Um mês e meio. António Luiz Gomes
assumiu a pasta das Obras Públicas e do Fomento em 5 de Outubro de 1910 para a
abandonar pouco depois, a 22 de Novembro. Tão efémera experiência governativa
estaria hoje esquecida não fora o caso de Tomás da Fonseca ter publicado em
1949 Memórias dum Chefe de Gabinete.
Ex-seminarista, livre-pensador e maçon, Tomás da Fonseca é recordado sobretudo
pelas suas incendiárias obras anticlericais, algumas delas apreendidas pela
PIDE. Memórias dum Chefe de Gabinete é
hoje uma curiosidade de alfarrabista. Não devia. O livro constitui um retrato tão
eloquente quanto trágico do maior poder que domina Portugal: a cunha.
Logo no primeiro dia de trabalho, Fonseca
é inundado por pedidos de emprego vindos de todos os lados e com os mais
variados destinos: escolas industriais, correios, serviços geológicos e
florestais, o porto de Lisboa… O povo republicano ambicionava as vagas que a
mudança de regime supostamente iria abrir. Dezenas de pessoas invadiam o
ministério na afanosa busca de um lugar. Na secretária do chefe de gabinete amontoava-se
correspondência com queixas de toda a ordem, mas sobretudo empenhos e pedidos.
A barafunda era enorme. Nos corredores, dezenas de pessoas vagueavam na
expectativa de serem recebidas. Tomás da Fonseca chama José Luís, o velho porteiro,
e pergunta-lhe quem é aquela gente toda. Calmamente, como se fosse a coisa mais
natural do mundo, o funcionário explica-lhe que são indivíduos que o regime
anterior nomeou em troca de serviços prestados. A maioria, diz-lhe, são jornalistas
avençados. Tantos que nem sequer cabem na sala que antigamente lhes era
reservada. Por isso, deambulavam por ali, na ânsia de saberem se continuariam
no activo e na folha de pagamentos. Só da escrita nos jornais – disse um deles
a Tomás da Fonseca – não conseguiriam sobreviver.
O ministro Luiz Gomes de pouco tempo
dispunha para exercer o seu cargo e fazer o que lhe competia: governar os
destinos do Fomento e das Obras Públicas. Passava os dias a receber pessoas, em
reuniões e encontros. Ao fim de mês e meio, pede a demissão, por resistir às
pressões, vindas do mais alto nível, para exonerar todos os que serviram a
monarquia, mesmo que o tivessem feito com competência e rigor. Para muitos
líderes republicanos, com destaque para Teófilo Braga, chefe do governo
provisório, era imperioso proceder à limpeza total daquela gente. Não por falta
de qualidades profissionais ou morais, mas apenas para deixar entrar a multidão
imensa que o novo regime devia satisfazer, pagando-lhe favores pretéritos ou
atendendo aos seus pedidos de emprego. Após o 5 de Outubro de 1910, pelo menos
um terço dos futuros deputados constituintes foram contemplados com cargos de
relevo na administração pública; na cidade de Lisboa, cerca de 17000 aderentes
ao Partido Democrático foram nomeados funcionários públicos em Maio de 1919, no
contexto do acto eleitoral, e todos os
seus nomes seriam publicados em Diário do
Governo, em edição com trinta suplementos e centenas de páginas, num
singular exercício de transparência – ou despudor.
O
sistema da cunha vinha de trás e perdurou após a queda da República. Como
observou José Pacheco Pereira numa crónica no Público (12/5/2012), num leilão realizado em 2012, em que foi à
praça um importante lote de correspondência particular do poderoso Intendente-geral
da polícia, Pina Manique, o que mais se encontrou foram cunhas e pedidos,
envoltos na habitual prosa aduladora e servil. Não há nome da aristocracia da
época que não solicite alguma coisa, desde empregos para os seus criados até à libertação
de presos. O duque de Cadaval pede ao Intendente que solte um músico que tinha
ao seu serviço, da mesmíssima medida que, em meados do século XX, e como o
próprio admitiu, Almeida Santos solicitou ao chefe da PIDE de Lourenço Marques
que libertasse por umas horas o seu cozinheiro particular, detido por alegadas ligações
à FRELIMO. Nessa noite, o causídico oferecia um jantar em casa, precisava do
cozinheiro. O pedido foi satisfeito e Almeida Santos cumpriu escrupulosamente a
sua palavra, devolvendo na hora aprazada o chef
independentista às garras da polícia política do Estado Novo. Na
correspondência de Pina Manique encontramos outros casos, mais sombrios, em que
se procede à delação de pessoas, apelando a que fossem presas. Também há
trivialidades saborosas. Em 1789, quando em Paris eclodia a Revolução, a
marquesa do Lavradio escrevia ao Intendente pelo mais prosaico dos motivos: a
Alfândega tardava em fazer-lhe chegar um caixotinho de tabaco de rapé vindo do
estrangeiro, de que a senhora estava carente pois não apreciava o tabaco de
fabrico nacional. Não é preciso ler Marcel Mauss para percebermos que as
dádivas e os pedidos coexistiam com trocas e recompensas: em 1792, o duque de
Northumberland escrevia a Pina Manique, oferecendo-lhe um barril de cidra vindo
de Inglaterra.
