O que há de mais
eletrizante no romance Angoche, Os fantasmas do Império, de Carlos Vale
Ferraz, Porto Editora, 2021, é o aproveitamento de um enigma aparentemente
irresolúvel para viajarmos aos derradeiros anos da vida imperial portuguesa. Um
navio mercante partiu de Nacala em 23 de abril de 1971, com destino a Porto
Amélia (hoje, Pemba). Ia com 24 almas e um importante carregamento de material
de guerra. No dia seguinte, um petroleiro encontra o Angoche à deriva,
incendiado e sem ninguém a bordo, parecia mais uma dessas histórias de
navios-fantasmas. Abre-se inquérito, especula-se quanto ao facto de ter havido
duas explosões, atribuiu-se tudo ao terrorismo. Depois do 25 de Abril, os
relatórios da PIDE/DGS. O romance do autor da obra-prima Nó Cego
questiona a moralidade e o egoísmo, mas o que ficará desta digressão e
inquirição, onde se aparenta um trabalho de escrita de crime e mistério, muita
conversa do autor com o tio de Dionísio na Ericeira, é irmos às entranhas da
guerra em Moçambique, forjam-se amizades entre os homens da Marinha, o
capitão-tenente Dionísio era então oficial de informações e as nótulas
históricas que o autor introduz como de primordial importância, não exatamente
para apurar o desempenho de temíveis serviços secretos sul-africanos que se
teriam servido do Angoche para mandar um sério aviso – Moçambique não poderia
ser independente. Dentro do círculo em que se move Dionísio há uma ou outra
figura que recebe destaque, Saúl, sabia muito de missa sobre o Angoche, entram
no terreno literário os homens do BOSS, os Serviços de Informação e Segurança
da África do Sul. Era logo evidente na primeira fase de inquérito a contradição
das mensagens, houvera manipulação ou distorção para que a mentira falasse mais
forte.
É neste contexto que
Carlos Vale Ferraz nos desvela uma panorâmica do que foi efetivamente a luta
pela independência de Moçambique, dá-nos quadros de intensa vibração entre o
que era o norte e o sul, o papel das potências racistas que subordinaram a
política portuguesa a um quadro de maior vigilância de terrorismo através do
Exercício Alcora, movem-se figuras exuberantes, por vezes completamente
dissonantes, como Kaúlza de Arriaga e Jorge Jardim, é magistral o retrato do
chefe de brigada da PIDE, Casimiro, há as mulheres de relações fáceis, algumas
delas profundamente amadas, aparece um agente da secreta francesa, Dominique de
Roux, que andará por Lisboa à volta o 25 de Abril. Tudo isto nos vai aparecendo
em encontros entre o autor e o seu tio Dionísio, ele vai soltando a língua com
muito vagar, o mistério em espiral deve permanecer até ao fim, Saúl aparece e
reaparece, é um cafajeste, ainda por cima ligado a Margarida Palma Vidigal,
detentora de muita informação, e há Van den Bergh, o chefe da BOSS, tratado
como um porco ou um amoral. E o autor, inopinadamente, dá-nos frescos do melhor
recorte literário:
“Os marinheiros de todo
o mundo conhecem a Costa dos Esqueletos, no deserto do Namibe. Um local árido,
no Atlântico Sul, onde a corrente fria de Benguela choca com o ar escaldante do
continente, provocando temporais que atiram os navios contra os baixios de rochas
cortantes. Pouco ou nada cresce nas areias do Namibe, e raros animais conseguem
adaptar-se a um meio ambiente tão inóspito (…) As instalações discretas, de
casernas pré-fabricadas, quase invisíveis nas areias da Costa dos Esqueletos,
escondiam a prática de ações fora de qualquer limite e à margem de regras
elementares de humanidade por parte dos dirigentes de Pretória, em particular
dos polícias sul-africanos. Os barracões, semelhantes aos dos campos de
concentração nazis, esconderam laboratórios para a realização de tenebrosas
experiências de guerra química e biológica, desenvolvidas pelos Serviços
Secretos Sul-Africanos”. Também o que se passa em Moçambique é alvo do
impiedoso olhar clínico do autor: “No desconjuntado triângulo do poder em
Moçambique, os vértices lutavam uns com os outros para ocuparem o topo. O
governador-geral e o comandante-chefe apenas se relacionavam para
indispensáveis assuntos de serviço, mas Kaúlza, como Dionísio tivera
oportunidade de verificar, também se entendia mal com Jardim, um espinho
permanentemente cravado na vaidade do cabo de guerra, através do domínio que o
engenheiro exercia sobre as milícias de negros, a DGS, a comunicação social, o
seu jornal e a sua rádio, a influência nos países vizinhos, as amizades e
cumplicidades entre ele e os políticos e militares da África do Sul, da
Rodésia, os dirigentes do Malawi e até da Zâmbia. Jardim ignorava o
governador-geral, que por sua vez não lhe reconhecia outro estatuto do que um
fura-vidas agente de negócios, e intrigava contra o jornal, espalhando a ideia
da sua incapacidade política e militar”.
Há mortes estranhas,
como a de Margarida, fez-se constar que se suicidara. Chega o fim da comissão
de Dionísio em Moçambique, nestas consecutivas conversas entre o autor e o seu
tio Dionísio, apura-se que o Angoche o manchara na sua dignidade e o obrigara a
envolver-se nos acontecimentos do 25 de Abril, entramos num universo patético,
Jorge Jardim ameaça com uma solução de independência. Há um encontro em Madrid
entre dois homens de informação, Dionísio e Peter W, oficial inglês. Este
revela a Dionísio que a má sorte do Angoche e dos seus tripulantes caiu no meio
do jogo em que as fações do governo da África do Sul travavam dentro da
estratégia total. Destas conversas entram e saem dos bastidores outros oficiais
da Marinha como Saúl e Cândido, fala-se das ligações de Saúl a Calvão, este
ligado ao negócio de armas. Saúl confessou a Dionísio a operação dos Serviços
Secretos sul-africanos sobre o Angoche. Calvão merece destaque, ele que ganhara
nome na Operação Mar Verde, o assalto a Conacri, aparece ligado a várias
insurreições, mas o império desmorona-se.
E nesse mundo em cinzas,
o autor socorre-se de outra alegoria, a casa do tio Dionísio desaparece num
incêndio criminoso. “As câmaras de vigilância e os sensores contra estranhos,
que protegiam a vivenda, haviam sido desligados, os fios cortados. A central de
controlo da empresa de segurança não recebera qualquer sinal de intrusão. O
corpo do meu tio nunca foi encontrado, nem descoberta a causa do incêndio, nem
os autores”. Novo silêncio, como no atentado ao Angoche, os grandes criminosos
hão de sair impunes. E os mortos não falam.
De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
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