1 – O Tribunal
Constitucional e os seus juízes estão a ser ignobilmente arrastados para a campanha
pelo município de Coimbra e vilmente usados como arma de arremesso político-eleitoral.
Nunca se viu coisa assim (como aliás já notou o presidente da Associação Sindical dos Juízes, Manuel Soares)
O parecer que os juízes do TC deram é de
Janeiro. Tem portanto meses, vários meses, e na altura ninguém o questionou ou
sequer falou dele. Não será estranho que esse parecer esteja agora a ser usado e tão atacado em
plena disputa eleitoral pela Câmara de Coimbra? Não serão estranhos o timing e a oportunidade da discussão do
projecto do PSD, nas vésperas das eleições autárquicas? Não mandaria o bom
senso – e o senso de Estado – que uma questão como esta fosse discutida serenamente
e com elevação, fora da campanha eleitoral?
2 – No seu parecer, o Tribunal
Constitucional (TC) não disse, e já esclareceu que não disse, que considerava
desprestigiante ser transferido para a cidade de Coimbra. O que o TC disse, isso
sim, é que era desprestigiante sair da capital se nela se mantiverem os outros
órgãos de soberania, especialmente o Supremo Tribunal de Justiça (STJ). E que
era desprestigiante – e é-o, obviamente – considerar que essa transferência
visa aumentar a sua «independência», como se ela fosse menor e mais reduzida estando
o TC em Lisboa, em promíscuo convívio com Presidente, os deputados à Assembleia, os membros do Governo, os juízes dos demais tribunais. Pois é isso que, pasme-se, tem o desplante de afirmar o
projecto do PSD na sua exposição de motivos. Foi contra isso, só isso, e para defesa da honra, que se
pronunciou o TC. E muito bem.
3 – Quem conheça a História,
um passado que ainda é presente, saberá que em 1982, quando foi criado o TC,
houve um grave conflito protocolar com o STJ, em disputa pela 4ª posição na hierarquia
do Estado. Na altura, o Presidente do TC, Marques Guedes, apoiado por todos os
juízes (entre os quais, Vital Moreira), decidiu deixar de comparecer em
cerimónias públicas e actos oficiais. O conflito só foi sanado, e muito a
custo, em 1989, mas naturalmente ainda é actual e estará sempre latente. O
projecto do PSD, ao transferir o TC para fora de Lisboa, mantendo o STJ na
capital, vem perturbar esse equilíbrio frágil e instável, reabrindo conflitos
pretéritos de uma forma irresponsável, com total ausência de sentido de Estado
e de decoro institucional.
4 – Quem invoca o exemplodo TC alemão, dizendo que ele fica em Karlsruhe, não na capital Berlim, deveria
ter ao menos a honestidade intelectual de dizer que também o STJ da Alemanha (o
Bundesgerichtshof) fica em Karlsruhe,
não em Berlim. E, já agora, que o Supremo Tribunal Administrativo (o Verwaltungsgerichtshof) fica em Mannheim,
não em Berlim. Ou seja, não há nenhum tribunal supremo em Berlim, na capital da
Alemanha, que é um Estado federal, com as particularidades inerentes a um
Estado federal.
5 – Aliás, noutras federações, como os Estados Unidos ou o Brasil, os supremos tribunais têm
as suas sedes nas capitais. O que diriam se Trump ou Bolsonaro tentassem mudar
as sedes desses tribunais, fazendo-os sair de Washington e de Brasília?
6 – Quem invoca o exemplo do TC da África do Sul, dizendo que ele fica fora da capital, deveria ter a
honestidade intelectual de acrescentar que a África do Sul apresenta a particularidade
de ter não uma, mas três capitais: uma, executiva, Pretória; outra,
legislativa, Cidade do Cabo; outra, judiciária, Bloemfontein.
7 – À semelhança do que
se fez na África do Sul, não haveria problema algum em concentrar todos os tribunais
supremos numa «capital judiciária» – Coimbra,
Porto, Santarém, Guarda, o que for – mas já há um óbvio problema em mandar o TC
e o Supremo Tribunal Administrativo para fora da capital e manter o STJ em Lisboa.
É isso, só isso, o que está em causa, entendamo-nos de uma vez por todas.
8 – É que, além de tudo o
mais, isso significaria que, simbolicamente, a jurisdição do STJ, cível e
criminal, seria a «representativa» do poder judicial, relegando para um plano
secundário as jurisdições constitucionais e administrativas.
