Como de costume, fui passar as férias
de Natal a Portugal, normalmente com um mês de duração, férias que ocupava
geralmente a fazer pesquisas literárias em bibliotecas e arquivos portugueses,
a ler e a escrever.
Conhecendo já bem a Amália Rodrigues,
em virtude dos nossos frequentes encontros em casa do Dr. Adriano Seabra Veiga,
primo direito do marido da Amália, o Eng. César Seabra, o Dr. Veiga e a esposa dele, a Dona Rita, pediram-me que
levasse um pequeno presente à Amália.
Chegado a Portugal e alojado no meu
condomínio do Estoril, telefonei para casa da Amália a perguntar quando podia
passar por lá para a cumprimentar e para lhe entregar o presente de Natal
mandado pelo primo do marido e pela D. Rita. Como a Amália só se levantava
normalmente cerca da uma ou duas da tarde (as noites eram passadas, com
frequência, em tertúlias intermináveis com os amigos que quisessem aparecer lá
por casa), foi-me dito que podia ir por volta das duas da tarde.
Quando cheguei, fui recebido pelo
César, o qual me disse que a Amália ainda se encontrava no quarto, mas que já
se tinha levantado. Que me sentasse e esperasse um momento, que a Amália já
vinha. Passados uns instantes, apareceu a Amália, ainda vestida de robe caseiro.
Como ela ainda não tinha tomado o pequeno-almoço, pediu-me que me sentasse à
mesa com ela, para irmos conversando enquanto ela comia alguma coisa, por sinal
uma refeição muito leve, que fazia de pequeno-almoço e de almoço. Como o César
já tinha almoçado e eu também, fomos conversando todos enquanto a Amália comia.
Aqui um breve aparte, antes de voltar
ao fio da história. Trocados os cumprimentos, a primeira coisa que a Amália me
disse foi que não reparasse na modéstia da casa: que era uma casa de gente
simples, que de forma alguma se podia comparar com as casas dos nouveaux riches (sic). Ao que o César replicou,
em tom meio jocoso: −Ó Amália, deixa-te lá dessa falsa modéstia, que o Dr.
Cirurgião já pôde observar as belas telhas da parte de fora da casa e os ricos
azulejos das escadas e o teu retrato ao cimo das escadas e alguns dos quadros e
dos tapetes e até algumas peças de mobília, para já não falar do teu famoso
presépio.
Ao desembrulhar o presente de Natal, a
Amália notou que se tratava de umas fitas magnéticas com algumas das gravações
das homenagens feitas nos canais de televisão americana em honra de Frank
Sinatra, para comemorar os seus oitenta anos de vida. Acabaram-se abruptamente
as meias conversas sobre mil e uma coisas, qual delas a mais inconsequente. A
partir desse momento, a Amália só estava interessada numa coisa: saber de mim,
presumível testemunha ocular e auricular dessas homenagens, a maneira como os
americanos tinham celebrado os oitenta anos do lendário e mítico cantor e actor
americano. A Amália queria saber tudo e mais alguma coisa. Eu, na minha
proverbial ingenuidade, não compreendia a razão de ser desse interesse
desmedido e obsessivo, por parte da Amália, nas ditas comemorações. Mas, pouco
a pouco, através dos anos, lá fui compreendendo que a Amália, que em nada tinha
por que se sentir inferior ao “Chairman of the Board” ou o “Blue Eyes”, no
mundo da música, e no do cinema, na realidade estava a imaginar como desejava
ser festejada em Portugal em idênticas efemérides.
E foi nesse momento que me dei conta
pela primeira vez da fome insaciável que a Amália tinha de ser reconhecida como
a maior cantora de Portugal de todos os tempos, que aliás o era, na opinião de
muito boa gente, exigindo do grande público português e do governo esse
reconhecimento. Ela que já tinha sido várias vezes homenageada, ao mais alto
nível, tanto em Portugal como no estrangeiro; ela que já tinha recebido
condecorações tanto do governo português como de vários governos estrangeiros,
entre os quais sobressaía o francês; ela, que já tinha recebido testemunhos
públicos tanto de entidades privadas portuguesas como estrangeiras; ela achava
que tudo isso era pouco para a rainha do fado.
A carência que a Amália tinha de ser
amada e admirada! As repetidas e amargas queixas que ela me fazia da ingratidão
dos homens e do mundo!
