quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Viveu o máximo dos horrores do Holocausto, convida-nos à reconciliação com a vida, sempre com alegria.

 




 

O mínimo que se pode dizer dos apelos que um dos maiores psicoterapeutas do seu tempo aqui nos deixa é que não há vivência de pleno sofrimento onde não se possa vislumbrar o milagre do sentido. Como escreve o bispo auxiliar de Braga no prefácio, “Reconciliar-se com a vida significa buscar o sentido, particularmente na vivência da tríade trágica, da condição humana: culpa, sofrimento e morte. Frankl contrapõe uma tríade salvadora de valores: trabalho/ação, experiência/relação, atitude/oblação”. É uma leitura a que não nos podemos furtar, este Dizer Sim à Vida Apesar de Tudo, por Viktor E. Frankl, Editora Pergaminho, 2021.

Frankl foi o introdutor da logoterapia, o que quer dizer que o impulso primário de qualquer um de nós assenta na vontade de sentido. Como observa ainda o prefaciador da obra: “Este sentido não se inventa, mas descobre-se: numa obra, num amor, numa tarefa a realizar. No fundo, cada um tem de perguntar: o que é que a vida quer de mim? Em última instância, viver significa assumir a responsabilidade de encontrar a resposta correta para os problemas que a vida coloca e cumprir as tarefas que ela continuamente aponta a cada pessoa.”

Note-se que este renomado cientista irá escrever estes textos no regresso da sua vida pelo inferno dos campos de concentração, regressado a Viena de Áustria aguardavam-no as mais temidas notícias, perdera a família no Holocausto. Superou o desespero, a anomia, o fatalismo. Chega a dissecar as razões que levam ao suicídio, casos de perturbação, de descrença no sentido de continuar a viver, e responde que a vida é de certo modo um dever, uma grande e única obrigação, uma alegria que tem de surgir espontaneamente, a felicidade é o resultado do cumprimento daquilo que se chama dever, e que ele ao longo de todos os seus trabalhos procurou definir. E explana: “Não é apenas através dos nossos atos que podemos atribuir sentido à vida. Na medida em que respondemos com a consciência da responsabilidade às questões colocadas por ela, podemos satisfazer os desafios da existência não apenas como atuantes, mas também como pessoas capazes de amar, isto é, entregando-se através do amor ao belo, à grandeza, à bondade.” E, mais adiante: “Damos sentido à vida através de ações, mas também através do amor – e, finalmente, através do sofrimento. Pois é a forma como uma pessoa lida com a limitação das suas possibilidades de vida, enquanto elas afetam o seu agir e a sua capacidade de amar, a forma como se comporta com esta limitação. É na forma como lidamos nas dificuldades que se vê quem somos, e é também isso que nos torna capazes de viver uma vida plena de sentido.”

Frankl surpreende-nos pelo vigor e a sinceridade desta exposição onde são recorrentes as palavras dever, busca de sentido, o valor da vida, a ultrapassagem do sofrimento. É uma narrativa pejada de exemplos e situações, não esquece os campos de concentração e é sempre insistente sobre a realização de sentido, esta, como ele escreve, é possível em três direções principais: a pessoa humana é capaz de atribuir sentido à sua existência, em primeiro lugar, fazendo algo, agindo, criando, concretizando uma obra; em segundo lugar, experienciando algo, a natureza, a arte, amando pessoas; e, em terceiro lugar, atribuindo sentido à vida. No decurso do tempo, continua ele, a pessoa tem de estar preparada para alterar sempre a direção de realização deste sentido, ter em conta exigências momentâneas. Não se esquece de dar exemplos sobre o sofrimento que a doença pode provocar, mas continua a sobreviver o sentido, pode por vezes representar um ganho, e dá testemunhos do que viu no campo de concentração, pessoas que integravam a morte com sentido no todo da vida.

Discorre longamente sobre a eutanásia, condena a possibilidade de o médico tirar a vida, entenda-se o contexto em que Frankl fez tais observações críticas, os nazis condenavam à morte gente com malformações, doentes mentais, doentes incuráveis, entre outros; e, como é de todos sabido, havia médicos nesses campos de concentração a fazer as experiências mais abomináveis, matando as suas cobaias. No nosso tempo, a questão da eutanásia ganhou outra dimensão, é a liberdade que é concedida a quem, por evidência científica, se reconhecer não haver tratamento curável, e decidir livremente morrer. No entanto, lê-se com profundo respeito tudo quanto ele desabona à eutanásia como ela era percecionada há 70 anos. O seu último ensaio, intitulado Experiência da Cruz é marcadamente autobiográfico, ele fala dos sonhos dos prisioneiros, como eles refletiam a essência de sofrimentos e é nestes termos que ele vai abordar a alegria de assumir a responsabilidade: “Há algo na responsabilidade que é insondável: quanto mais tempo e mais profundamente a encaramos, mais consciência tomamos dela até que por fim somos invadidos por uma espécie de vertigem; se nos aprofundarmos na essência da responsabilidade humana, então arrepiamo-nos: há algo de terrível. É terrível saber que: em cada momento sou responsável pelo próximo; que cada decisão, a mais pequena como a maior, é uma decisão para sempre; que em cada momento realizo uma possibilidade, a possibilidade de um momento, ou perco-a.”

O posfácio da obra é assinado pelo genro de Frankl, o professor Franz Vesely. Lembra-nos como Frankl, saído do campo de concentração escrevia em setembro de 1945 a amigos: ”No campo de concentração pensávamos que já se tinha atingido o ponto mais baixo da vida. Nada nos resta agora a não ser talvez chorar um pouco e folhear um pouco o Livro dos Salmos.

É possível que se riam de mim, talvez fiquem zangados comigo. Se não tivesse esta filosofia de vida positiva firme como uma rocha – em que é que me teria tornado nestas semanas ou já naqueles meses que passei num campo de concentração? Mas eu vejo as coisas numa dimensão mais vasta. Eu reconheço cada vez mais que a vida tem um sentido de forma tão infinita, ao ponto de querer que tem de haver um sentido também no sofrimento e até no fracasso.”

No verão de 1946, aquele cientista que tinha perdido a família e que só por uma nesga do acaso sobreviveu, lançou-se a fazer conferências, deixou bem claro que nos campos de concentração pôde observar que, mesmo naquela situação-limite da mais dura privação e da mais profunda degradação, tudo o que ele apreendera e descrevera sistematicamente no seu trabalho como conselheiro juvenil e psiquiatra mantinha a sua validade. Os prisioneiros que ainda puderam reconhecer ou pelo menos esperar um qualquer sentido da vida foram os que mais encontraram a força para continuar a viver ou mesmo para sobreviver.

De leitura obrigatória.



                                                                                                        Mário Beja Santos




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