9 – Que um juspublicista como Vital Moreira não perceba ou não queira perceber isso, diz muito da sua
cegueira bairrista, que o leva a deixar-se enredar nesta descarada manobra
eleiçoeira do PSD.
10 – É estranho que Vital
Moreira fale dos exemplos do TC da Alemanha e da África do Sul, mas não refira
o caso do TC da Rússia, que Putin fez sair de Moscovo, contra a vontade dos
juízes, levando-o para Sampetersburgo, a «sua terra», com isso afastando-o do
centro do poder e diminuindo o seu peso e, logo, a sua independência (ver aqui).
Há várias formas de
atacar a independência de um órgão judicial. A mais subtil, muito ao gosto dos novos
autocratas, não é ameaçar abertamente os juízes ou mandar prendê-los. É obliquamente,
sorrateiramente, tirar-lhes relevância, diminuir-lhes o estatuto e as garantias.
É o que acontece actualmente na Polónia, foi o que aconteceu na Rússia de
Putin, que despachou o TC para longe do Kremlin. Insiste-se: contra a vontade
dos seus juízes.
11 – Os ignorantes que
por aí opinam deveriam, ao menos, ler a inacreditável exposição de motivos do
projecto do PSD, a qual diz, pasme-se, que a mudança do TC e do STA para fora de
Lisboa irá «reforçar a visibilidade do valor da independência do poder judicial
relativamente ao poder político, através da distanciação geográfica das
respetivas sedes» (aqui).
Foi contra isso que o TC
reagiu, e bem. Não é a questão de mudar para Coimbra, um soundbite incendiário que foi lançado para a campanha eleitoral, agitando-se demagogicamente o papão do «centralismo». A questão, ofensiva, é afirmar que o TC, estando em Lisboa, é menos independente face ao
poder político.
Dizer
que os juízes do TC por estarem em Lisboa são menos independentes (ou que
seriam mais independentes se fossem para Coimbra), é um insulto pessoal e
institucional que Vital Moreira, como antigo juiz do TC, deveria abster-se de
fazer. Eis o que disse, fazendo insinuações inenarráveis, pessoalmente
ofensivas, sobre os actuais juízes do TC e as suas motivações:
Já agora, Vital Moreira
fala da Alemanha e da África do Sul, mas porque silencia a esmagadora maioria
dos países em que os tribunais constitucionais ou instituições congéneres estão
nas capitais? Porque omite Espanha, França, Itália, Brasil, EUA, etc. etc.? Na
União Europeia, para se ter uma noção, só na República Checa e na Alemanha os
TC’s não estão nas capitais. Porque omite Vital Moreira tudo isso, falando da longínqua África do Sul? Porque não diz que, na África do Sul, não há uma, mas três
capitais?
Vital Moreira é um homem esperto, sem dúvida, mas que se prejudica ao julgar que todos os outros são parvos, ou menos espertos do que ele. Não são.
12 – Mais ainda, o que
determina a independência do TC não será, isso sim, o perfil dos seus juízes e
o modo como são nomeados? Um juiz, por estar em Coimbra, será menos «pressionável»
pelo poder político, não recebendo emails, sms, chamadas telefónicas, o que
quer que seja? Mas, se assim for, porque não transferir o STJ também para a «província»
virtuosa, longe da capital corrupta? Experimentem querer mudar o STJ e o Salão
Nobre e o Ano Judicial para Coimbra. Vão ver a reacção dos juízes-conselheiros.
13 – Considerar que o TC
é menos «independente» por estar em Lisboa é um insulto a mais de 40 anos de
justiça constitucional e esquece que, a par de dependências políticas, muitas outras
podem existir. Desde logo, a seguinte: colocado numa cidade como Coimbra, na
órbita da sua universidade multissecular, não é desprezível o risco de o TC ser transformado numa extensão paroquial da sua Faculdade de Direito. O perigo de captura é muito grande, infinitamente maior do que em Lisboa, que tem três ou quatro grandes faculdades de Direito, em sã convivência e sã concorrência.
14 – Os que criticam o
«centralismo» do TC deveriam lembrar-se que até hoje, em 40 anos, os juízes do
Palácio Ratton elegeram 8 presidentes, 4 de Lisboa, 4 de Coimbra, em absoluta igualdade.
