terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Notas sobre A Grande Onda - 5

 
 



Só nas primeiras impressões, A Grande Onda terá vendido mais de cinco mil cópias.
 
Para este sucesso comercial terá contribuído o preço da xilogravura, equivalente a duas taças de massa que eram, e são, o prato vulgar do Japão, mas também outro facto singelo: ao contrário de nós, os japoneses lêem da direita para a esquerda.
 
Daí que a colocação da grande vaga no lado esquerdo da gravura, prestes a rebentar sobre a margem direita, confira à imagem uma dinâmica e um efeito muito próprios, que iam plenamente ao encontro, se quisermos, da forma japonesa de ler o mundo. Compare-se, por exemplo, o original de Hokusai e um mural criado em 1988 pelo artista Domonic Swords na empena de um prédio em Camberwell, no sul de Londres (aqui).
 
 
 
 
 
 

Como também se salienta no documentário da BBC The Private Life of a Masterpiece – The Great Wave, de 2004, A Grande Onda apresenta uma imagem estática, «congelando» o tempo num milésimo de segundo, aquele em que a gigante parede de água está prestes a desabar sobre os barqueiros da costa do Monte Fuji.
 
 
      A obra foi produzida num tempo que desconhecia a fotografia. Imagine-se o que seria, para um japonês da época, contemplar aquelas ondas revoltas, capturadas num instante decisivo e único, exactamente como o fazem os fotógrafos. E, se a compararmos com o delicado e suave imobilismo das gravuras japonesas da altura, da corrente dos «mundos flutuantes» (ukiyo-re) dos séculos XVII-XIX, apercebemo-nos facilmente de que A Grande Onda, com a invocação do movimento tenebroso dos mares, trazia consigo algo de novo para os japoneses. Estamos longe, muito longe, da placidez idílica dos «mundos flutuantes» e da paisagem que Lafcadio Hearn (1850-1904) descreveria em O Japão. Uma antologia de escritos sobre o país (Edições Cotovia, 2005):  


       «Visão azul de fundura perdida em altitude mar e céu dissolvidos por uma luminosa bruma. O dia é Primavera, e a hora, de alvorada. Apenas céu e mar − uma imensidão azul-celeste. À frente, as ondas cativam uma luz prateada, e fiadas de espuma redemoinham qualquer coisa, excepto a cor: um pálido e ameno azul de água que se alonga e dilui num azul de ar. Horizonte, não há: só uma distância dilatada no espaço – uma infinita concavidade que se abre à frente dos nossos olhos, e se arqueia prodigiosamente por cima de nós – e a cor que se intensifica com a altura.»


 
 

        Curiosamente, só há muito pouco tempo, por volta de 2005, foi fixado no Japão um nome convencional para aquela que, sendo provavelmente a obra de arte mais conhecida do país, pouco tem da pureza da alma nipónica e da sua identidade ancestral.
  
 
        Ainda assim, a partir de finais do século XIX, com a vaga do japonisme, e até aos nossos dias, a gravura de Hokusai é enaltecida como a evocação perfeita do exotismo nipónico, do mesmo passo que, vista a partir do Oriente, A Grande Onda era apreciada pelo seu «exotismo ocidental», patente na coloração em azul e na profundidade da perspectiva.

 
Esta dupla atracção exótica, de Oriente para Ocidente e vice-versa, resulta da hibridez e da ambiguidade de A Grande Onda e é uma das chaves dos seus infindáveis segredos.
 
 
 
 
  
 

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