impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 47, # 48 - SONNY
ROLLINS
Fotografia de Francis Wolff
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Sabe lá ele quando começou. Aos 16 anos
já não era a brincar que se irmanou com Jackie McLean, Kenny Drew e Art Taylor,
todos da mesma mocidade, para abrilhantarem os saraus da escola. As vocações
prematuras, se lhes cai o êxito em cima, tendem a acabar depressa e mal. Não
foi o caso de Sonny Rollins, o derradeiro semi-deus do jazz, que a tudo
sobreviveu, a gerações e a géneros, e na Primavera de 2016, 65 anos depois da
sua primeira gravação, dá à estampa o quarto tomo dos seus “Roadshows”, que sob
o título “Holding the Stage” compila actuações ao vivo, desde 1979 até 2012.
Veredicto unânime: a chave da Arca da Aliança ainda é ele que a guarda – aos 85
anos.
Foi muito sôfrega a década de 50, talvez
a mais empolgada do jazz. Em 1954 os 28 anos de Miles Davis insuflavam um
prestígio que transbordava a sua verdura, auspiciando qualquer coisa de
grandioso. Dele se abeirou um jovem 4 anos mais novo, o que nestas idades
corresponde quase a um ciclo de vida, com três composições: "Oleo",
"Airegin" e "Doxy". Num ápice é gravado e lançado o disco
“Miles Davis With Sonny Rollins” que em 1957, já Miles e Rollins eram
luminárias, foi consolidado no álbum “Bags Grooves”. Os temas vieram a
cristalizar como imortais e deste estofo se fazem as lendas.
Saxophone
Colossus
1956 (2014)
Concorde Music Group
Sonny Rollins (saxofone tenor), Tommy Flanagan
(piano), Doug Watkins (contrabaixo), Max Roach (bateria).
Num período mais curto do que uma
presidência, Sonny Rollins ascende de escudeiro a campeão. Só no ano de 1956
oficia um triângulo de ouro de obras que não há outro modo de as reputar senão
de nucleares:
Em Janeiro e Fevereiro é ele o diplomata
que acorda a aliança entre o trompetista Clifford Brown – outro nascido em
1930, mas que as parcas nos roubaram prematuramente – e o baterista Max Roach
no supino “Clifford Brown and Max Roach at Basin Street”.
Em Maio grava “Tenor Madness” com um
noviço que topara na sua passagem pelas formações de Miles e Monk. O jazz tinha
ganho o hábito de ouvir os tenoristas de cada geração à maneira dos rounds do
boxe: Coleman Hawkins, o abrasador, versus Lester Young, o ondulante; Dexter
Gordon neste canto e Stan Getz no outro. Sonny Rollins não só arriscou como
aumentou a parada convocando John Coltrane a medir-se com ele. O futuro
separá-los-ia, como dois estrangeiros de vocabulário de tal modo distinto que
inviabilizaria qualquer diálogo, mas aqui, no transcurso dos 12 minutos da
faixa “Tenor Madness”, que dá nome ao disco, ambos se aliam em deturpar o jogo,
conferenciando mais do que concorrendo – não eram planeta e lua, era a alvorada
de duas estrelas.
Em Junho o caso de Sonny Rollins fica
muito sério. Com “Saxophone Colossus” salda todas as promessas: patenteia uma
plena maturidade e exibe uma personalidade musical rematada. E isto, ao
contrário do que a jactância do titulo poderia augurar, asseverando um estilo
sem saliências, nem a veleidade e a extravagância próprias da juventude que se
quer afirmar contra o mundo.
Sonny
Rollins é o Howard Hawks, o Mies Van den Rohe, o Steinbeck, o Barnett Newman do
jazz. Em
vez da explosão (Charlie Parker) ou da exploração de todas as variáveis
possíveis como o rato num labirinto (John Coltrane), cada frase do saxofone
tenor de Rollins é indubitável e incisiva, sem pontas soltas, expelida como se
fosse uma evidência à espera de ser proferida. A Coleman Hawkins vai buscar a
acutilância e a robustez, de Lester Young herda o ar olímpico de que aquilo sai
sem esforço, de Dexter a verve e de Getz… bom, de Getz nada, sem desprimor para
o próprio... “Saxophone Colossus” abre com o tema “St. Thomas”, ao género de
calipso, como um manifesto: progressões harmónicas? Com certeza, sem elas não
há jazz, mas “it’s melodics, stupid…” – é uma cápsula que encerra o ADN de
Sonny Rollins.
Estava tudo dito? Não, não estava, ainda
vinha aí “Way Out West” gravado menos de um ano depois, já em 1957. A capa do
disco está entre as mais bizarras do jazz: Rollins, vestido no trinque de
buckaroo, de peito feito e saxofone na mão como um revólver, a posar no
deserto, com cactos, caveira de boi e tudo… Muito devem ter ele e o fotógrafo
William Claxton gozado com esta maluquice a comemorar primeira visita de
Rollins ao Oeste. O que está por detrás desta testada não é menos arrojado: um
trio de saxofone sem piano? Coisa nunca dantes perpetrada… O baterista Shelly
Manne era “angelino” de adopção e instituíra-se como um prumo da cena da
“tinsel town”; Ray Brown estava de passagem pela cidade como acompanhante de
Oscar Peterson. Quem sabe se não terá sido da atmosfera relaxada de Los Angeles
– que na verdade é luva de cetim solapando punho de aço – nos antípodas do
ambiente febril e fabril de Nova Iorque, que os terá inspirado a pegarem em
dois temas de filmes western “I’m an Old Cowhand” e “Wagon Wheels” e com eles
dar o tom para uma música a um passo de descambar na paródia mas sendo, de
facto, uma apropriação irrepreensível pelo jazz de acordes que lhe são alheios,
tão certeira como um tiro de John Wayne.
