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O céu da boca
As descrições do universo concentracionário são
unânimes quanto à fome que grassava nos campos e, sobretudo, quanto aos efeitos
da fome, da fome que reduz os homens a um tubo digestivo, nas palavras de
Léon-E. Halkin (À L’Ombre de la Mort), que é inacreditável em sentido
próprio. Para crer nessa fome, ainda segundo Halkin, «é preciso ter conhecido a
fome lenta, os reflexos de voracidade, de avareza e de cleptomania, a obsessão
com o alimento, a obsessão com o que se come, com tudo o que se relaciona com
tudo o que se come, para admitir o complexo da fome, para compreender a miséria
sórdida e as suas tentações inconfessáveis.» E como tantos outros, também
Halkin sonha com lautas refeições. Em todos os textos da literatura sobre os Lager
se encontram testemunhos das intermináveis conversas sobre a confecção de
refeições, a descrição minuciosa da preparação dos pratos ou a referência aos
comensais e ao respectivo número.
Esclarecem as gramáticas que a catacrese é uma maneira
de suprir a falta de um termo específico. Nelas dá-se uma estranha forma de
comércio. Não raro, o corpo empresta ao mundo as suas designações e o mundo
empresta ao corpo o nome das suas coisas. O braço da cadeira, as bocas da faca,
o dente de alho ou a maçã do rosto. Por vezes, a relação é indirecta: o garfo
da bicicleta, ou faz-se por intermédio do corpo de um animal: a asa da chávena,
a mesa pé de galo. Macrocosmo e microcosmos são unidos apenas por aquele que pode
ser todas as coisas: o homem. Lemo-lo com clareza absoluta em Primo Levi
(Se Isto é um Homem):
«Mas como se poderia pensar em não ter fome? O Lager
é fome, nós próprios somos fome, fome viva.
Do outro lado da rua trabalha uma draga. As tenazes,
suspensas pelos cabos, abrem os maxilares dentados, libertam-se por um instante
como se hesitassem na escolha, depois atiram-se para a terra argilosa e fofa, e
ferram vorazmente, enquanto da cabine de comando sai um sopro satisfeito de
fumo branco e denso. Depois voltam a levantar-se, dão meia volta, vomitam para
trás o peso com que estão carregadas, e recomeçam. Apoiados às nossas pás,
ficamos a olhar fascinados. A cada dentada das tenazes, as bocas entreabrem-se,
as maçãs-de-adão dançam para cima e para baixo, miseravelmente visíveis por
debaixo da pele mole. Não conseguimos desvincular-nos do espetáculo do repasto
da draga.»
A fome viva, o tubo digestivo vivo não tem mais nada
como objecto, identifica-se totalmente com o mundo. No paroxismo da fome, a
analogia faz-se carne. Não espanta, pois, que a carne ganhe olhos, adquira
visão. Outro concentracionário testemunha-o. «O cego levantou-se, e foi para a
beira da sua enxerga. Tacteou a caixa onde guarda o pão. Abriu-a e retirou o
pedaço que restava. Em seguida sentou-se e tirou a faca do bolso. Eu
observava-o. Os seus gestos eram lentos, precisos, tão exactos como se visse o
que fazia, como eu próprio via. Dir-se-ia que estava a fazer uma dissecação.»
Com a última frase, Robert Antelme (A Espécie Humana) leva a cabo uma
torção radical dos conceitos: faz do pão um cadáver. O que dá a vida, na sua
ausência total, é já um morto. Talvez por isso o cego possa ver: disseca-se a
si mesmo como morto futuro – morto de fome. «Nada. De nenhuma outra coisa a
falta chama tanto esta palavra: nada.» Na vida dos homens normais, aqueles que não
sabem que tudo é possível, no dizer de David Rousset, outro concentracionário,
o pão não se liga ao nada precisamente porque não é tudo. Daí que seja
impossível imaginar a situação concentracionária.
No recentemente traduzido, Simone Veil – A
Madrugada em Birkenau, Veil, em diálogo com Paul Schaffer, insurge-se:
«SIMONE: […] Hoje, quando as pessoas vão a Birkenau ou
Auschwitz, vêem uma série de barracões, observam um certo número de coisas, mas
fica-se longe da transmissão de uma experiência. Quando os jovens dizem que
«imaginam», não imaginam coisa nenhuma.
É inimaginável.
PAUL: A meu ver, ainda bem que eles não podem
imaginar, porque indivíduos que fossem capazes de imaginar tal realidade seriam
indivíduos perigosos.»
A incapacidade de imaginar liga-se por um cordão
umbilical à linguagem. Movido pela esperança de poder dizer, Primo Levi põe a
hipótese de uma linguagem nova, a linguagem do Lager: «Como esta nossa
fome não é a sensação de quem saltou uma refeição, o nosso modo de ter frio
exigiria assim um nome particular. Nós dizemos «fome», dizemos «cansaço»,
«medo» e «dor», dizemos «Inverno», mas são coisas diferentes. São palavras
livres, criadas e utilizadas por homens livres que viviam, gozando e sofrendo,
em suas casas. Se os Lager tivessem durado mais tempo, uma nova, dura,
linguagem teria nascido […].» Cedo percebeu que nunca nasceria uma linguagem
adequada nem ao Lager nem para falar sobre ele. A ideia de uma tal
linguagem evidencia antes a sua impossibilidade. Ocorre quando já não é
necessária. Quando o Lager está morto. Como Levi viu tão bem:
«Depois de arranjar a janela partida e depois de o
aquecedor começar a difundir calor, pareceu que em cada um a tensão afrouxara,
e foi então que Towaroski (um franco-polaco de vinte e três anos, doente de tifo)
propôs aos outros doentes que oferecessem cada um uma fatia de pão a nós os
três que tivemos o trabalho, e a proposta foi aceite.
Um dia antes, tal acontecimento não teria sido
concebível. A lei do Lager dizia: «come o teu pão e, se puderes, o do
teu vizinho», e não deixava lugar à gratidão. Isto significava claramente que o
Lager estava morto.
Foi este o primeiro gesto humano que aconteceu entre
nós. Julgo que se poderia fixar naquele momento o início do processo pelo qual,
nós morremos, de Häftling voltámos lentamente a ser homens.»
Voltar a ser humano significa voltar à linguagem dos
homens normais, à linguagem que já não é uma simples reacção de um tubo
digestivo entre outros: partes extra partes. Na linguagem,
evadidos da necessidade natural antinatural, os homens comungam. Por isso, a
fome absoluta não é apenas a fome natural, é também a fome de justiça. Antelme
disse-o talvez melhor que ninguém. A natureza recomposta não apaga o sucedido,
precisamente porque o sucedido não foi um acontecimento causado pelas leis
cegas da natureza.
A experiência concentracionária foi considerada pelos
concentracionários que sobre ela escreveram um alargamento da perspectiva sobre
o mundo, um acréscimo de lucidez.
Talvez possa contribuir para dar uma resposta à pergunta:
quem é o teu Próximo? Aquele que tem fome do pão, e do pão da justiça.
O céu da boca.
João Tiago Proença
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