quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Sonatina Burocrática.

 

 


Ao contrário do que se imagina, há burocratas com sentido de humor. Talvez por ter sido alimentado com um sentido de auto-derrisão tão comum entre belgas como a batata frita e o mexilhão, certo membro de uma estrutura administrativa gestora da qualidade, interpelado ao telefone por uma académica bruxelense minha conhecida, indignada com a enésima massacrante exigência burocrática que emanava dali, reagiu com desarmante franqueza à sugestão desta para que lesse o já famoso Bullshit Jobs (trabalhos da treta), do antropólogo David Harvey: “Bem… Aqui já todos o lemos…”.

E citou, por seu turno, mais duas ou três obras na mesma linha, em que afinal ele e colegas admitiam reconhecer-se, tim-tim por tim-tim -- ou Tintin, sendo ele belga. Após um breve silêncio, desataram ambos a rir ao telefone, unidos no reconhecimento cúmplice de tanto absurdo burocrático, da tácita comédia de enganos que todos sabem desprovida de sentido, ou de real propósito útil.  

É certo que o sentido de humor pode ser involuntário, como o de uma estrutura congénere de uma respeitável instituição de ensino superior, desta feita portuguesa, que de tão embalada na volúpia burocrática, de tão alheada na sua bolha, nem percebeu o gáudio generalizado aí gerado pela circular que divulgou, intitulada: “Documento de Procedimentos para Obtenção de Feedback Sobre o Feedback nos Processos de Avaliação do Ensino”. Porventura melindrada pelo efeito cómico, que continuou sem compreender, acabaria por não chegar a produzir o documento que já toda a gente antevia seguir-se, destinado a obter o Feedback Sobre o Feedback Sobre o Feedback, em loop perpétuo.

Agora que a rentrée se aproxima em condições de alguma normalidade no rescaldo da pandemia, que o apetite burocrático desperta e, quiçá, as Mãos Doem já em tanto formigueiro, é de ficar com a Sonatine Bureaucratique, de Eric Satie, a quem voto um respeito terno. Mais ainda depois de saber que o seu apartamento continha um sem-número de guarda-chuvas e dois pianos de cauda, um sobre o outro, e que usava o de cima para guardar cartas e encomendas. Não é de admirar que deixasse partituras em sítios estranhos e variados, para além de extraviá-las em bolsos de fatos de veludo.

O absurdo de Satie é um deleite não vampírico, que não suga o tempo, a energia, a força anímica de ninguém. O que não significa que não soubesse moer quem merece ser moído, como no prefácio a Sports & Divertissements: o Coral Desagradável, que Satie disse ter escrito “para criaturas ressequidas e estupidificadas, uma espécie de preâmbulo azedo, uma introdução austera e não frívola. Pus nele – diz Satie -- tudo o que conheço sobre Aborrecimento. Dedico este Coral a quem não gosta de mim. Retiro-me”.

 



Manuela Ivone Cunha






1 comentário:

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