Continuando
a digressionar, não posso esquecer o dia em que, por ocasião de um jantar em
casa do Dr. Seabra Veiga, no momento em que estávamos a levantar-nos da mesa
para irmos para a sala de estar, a Amália me depositou nas mãos uma revista
francesa, recém-publicada, pedindo-me que lesse um longo artigo que aí vinha
sobre ela. Com a revista na mão, apressei-me a dizer que oportunamente leria o
artigo com o maior prazer, ao mesmo tempo que me encaminhava para a sala de
estar, onde já nos esperavam o Dr. Veiga e a D. Rita e a D. Lili, secretária
dedicadíssima e fiel companheira da Amália. Qual quê. Que fizesse o favor de
ler o artigo nesse preciso momento. E que lho lesse em voz alta. E eu li o
artigo e li-o em voz alta, naquele “preciso momento”, como me fora pedido. E,
enquanto lia, pude reparar, pelo cantinho maroto do olho direito, no
embevecimento da Amália no decorrer dessa leitura. É que o artigo era cem por
cento elogioso e positivo, pondo a Amália nos píncaros da lua. Lembro-me que
nesse artigo se dizia que a Amália Rodrigues e a Maria Callas eram as duas
maiores cantoras do século XX e que Portugal era o país dos três efes: de
Fátima, do Futebol e do Fado. E foi nessa precisa ocasião que a Amália me disse
pela primeira vez uma coisa que eu lhe ouviria repetir vezes sem conta através
dos anos: que os dois portugueses mais conhecidos no mundo contemporâneo eram o
Eusébio e a Amália. E nesse aspecto tinha a Amália toda a razão, como eu pude
constatar, não só como português da diáspora a viver nos Estados Unidos, mas
como cavaleiro andante por esse mundo fora (viajar foi sempre um dos meus
vícios, tomando à letra o velho dito dos fenícios, evocado por Fernando Pessoa
e celebrado em música por Maria Bethânia: “viver não é preciso: navegar é
preciso”).
Foi
outrossim nessa ocasião que ela me confessou, pela primeira vez (facto que me
viria a repetir também vezes sem conta), da mágoa que sentira – e que
continuava a sentir, e continuaria a sentir, enquanto vivesse – ao ser acusada
de fascista, logo após o 25 de Abril de 1974. Que jamais fora fascista; que era
portuguesa, de alma e coração, e que cantara sempre e continuaria a cantar para
quem quisesse ouvi-la, desde os presidentes da República às pessoas mais
simples do povo, e independentemente das cores políticas de cada um. Que fora
por causa dessas acusações infundadas e injustas que ela recusara e viria a
recusar terminantemente emprestar a sua voz às festas anuais do Avante!, apesar
da insistência com que esse pedido lhe era feito todos os anos, por intermédio
das pessoas mais influentes. Que lhe tinham despudoradamente vestido a casaca
de fascista e que depois a queriam ver a abrilhantar os palcos dessa cambada de
oportunistas sem escrúpulos? Que ela tinha a sua dignidade e que essa dignidade
tinha ela a obrigação de defendê-la durante a vida inteira.
A esmo, vou atirar para o papel, ou
melhor, para o ventre do computador, com mais alguns episódios referentes ao meu
convívio com a Amália, na esperança de que eles possam vir a dar uma pequenina
contribuição para um melhor conhecimento de uma das jóias mais brilhantes do
brasão de Portugal (desconfio que alguns deles já se encontram registados
algures, mas, na incerteza, vou pelo princípio que diz que, em casos destes, é melius abundare quam defficere, adágio
que poderíamos traduzir aproximadamente assim: é melhor pecar por excesso que
por defeito).
No final de um dos almoços que tive com
a Amália em casa do Dr. Veiga, em Waterbury, dirigi-me ao consultório médico
dele. A primeira coisa que fiz foi pedir à Diana, uma das enfermeiras e a
recepcionista, que adivinhasse com quem eu tinha almoçado nesse dia. Sem
qualquer hesitação, ouço dos lábios da Diana estas palavras mais ou menos
textuais: “Professor, não me diga que também é um dos escravos da Amália.”
Perante essas palavras, não pude deixar de reflectir, mais tarde, que, como em
muitas outras coisas, era preciso o necessário distanciamento, a fim de poder
compreender o verdadeiro sentido de determinados comportamentos. A Diana, na
sua qualidade de recepcionista e enfermeira, e, sobretudo, de americana genuína,
nada e criada na democrática América, a trabalhar há vários anos no consultório
do Dr. Veiga, já tinha observado mais que o suficiente para poder concluir,
muito acertadamente, que, a julgar pela subserviência demonstrada para com a
Amália pelos seus acompanhantes, a começar pela Dona Lili, espécie de
secretária, governanta e companheira, e a acabar pelos pacientes e enfermeiras
de origem portuguesa do Dr. Veiga, todos se comportavam como se fossem escravos
da Amália. E a Amália, por sua vez, nada fazia para desencorajar esse
comportamento. Antes pelo contrário. Mas, diga-se de passagem, essa atitude
tinha a mais lógica das explicações. Ao fim e ao cabo, tratava-se de hábitos
ancestrais, sancionados pelas leis da tribo.