António
de Oliveira Salazar soube, como poucos, gerir o sistema da cunha e de
distribuição de lugares. Daí a sua minúcia no tratamento de todos os assuntos
de Estado e da administração, cobrindo aspectos que hoje teríamos por ridículos
ou caricatos. A isso se deve a sua longevidade política, muito mais do que ao exercício
sistemático da repressão e da violência. Os historiadores, todavia, continuam
mais interessados na tortura da PIDE do que na colocação de generais e
catedráticos nos conselhos de administração das empresas do Estado. Ora, sem
essa análise – que em tempos foi feita num brevíssimo opúsculo de Raúl Rêgo, Os Políticos e o Poder Económico –
jamais seremos capazes de compreender o salazarismo, e o facto de ter durado
tanto tempo. Mais do que pelo medo, o ditador dominava o país através de uma teia
de fidelidades pacientemente urdida ao longo de muitos anos. No seu arquivo
acumulam-se centenas de cartas pedindo favores, ou agradecendo benesses
concedidas. Entre os seus colegas da universidade de Coimbra, há um que se
destaca pelo facto de todas as cartas que escreve a Salazar conterem pedidos a
seu favor ou para o seu filho, colocado na carreira diplomática. Também no
espólio de Américo Thomaz existe uma impressionante colecção de cartas com
cunhas e empenhos, provindos de antigos camaradas de armas, de oficiais
altamente colocados, até mães desvalidas ou humildes servidores do Estado. Mais
do que os pedidos, o que impressiona é ver os agradecimentos por terem sido
satisfeitos pelo venerando almirante.
A
cunha acompanhou a evolução do país, mais do que supomos. Numa crónica que
dedicou a este tema (Expresso, de
10/12/2011), Maria Filomena Mónica recorda que, nos anos de 1960, quando
trabalhava no Ministério da Saúde, as cartas vinham sobretudo de criadas, que
lhe pediam empregos para os irmãos que, vivendo na aldeia, não conheciam
ninguém em Lisboa. O peso hegemónico da capital como centro de poder ou o êxodo
rural da época também se vêem nestes detalhes.
A prática certamente não mudou com a
revolução de 1974. Contudo, os elementos de que dispomos são esparsos e
fragmentários – e a substituição das cartas manuscritas pelos e-mails e pelos SMS tornará cada vez
mais difícil fazer uma história social da cunha. Nas suas memórias políticas, o
general Garcia dos Santos enumera alguns pedidos que lhe foram dirigidos quando
chefiava a Casa Militar do Presidente Ramalho Eanes. Um pouco de tudo, como
sempre. Desde grandes casos – pedidos para libertação de bens congelados depois
do 25 de Abril ou para uma intervenção presidencial na situação dos portugueses
presos em Moçambique – até às habituais solicitações de lugares, incluindo o de
locutor da RTP. Não existe, porém, um estudo sistemático da cunha no Portugal
democrático. Diz-se que é herdeira de um passado remoto, que se inscreve numa
tradição de clientelismo e patrocinato típica das sociedades da Europa do Sul –
mas até isso está por demonstrar, não se sabendo ao certo se o compadrio e os
pedidos de favores não existem também nos países setentrionais, tidos por mais
«civilizados». Como é óbvio, interessa distinguir uma prática social e
eticamente tolerável daquilo que, pelo contrário, releva de domínios mais
graves, como a corrupção ou o tráfico de influências. Os casos menos graves
são, naturalmente, os de cidadãos desamparados que buscam, em desespero, o
auxílio do poder e o apoio da sua influência. Mas, se descontarmos
investigações jornalísticas (como a que o Público
empreendeu, em 27/11/2011), não existe, repetimos, um estudo sistemático
sobre esta prática nacional, que só por ingenuidade podemos julgar estar
confinada à política e aos corredores do poder. Alguns livros recentes têm
falado dela, como Os Facilitadores,
de Gustavo Sampaio, um aglomerado de palpites e extrapolações abusivas, que de
modo algum ombreia com o relato vivido de José Tomás da Fonseca. Com longas
barbas de profeta laico, o publicista de Mortágua morreu em 1968, e em 1984 foi
condecorado postumamente com a Ordem da Liberdade. Há pouco foi reeditada uma
das suas obras mais conhecidas, Na Cova
dos Leões, ferocíssima diatribe contra a Igreja e as aparições de Fátima.
Seria bom recuperar Memórias dum Chefe de
Gabinete. Como diz o lugar-comum, é livro de flagrante actualidade.
oh araújo o homem não é da murtosa, é de mortágua!
ResponderEliminarTem mais do que razão, as minhas desculpas e obrigado, já corrigi
EliminarCordialmente,
António Araújo
Muito interessante, posso partilhar no fbk?
ResponderEliminar