Decidir a preferência e a importância
entre “Saxophone Colossus” e “Way Out West” – e para quê escolher se se pode
ficar com os dois? – é questão de moeda ao ar.
Muita água correu desde então sob as
pontes e na primeira de três licenças sabáticas foi literalmente debaixo delas
que Sonny Rollins passou uma temporada a tocar – retomaria funções públicas com
o álbum fielmente intitulado “The Bridge” (1962). Doravante teria um percurso
avarandado, donde se debruçava sobre o que ia passando no caudal do jazz,
arredio a mergulhar nele de corpo inteiro. Conviveu uns anos de casa e
pucarinho com o free jazz: três crias na Impulse!, das quais “East Broadway Run
Down” (1966) foi a que vicejou melhor até aos nossos dias. Durante a década de
70 molhou a sopa no jazz de fusão sem glória nem bronca e que atire a primeira
pedra quem, tendo passado por ela, não sofreu a tentação do baixo e do piano
eléctrico. Outros brotavam e soçobravam, lideravam, dividiam, inovavam e recuperavam;
Sonny Rollins entrava e saía de cena, às vezes fazendo figura de misantropo
noutras de um áugure que se escusa a revelar tudo o que sabe. Acerca dele
começou a propagar-se a noção – tão legendária quanto real – de que havia dois
Rollins: o dos discos, outro dos concertos. Certo era que evitava os estúdios,
cujos preciosismos sonoplásticos o desgostavam e cujo recato sentia como
fúnebre. Todavia nas suas actuações ao vivo nada estava garantido e só é
possível comparar a sua conduta à da tradição tauromáquica: se o “duende”
tomasse conta dele a sessão seria arrebatadora, se não, deixava andar,
conformado com a má sina do dia.
Without
a Song, the 9/11 Concert
2005
Milestone - 93422
Sonny Rollins (saxofone tenor), Clifton Anderson
(trombone), Stephen Scott (piano), Bob Cranshaw (baixo eléctrico), Perry Wilson
(bateria), Kimati Dinizulu (percussão).
No imediato rescaldo do 11 de Setembro
de 2001 os repórteres predavam as ruas limítrofes dos escombros World Trade
Center em busca de aflições que pudessem melodramatizar a catástrofe. Por
sorte, no raio de visão de um deles despontou o tipo ideal: um velho negro de
barba branca, jungindo um saco de plástico com os parcos haveres e, pormenor
comovente, segurando um saxofone debaixo do braço. Na brevíssima entrevista o
tom do repórter foi o de comiseração e paternalismo que é hábito da profissão
dedicar aos desvalidos com quem se quer mostrar simpatia. Ignorava ele que se
tratava de Sonny Rollins. Dizia muito do estado do jazz, quanto à sua
popularidade no dealbar do século XXI, que um dos seus maiores ídolos fosse,
aos 71 anos, desconhecido de cara e, provavelmente, de nome.
Quatro dias depois, ainda sem casa nem
bens pessoais, Rollins daria um concerto em Boston publicado em 2005 sob o
título “Without a Song, the 9/11 Concert”. Mal habituada – ou melhor, demasiado
bem habituada, porque aos heróis exige-se que deem sempre um pedaço de céu – a
crítica venerou mais do que amou a obra, detectando o dilema do costume: fora
uma noite de música impecável, porém cursiva, sem rasgos excepcionais de
criatividade. O próprio Sonny Rollins diria mais tarde que não se lembrava de
nada.
Mas foi o público quem 4 anos após o
horror do 9/11 reconheceu e sentiu nesta obra a expressão genuína daqueles dias
dolorosos. E assim é que escutando “Without a Song” com os critérios da emoção
mais despertos do que os do intelecto, se torna palpável o pathos do momento
onde até os defeitos comovem. O disco ganhou pregnância na memória colectiva
andou de mão em mão, tanto como andará um disco de jazz hoje em dia, e, o que é
meramente simbólico, mas por isso mesmo não despiciendo, à faixa “Why Was I
Born?” foi atribuído um Grammy com ovação de pé. Um ano depois, a revista
JazzTimes dá a mão à palmatória e, sem mudar uma linha da sua crítica ao valor
intrínseco da obra, porque não era disso que se tratava, reconheceu-lhe o
merecimento que havia ignorado.
De
“Without a Song” em diante, Sonny Rollins ganhou novo fôlego, ou foi-lhe dada
uma nova atenção que na sistemática do jazz o retirou da classe dos dinossauros
e recolocou na dos mamíferos vivazes. Seguiu-se a ainda inconclusa série de
“Roadshows”.
Sonny Rollins: aquele que já é imortal
insiste em continuar a sê-lo.
José Navarro de Andrade
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