Para comprovar coisas desta natureza
não há como referir casos concretos. Como era meu costume - e continuou sendo
-, normalmente, quando era convidado para almoçar ou jantar em casa dos Veigas,
levava um ramo de flores para a D. Rita. Pois bem: sabendo que a Amália estava
hospedada em casa deles, em vez de um ramo de flores, levava dois. E que
aconteceu das duas primeiras vezes? Eu a entrar a porta com os dois ramos de
flores e a Amália a apoderar-se de ambos, com enorme sofreguidão, como se só
ela tivesse direito a ramos de flores. De maneira que, perante essa experiência, a partir da segunda visita eu
fazia questão de dizer muito claramente que um dos ramos de flores era para a
Amália e o outro era para a D. Rita. Acentuo, a propósito, que a Amália
aproveitava a ocasião para me dizer que sempre adorara flores, e,
particularmente, as flores silvestres. Que algumas das horas mais agradáveis da
sua vida eram aquelas que ela passava no seio dos campos, extasiando-se a
contemplar a beleza das flores e a inalar o seu perfume inebriante.
Não foi preciso deixar passar muito
tempo, logo após os primeiros encontros, para me dar conta de que a Amália
gostava de falar comigo. Entretanto, sabendo do meu estatuto de professor
universitário, começava quase sempre por repetir, no início das nossas
conversas, que ela apenas tinha feito uma simples quarta classe, não era
ninguém para poder dialogar com um professor universitário. Que eu devia
desculpar o seu atrevimento. Mas que ela tinha uma grande curiosidade
intelectual e que sempre gostara de falar com pessoas cultas. E que os assuntos
de que mais gostava de conversar eram a filosofia e a poesia. E como eu lhe
observasse, em abono da verdade, sem a mínima aparência de lisonja, quando ela
tomava essa atitude de inferioridade intelectual, que conhecia muitas pessoas
com títulos universitários que mal acompanhavam uma conversa de carácter mais
elevado, no campo da cultura geral, fenómeno comum nos meios intectuais
americanos, e que não era necessário frequentar academias ou instituições de
ensino superior para ser culto e ter genuína curiosidade intelectual, a Amália
descia ao mundo da realidade e limitava-se a conversar com a maior das
naturalidades. Aliás, eu sabia muito bem que a Amália convivia e conversava,
nos longos serões realizados em sua casa, com toda a espécie de intelectuais,
portugueses e estrangeiros, principalmente com gente das letras e das artes.
Um dia, à mesa de um dos vários
restaurantes portugueses de Waterbury, no estado de Connecticut, aonde por
vezes íamos almoçar, a conversa entre a Amália e o Cirurgião encaminhou-se para
questões de religião e de fé religiosa. Ao perceber que eu era agnóstico,
recorreu a uma série de argumentos para me fazer ver que Deus existia e que era
preciso e era bom acreditar n’Ele. E não posso esquecer-me que o último
argumento a que Amália recorreu, mais de uma vez, para tentar converter-me à
religião católica, consistiu em apontar para as flores que enfeitavam a mesa e
perguntar-me, retoricamente, se a existência de umas flores tão belas e tão bem
cheirosas não pressupunham a mão sábia e omnipotente de um Criador. E isso –
prosseguia ela – para não falar dos alimentos que acabáramos de saborear. E,
saídos do restaurante, estava eu a abrir-lhe a porta do carro quando ela me
pediu desculpa por tentar converter-me ao Catolicismo. Mas que tudo isso o
fazia ela por bem. Que tinha pena que uma pessoa tão boa e tão culta como eu
não tivesse fé (rogo se me releve esta maneira de falar, mas o memorialista
narra os factos: não os inventa). Que, por isso, eu fizesse o favor de lhe não
levar a mal o atrevimento. Claro que eu não levei a mal – nem poderia levar a
mal, antes pelo contrário, – esse santo atrevimento à Santa Rainha do Fado, que
se dignou honrar-me com a sua amizade.
António
Cirurgião
PS. – lembrei-me
de evocar a memória da Amália por ocasião do seu aniversário natalício,
ocorrido no dia 23 de Julho de 1920.
Bem-haja por mais um extraordinário depoimento.
ResponderEliminarVery happy on this occasion because it was given a useful info thanks .
ResponderEliminarKenali Gejala Penyakit Jantung Dan Pencegahannya
Obat Alami Untuk Pembengkakan Prostat
Obat Tumor Payudara Paling Ampuh
Obat Lambung Perih Tradisional
Cara Mengobati Divertikular Secara Alami
Apa Obat Herbal Radang Kandung Empedu Terbaik
Obat Tulang Keropos Secara Alami
Obat Mata Miopi Terbaik
Cara Mengobati Oligospermia Agar Bisa Sembuh Secara Alami
Ketahui Bahaya Infeksi Paru-Paru Pada Anak
Cara Alami Mengobati Kanker Hati Tanpa Operasi