coleja e aí criado amizades e raízes, Gibbons teve, com
alguma mágoa (ou portuguesa saudade),
de abandonar abruptamente a aldeia transmontana. I Gathered no Moss seria o último livro da sua vasta bibliografia,
tendo o autor falecido em 1949.
Em
várias passagens, a obra de Salazar é enaltecida e a visão que Gibbons nos dá
de Trás-os-Montes da década de 1930 é algo edulcorada e complacente para com a
pobreza e até a miséria reinantes, contrastando com as cores sombrias que a
literatura neo-realista utilizará para retratá-las. O inglês, todavia, não
escamoteia a existência de pobres nem as dificuldades das suas existências.
Mas, como disse noutro livro sobre o nosso país, «Portugal is emphatically a
cheap country.» Para um escritor de parcos recursos, esse era um motivo
decisivo para gostar desta terra e louvar a sapiência dos seus governantes. A
dado passo de Afoot in Portugal,
chega mesmo a sustentar que, se por cá existia uma ditadura, em Inglaterra
também a havia, com a única diferença de o autoritarismo português ser mais
eficiente do que o seu congénere britânico…
O livro
não é, nem pretende sê-lo, um levantamento sociológico rigoroso ou uma
descrição etnográfica da realidade daquelas terras remotas, dos seus povos e
costumes. Ainda assim, a finura do olhar de Gibbon e o humor com que observa o
que vai sucedendo em Coleja fornecem-nos um retrato em miniatura, com laivos
pueris mas não ofensivos, do que era a vida numa aldeia transmontana durante o
salazarismo. Deliberadamente, para não ofender os seus anfitriões de Coleja,
John Gibbons admite ter omitido um ou outro pormenor mais impróprio, mas o
autor tem suficiente talento de escrita e experiência de viajante para não
resvalar na sobranceria típica de alguns estrangeiros que passaram por Portugal.
A
leitura de I gathered no moss é,
indubitavelmente, muito mais interessante e suculenta do que livros ainda hoje
saudados, como Portugal. La vie sociale actuelle,
que Paul Descamps publicou em 1935, um relatório descritivo, de insuportável
aridez, carregado de factos e números sobre a realidade portuguesa da década de
1930. Não se compreende, pois, o motivo pelo qual a obra de Gibbons não tenha
merecido mais destaque, seja durante o consulado de Salazar, seja no Portugal
dos nossos dias. Após a sua publicação em Londres, John Gibbons viria a Lisboa,
onde foi recebido com entusiasmo, sendo ovacionado no Teatro da Trindade em
cerimónia a que se dignou comparecer o próprio Presidente do Conselho. Deram-lhe
o Prémio Camões mas, sem que se perceba porquê, não traduziram o seu livro para
a língua do Poeta. Só em 1984, como se disse, a obra seria vertida para
português, numa meritória iniciativa da Câmara Municipal de Carrazeda de
Ansiães. Ao que sei, Não Criei Musgo encontra-se
à espera que um editor esclarecido
lhe dê a divulgação que merece. Enquanto isso, Yann Martel inunda os
escaparates das livrarias com um best-seller
que certamente terá as suas qualidades mas que dificilmente poderão ombrear com
os méritos de I Gathered no Moss. De
facto, nada justifica o olvido de um livro que, pelos vistos, não criou musgo.
É pena.
John Gibbons, Não Criei Musgo.
Retrato de uma aldeia transmontana, 1939.
António Araújo
A professorinha da aldeia citada na obra era minha mãe Albertina da Ressurreição Lopes, se viva fosse teria 103 anos.
ResponderEliminarProfessora bondosa. Gostava muito de ver uma foto dela de ano 1939 coleja.
EliminarDesculpe o atevimento mas adoro esta historia ja li o livri 2 vezes. insolcarlos@gmail.com
Quero ver tambem
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarAlguém me sabe indicar uma foto do John Gibbons?
ResponderEliminarDe John Gibbons não encontrei qualquer fotografia.
ResponderEliminarConsegui uma tirada na estação de comboios do Vesúvio em 1939, em que está a professora com um grupo de pessoas. Entre elas, talvez Serafim Faustino e a esposa, Zulmira Borges, pois da fotografia consta Otília, a filha mais nova do casal (menina que tem vara na mão).
Atendendo à data e ao local, é provável que a fotografia tenha sido tirada aquando da despedida de John Gibbons.