Anda
aí certa polémica por causa do filme «Os Dois Papas»
Para
começar, convém dizer que o realizador, Fernando Meirelles, é autor de um filme
espantoso, a espantosa Cidade de Deus.
Não é um «autor» de cinema, mas também não é um realizador inepto, sobretudo em termos narrativos ou técnicos.
Quanto
a este, convém então dizer que:
1
– É uma obra de ficção, ainda que baseada em factos reais; num certo sentido, é
um filme delicodoce, com os papas a beberem Fanta e a comerem pizza, a verem
jogos de futebol, explorando bem a ambiguidade entre o extremo formalismo (a
escolha dos Papas, as vestes, os ritos) e a informalidade íntima de dois
«amigos». A trouvaille está aqui: contrastar o aparato simbólico da Igreja e a humanização extrema dos protagonistas máximos desse aparato. Como obra ficcional (repete-se: como obra ficcional) é um filme
sedutor, tecnicamente bem feito, com uma história bem contada e, se quisermos, «bem conseguido» (as interpretações, incluindo a de Hopkins, não são particularmente densas ou profundas, ajustando-se, até aí, ao tom geral do filme, nada dramático ou sombrio, e, pelo contrário, bastante alegre e festivo, porventura em demasia). Mas não é um «grande filme» ou, como antes de dizia, um «filme de tese», no
sentido em que não apresenta uma reflexão profunda e grave sobre as angústias
destes dois homens, sobre o lugar que ocuparam ou ocupam na Igreja, sobre os seus dramas e os
seus mistérios. Não é uma grande obra cinematográfica, é um filme comercial e
apelativo, «agradável de ver».
2
– Não é uma obra, parece-me, que vá agradar a anticlericais ou a ateus militantes,
pois, ao fim e ao cabo, dá um retrato humanizado dos dois papas, e não resvala no
furor clássico (e estúpido) contra Josef Ratzinger. Os dois homens são
retratados ficcionalmente como devem ser: o intelectual Ratzinger, a jantar
sozinho e a falar latim; Bergoglio, homem do mundo, do tango e do futebol. São
retratos caricaturais, talvez exagerados mas, importa dizê-lo e recordá-lo
sempre, isto é um filme, não é um
documentário.
3
– Ao contrário da opinião de alguns católicos (como João Duarte Bleck no Observador), creio que Bento XVI não sai maltratado
daqui. Pelo contrário, aparece até como o «padrinho» de Bergoglio, o homem que
preparou e desenhou a sua sucessão ao Papado – o que, à semelhança das marcas
de carácter de Josef e Jorge, sublinhadas a traço grosso, é também um exagero
ficcional (mas, desta feita, um exagero ficcional até favorável a Bento XVI…) Há a questão da
pedofilia, que não pode ser tratada como uma questão menor, obviamente, mas ela
é tão complexa que, por ora, me absterei de a comentar. O que me parece, numa
primeira impressão, é que Bento XVI não surge como o «encobridor» dos escândalos
de pedofilia e, factualmente, o que é dito no filme está certo e correcto do
ponto de vista da verdade histórica (mas confesso que não estudei o assunto em
profundidade). Para quem, como eu, leu o livro em que o filme se baseia, este até
é mais simpático para Ratzinger do que a obra de Anthony McCarten, de que já falei aqui no Malomil.
Em
suma, um filme, não um grande filme. Um filme, não um documentário. Agradável
de ver, que merece ser visto, até para poder ser criticado. Mas, uma vez e
sempre, inteligência e serenidade nestas coisas, como em todas. Não transformem
este filme num Je vous salue, Marie
porque, para o bem e para o mal, não o é.
Lembrei-me do Habemus Papam, do Moretti. Gostei desse. Este, logo veremos. Não está nas minhas prioridades, mas o realizador é bom.
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