Na presidência do TC e no seu corpo de juízes Coimbra tem tido um peso muito
superior (4 dos 8 presidentes) ao da representatividade da sua Faculdade de
Direito em confronto com outras escolas de Direito do país, que já têm alguns
anos e milhares de alunos, corpos docentes estabilizados e credibilizados. Até
hoje, ninguém se queixou disso – veremos como será quando a sede do Tribunal passar
para as margens do Mondego, abrindo-se a Caixa de Pandora dos bairrismos e regionalismos
académicos.
15 – A este propósito, deve
lembrar-se que, no corpo de juízes do TC, há um razoável equilíbrio entre
diversas origens profissionais, geográficas e académicas. Por isso, ninguém contestou,
nem havia que contestar, que os três juízes que o PSD propôs recentemente para o TC sejam todos, sem excepção, docentes da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra: Benedita Urbano, Figueiredo Dias, Afonso Patrão.
16 – Os que apoiam a
mudança para Coimbra agarram-se em desespero e saúdam os 3 «votos» dos juízes coimbrões –
Costa Andrade, Mariana Canotilho e Lino Ribeiro –, tentando fazer esquecer
que, por esmagadora maioria (10 votos contra 3), o Tribunal se pronunciou
contra a mudança. Democraticamente, 10 votos contra 3 (e não foram todos votos de juízes de Lisboa, há-os de outras partes do país). A palavra dos juízes não
é lei, mas desrespeitá-la tão grosseiramente, atacá-los no Twitter como Rui Rio teve o desplante de fazer, diz muito sobre quem se afirma preocupado em
aumentar a «independência» do Tribunal. Se Rio está assim preocupado com essa «independência»,
como se atreve a vir atacar os juízes em público, através das redes sociais?
Isso é respeitar a independência e a autonomia do TC? Como se portaria um homem
destes se fosse primeiro-ministro e tivesse que lidar, como Passos teve que lidar, com
as decisões adversas do TC nos tempos da troika? E, mais ainda, não é cobarde
atacar no Twitter ou na praça pública quem, por dever de ofício, não se pode defender pelos mesmos meios?
17 – Não esqueçamos outra
coisa: o TC não se pronunciou por sua iniciativa. Foi o Parlamento que lhe
pediu que se pronunciasse, como é mais do que desejável (estranho seria mudar a sede de um órgão sem o ouvir). E o Tribunal, naturalmente, soberanamente, emitiu o seu parecer, a
pedido da Assembleia. Desagradou a alguns, irritou o dr. Rui Rio? Pois temos pena, é a vida, é a independência do poder judicial.
18 – É espantoso que um
professor de Coimbra tenha vindo falar da «indignidade argumentativa do parecer do TC», dizendo que
o Parlamento teve a «falta de senso» (sic) e a infeliz ideia de pedir a opinião do Tribunal, quando esse
mesmo professor, na qualidade de membro do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos
e Fiscais, emitiu opinião e, claro, se pronunciou a favor da mudança do Supremo
Tribunal Administrativo para… Coimbra. Aliás, a qualidade de vogal do CSTAF não
lhe deveria impor um mínimo de discrição, de educação e cortesia, de contenção verbal
quando se refere à «indignidade do parecer» de um tribunal supremo?
19 – Nem vale a pena
falar das dificuldades logísticas e custos operacionais. E nem vale a pena
lembrar o folhetim do Infarmed no Porto. Porque não se bate Rui Rio para que o
Infarmed vá para a Invicta, ademais a sua cidade? Porque dá por perdida a
Câmara para Rui Moreira, mais valendo disputar Coimbra, onde tem chances? E
quem se lembra que a Entidade da Transparência, prometida para Coimbra, só
entrará em funções, na melhor das hipóteses, em 2024?
