quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Cartas de Bruxelas (1)

 

                                                                                                            https://www.toli.us/art-projects/



                                                                                                        

                                                                                               O céu da boca

 

 

As descrições do universo concentracionário são unânimes quanto à fome que grassava nos campos e, sobretudo, quanto aos efeitos da fome, da fome que reduz os homens a um tubo digestivo, nas palavras de Léon-E. Halkin (À L’Ombre de la Mort), que é inacreditável em sentido próprio. Para crer nessa fome, ainda segundo Halkin, «é preciso ter conhecido a fome lenta, os reflexos de voracidade, de avareza e de cleptomania, a obsessão com o alimento, a obsessão com o que se come, com tudo o que se relaciona com tudo o que se come, para admitir o complexo da fome, para compreender a miséria sórdida e as suas tentações inconfessáveis.» E como tantos outros, também Halkin sonha com lautas refeições. Em todos os textos da literatura sobre os Lager se encontram testemunhos das intermináveis conversas sobre a confecção de refeições, a descrição minuciosa da preparação dos pratos ou a referência aos comensais e ao respectivo número.

Esclarecem as gramáticas que a catacrese é uma maneira de suprir a falta de um termo específico. Nelas dá-se uma estranha forma de comércio. Não raro, o corpo empresta ao mundo as suas designações e o mundo empresta ao corpo o nome das suas coisas. O braço da cadeira, as bocas da faca, o dente de alho ou a maçã do rosto. Por vezes, a relação é indirecta: o garfo da bicicleta, ou faz-se por intermédio do corpo de um animal: a asa da chávena, a mesa pé de galo. Macrocosmo e microcosmos são unidos apenas por aquele que pode ser todas as coisas: o homem. Lemo-lo com clareza absoluta em Primo Levi (Se Isto é um Homem):

«Mas como se poderia pensar em não ter fome? O Lager é fome, nós próprios somos fome, fome viva.

Do outro lado da rua trabalha uma draga. As tenazes, suspensas pelos cabos, abrem os maxilares dentados, libertam-se por um instante como se hesitassem na escolha, depois atiram-se para a terra argilosa e fofa, e ferram vorazmente, enquanto da cabine de comando sai um sopro satisfeito de fumo branco e denso. Depois voltam a levantar-se, dão meia volta, vomitam para trás o peso com que estão carregadas, e recomeçam. Apoiados às nossas pás, ficamos a olhar fascinados. A cada dentada das tenazes, as bocas entreabrem-se, as maçãs-de-adão dançam para cima e para baixo, miseravelmente visíveis por debaixo da pele mole. Não conseguimos desvincular-nos do espetáculo do repasto da draga.»

A fome viva, o tubo digestivo vivo não tem mais nada como objecto, identifica-se totalmente com o mundo. No paroxismo da fome, a analogia faz-se carne. Não espanta, pois, que a carne ganhe olhos, adquira visão. Outro concentracionário testemunha-o. «O cego levantou-se, e foi para a beira da sua enxerga. Tacteou a caixa onde guarda o pão. Abriu-a e retirou o pedaço que restava. Em seguida sentou-se e tirou a faca do bolso. Eu observava-o. Os seus gestos eram lentos, precisos, tão exactos como se visse o que fazia, como eu próprio via. Dir-se-ia que estava a fazer uma dissecação.» Com a última frase, Robert Antelme (A Espécie Humana) leva a cabo uma torção radical dos conceitos: faz do pão um cadáver. O que dá a vida, na sua ausência total, é já um morto. Talvez por isso o cego possa ver: disseca-se a si mesmo como morto futuro – morto de fome. «Nada. De nenhuma outra coisa a falta chama tanto esta palavra: nada.» Na vida dos homens normais, aqueles que não sabem que tudo é possível, no dizer de David Rousset, outro concentracionário, o pão não se liga ao nada precisamente porque não é tudo. Daí que seja impossível imaginar a situação concentracionária.

No recentemente traduzido, Simone Veil – A Madrugada em Birkenau, Veil, em diálogo com Paul Schaffer, insurge-se:

«SIMONE: […] Hoje, quando as pessoas vão a Birkenau ou Auschwitz, vêem uma série de barracões, observam um certo número de coisas, mas fica-se longe da transmissão de uma experiência. Quando os jovens dizem que «imaginam», não imaginam coisa nenhuma.

É inimaginável.

PAUL: A meu ver, ainda bem que eles não podem imaginar, porque indivíduos que fossem capazes de imaginar tal realidade seriam indivíduos perigosos.»

A incapacidade de imaginar liga-se por um cordão umbilical à linguagem. Movido pela esperança de poder dizer, Primo Levi põe a hipótese de uma linguagem nova, a linguagem do Lager: «Como esta nossa fome não é a sensação de quem saltou uma refeição, o nosso modo de ter frio exigiria assim um nome particular. Nós dizemos «fome», dizemos «cansaço», «medo» e «dor», dizemos «Inverno», mas são coisas diferentes. São palavras livres, criadas e utilizadas por homens livres que viviam, gozando e sofrendo, em suas casas. Se os Lager tivessem durado mais tempo, uma nova, dura, linguagem teria nascido […].» Cedo percebeu que nunca nasceria uma linguagem adequada nem ao Lager nem para falar sobre ele. A ideia de uma tal linguagem evidencia antes a sua impossibilidade. Ocorre quando já não é necessária. Quando o Lager está morto. Como Levi viu tão bem:

«Depois de arranjar a janela partida e depois de o aquecedor começar a difundir calor, pareceu que em cada um a tensão afrouxara, e foi então que Towaroski (um franco-polaco de vinte e três anos, doente de tifo) propôs aos outros doentes que oferecessem cada um uma fatia de pão a nós os três que tivemos o trabalho, e a proposta foi aceite.

Um dia antes, tal acontecimento não teria sido concebível. A lei do Lager dizia: «come o teu pão e, se puderes, o do teu vizinho», e não deixava lugar à gratidão. Isto significava claramente que o Lager estava morto.

Foi este o primeiro gesto humano que aconteceu entre nós. Julgo que se poderia fixar naquele momento o início do processo pelo qual, nós morremos, de Häftling voltámos lentamente a ser homens.»

Voltar a ser humano significa voltar à linguagem dos homens normais, à linguagem que já não é uma simples reacção de um tubo digestivo entre outros: partes extra partes. Na linguagem, evadidos da necessidade natural antinatural, os homens comungam. Por isso, a fome absoluta não é apenas a fome natural, é também a fome de justiça. Antelme disse-o talvez melhor que ninguém. A natureza recomposta não apaga o sucedido, precisamente porque o sucedido não foi um acontecimento causado pelas leis cegas da natureza.

A experiência concentracionária foi considerada pelos concentracionários que sobre ela escreveram um alargamento da perspectiva sobre o mundo, um acréscimo de lucidez.

Talvez possa contribuir para dar uma resposta à pergunta: quem é o teu Próximo? Aquele que tem fome do pão, e do pão da justiça.

O céu da boca.

 

                                                                                          João Tiago Proença







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