Confunde-se, aliás, centralização
e capitalidade. A capital do país é onde
estão os seus órgãos de governo, os seus órgãos políticos, ditos «de
soberania». A nossa Constituição, como bem lembrou Jorge Miranda, não diz que
Lisboa é a capital do país. Nem precisa. Ora, se capital é onde estão os principais
órgãos do país, «descapitalizar» o TC (no sentido de retirá-lo da capital) é um
sinal político, um sinal simbólico e institucional. Nada disto, de resto, será «descentralizar». Não é por acaso que a Constituição só fala em regionalização
administrativa, não regionalização política. Descentralizar seria, por exemplo,
transferir entidades administrativas para fora de Lisboa: a ERSE, a ERC, ASAE, a
ANACOM, por aí adiante. Porque não se faz isso? Isso, sim, seria uma descentralização a
sério e à séria. Mudar o TC para fora de Lisboa não é decentralização alguma, é dar um péssimo e fragmentador
sinal de regionalização política. A seguir – porque não? – vai a Presidência para o
Porto, mete-se o Governo em Évora, manda-se o Parlamento para os Algarves…
20 – É lamentável que uma questão como esta esteja a ser tratada com tanta leviandade e tanta superficialidade, com tanta ignorância da História e do lugar das instituições, de uma forma tão rasteira, apelando aos sentimentos e aos complexos mais básicos das pessoas, agitando fantasmas centralistas, fomentando um ódio à capital que é estéril, lamuriento e nunca levou a nada (as cidades mais inovadoras e dinâmicas, como Aveiro, Viseu ou Braga, afirmaram-se pela sua força, pela sua garra, sem estarem eternamente a lamentar-se do «centralismo» de Lisboa ou Porto, um centralismo que sem dúvida existe, e deve ser combatido, mas não desta forma canhestra; se a ASAE e a ERSE fossem para Coimbra, isso sim mobilizaria muito mais a cidade do que a presença de um tribunal constitucional, cuja presença, obviamente, só interessa à Faculdade de Direito e ao compadrio familista dos seus professores).
Vejamos a forma bárbara como a questão tem sido tratada:
os juízes do TC não querem ter a maçada de mudar para Coimbra e por isso
acharam «desprestigiante» a vizinhança do Mondego. São uns centralistas, uns
comodistas ou, como disse Vital Moreira, apreciam o convívio ameno com as
elites da capital (só faltou mesmo ao dr. Vital falar de elites capitalistas…).
Vai daí, votaram contra uma medida que iria, finalmente, dar um passo de gigante
na descentralização do país.
O pior não é que algumas pessoas
cedam a uma visão tão simplista e tão desconchavada. O pior é que essa visão seja
alimentada e propalada por comentadores como Marques Mendes ou Miguel Sousa Tavares, os quais, já que falam, e falam tanto sobre tanto, tinham no mínimo a obrigação de
estudar, de se informar, de conhecer a História e as implicações políticas e
institucionais dos assuntos sobre os quais opinam.
21 – Quando o TC foi
criado, lembra-o Francisco Pinto Balsemão nas suas recentíssimas Memórias, o PSD e a Aliança Democrática disseram o seguinte:
«A imagem pública do Tribunal Constitucional exige
dos mais altos responsáveis do País uma palavra de respeito e um gesto de
confiança nas potencialidades deste novo órgão de soberania»
Este era o PSD de 1982.
Hoje mudou. E mudou muito, mas para pior.
António
Araújo
PS – uma nota pessoal:
fui assessor do TC e tive a honra de, durante alguns anos, ser chefe de
gabinete do seu presidente, José Manuel Cardoso da Costa, o qual, sendo docente
em Coimbra, e tendo in illo tempore
defendido a ida do TC para Coimbra (na altura em que foi criado, quando fazia
sentido, não 40 anos depois), sustenta hoje que o Tribunal se deve manter em
Lisboa.
Desconheço o que motiva essa
opinião do doutor Cardoso da Costa, mas a ela certamente não será alheio o
facto de, durante muitos anos, ter exercido a presidência do Tribunal (veja-se a opinião de três antigos presidentes, Cardoso da Costa, Sousa Ribeiro e Moura Ramos, todos de Coimbra). Enquanto seu chefe de gabinete, tive por natural incumbência acompanhar a sua preenchida
agenda: audiências a diversas personalidades, nacionais e estrangeiras; presença, por dever de ofício, em
dezenas e dezenas de actos públicos, cerimónias oficiais, civis e militares, recepções
em embaixadas; contactos com os outros tribunais, nacionais e estrangeiros;
participação no Conselho de Estado, etc., etc.. Não é exequível, não é humanamente
exequível, manter uma agenda dessas a 200 quilómetros da capital. Quem não
perceber isso, não percebe nada. É lamentável.
Façam como eu. A política passa-me ao lado. Vejo-a como vejo o vento ... que sinto mas nunca o vejo
ResponderEliminar.
Feliz fim-de-semana.
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.
Muito bem!
ResponderEliminarO ódio de Rui Rio à capital, o serôdio bairrismo dos profs de Direito de Coimbra e a demagogia eleitoralista das autárquicas juntaram-se para produzir esse aborto.
José Barreto
Arouca