Vamos ao teatro, por Dina Soares, Fundação Francisco Manuel dos
Santos, 2022, é uma belíssima prova de vida de que o teatro resiste a tudo, à
perseguição política, às pandemias, à poderosíssima concorrência das indústrias
de entretenimento, é uma arte adaptável como qualquer outra, é um ser vivo que
nasce e morre todos os dias, depende do público, do autor, do dramaturgo, de
uma grande equipa, a começar pelos atores. A autora ia começar este seu livro
no dia em que os teatros fecharam, 11 de março de 2020. E lembra-nos que não
foi a primeira vez que uma pandemia fechou os teatros, recorda-nos Shakespeare,
o que me pôs a imaginação a funcionar, o criador e ator Shakespeare não se
esqueceu de pôr o teatro dentro do teatro, fê-lo, por exemplo, no genial Hamlet. Pandemia que obrigou a
respostas solidárias, desde transmissões gratuitas de grandes óperas e
concertos até espetáculos pensados para estrear online. Obviamente que uma peça
transmitida na televisão não é a mesma coisa de estarmos diante de um palco. E
um ator e encenador, Carlos Pimenta, observa: “Não é teatro, é um produto de
televisão, um documento de um espetáculo do teatro. Uma performance só existe
no presente. Quando deixa de existir no presente, passa a ser um documento.”
Mas era a resposta possível, ajudou-nos a superar o confinamento.
Agora somos levados até ao Teatro Aberto, estamos em novembro de 2021,
ainda há restrições, a autora vai vendo e comentando, lembra-nos que há muito
mais teatro do que aquilo que aparece na boca de cena, logo os bastidores, os
projetores e a maquinaria suspensa, dá-nos pormenores: “Ao longo da sala, por
cima da plateia, há nove varas de iluminação às quais os técnicos têm acesso
através de uma ponte rolante. É assim que conseguem afinar os projetores,
direcioná-los ou mudar as lâmpadas. É ainda nestas varas que estão presos os
robôs, projetores que permitem fazer dezenas de efeitos e são controlados a
partir da régie, a
cabine onde estão os operadores de luz, som e vídeo, os profissionais que
acompanham tecnicamente o decorrer dos espetáculos.” Ficamos a saber o
histórico do Teatro Aberto, fala-se no Teatro Nacional de S. João, no Chapitô,
no Teatro Viriato, e vamos agora propriamente entrar na organização do
espetáculo, logo os ensaios, conversa com os atores, oiçamos Maria Emília Correia:
“Fazer teatro assenta em todas as emoções. E no simulacro destas. A preparação
do espetáculo é, para mim, o tempo mais importante. Concentra o processo
criativo. Há que estudar o autor, a época (se a peça não for contemporânea) e o
texto, com rigor, sendo que é uma tentativa de domínio das palavras e seus
significados mais recônditos.” Não é só a representação, pode haver uma cena
que se dança, ou canto, intervêm outros, os atores confessam que houve trabalho
árduo para chegar à compreensão daquele texto. A atriz Catarina Avelar não
morre de amores pela sua personagem, de nome Célia, há na peça um monólogo em
que ela revela a sua fobia aos gatos, e a atriz comenta: “É uma paranoia total,
um total descontrolo. Conseguir deitar cá para fora aquela paranoia com aquela
linguagem, sem parecer um disparate completo, sem as pessoas perceberem que ela
não está bem, que só está a dizer disparates, é difícil. Para mim há a peça até
ao monólogo e depois. Quando se aproxima o monólogo estou sempre em grande tensão.
E dos ensaios passamos para o texto, a sofisticação da dramaturgia,
adaptam-se ou não as peças, eis a questão. As atrizes que estão a fazer a peça
do Teatro Aberto “Só Eu Escapei”, de Caryl Churchill, não são crianças, iremos
ouvir Márcia Breia, Lídia Franco e Catarina Avelar; quem entra no teatro e
contempla a cena desconhece a importância da sonografia e o que se passa nos
bastidores. A cenógrafa Marisa Fernandes procura uma definição: “Para mim, a
cenografia é a criação de imagens das palavras, de um ambiente onde se vão
desenrolar as ações. É a fisicalidade da escrita.” É importante entender a
relação do encenador com o cenário, é tudo uma questão de equilíbrio, se este
se perde o público fica às aranhas.
A autora entra nos bastidores, fala com o chefe-maquinista,
interessa-se pela régie, troca umas palavras com a assistente do palco. E depois vai visitar o
guarda-roupa, fala com a mestra do guarda-roupa do Teatro Aberto, Irene Cabral:
“Faço as roupas, lavo, limpo, engomo, faço arranjos se for preciso. Tudo o que
diga respeito às roupinhas, sou eu que trato, para que tudo esteja organizado.
Todos os dias vejo se é preciso alguma coisa, mas a limpeza e os arranjos mais
profundos são feitos ao fim de semana.” Aos poucos, vamos conhecendo os
itinerários dos elementos desta equipa, não é descurado o papel da figurinista,
Ana Paula Rocha apresenta-se: “O figurinista tem de entender a personagem que
está em cena, saber interpretá-la para a saber vestir. O figurino é o que vai
dar ao ator a sensação de ter uma segunda pele, a pele da personagem e desta
forma ajuda-o a representar.” A figurinista trabalha em grande proximidade com
o encenador, o cenógrafo e o iluminador.
Há um momento mágico para toda esta equipa do teatro: a estreia, a
ansiedade, as superstições, os medos, os atores mais velhos perguntam-se quanto
tempo mais poderão estar no palco, como comenta Márcia Breia: “O teatro é muito
exigente, é o mais exigente de tudo para uma atriz. Temos de nos transformar,
ir buscar algo que não está ali, alguém que não somos nós ou que nem sabíamos
que éramos. Não é uma exibição pessoal, nem a satisfação da vaidade pessoal,
embora quase todos caiamos nisso de vez em quando. Há quem reaja com
melancolia, nesse dia de estreia, como desabafa o encenador João Lourenço: “É
horrível. Para mim, o dia da estreia é sempre um dia muito triste. O maestro,
por exemplo, faz parte do espetáculo. Está lá a dirigir. O encenador deixa as
suas ideias e vai-se embora. Nesse momento, a criação passa para as mãos dos
atores.” E assoma do texto que João Lourenço se pauta pela minúcia, a precisão,
a importância que dá ao texto, confessa ser flexível: “Há encenadores que têm
um estilo muito forte que se sobrepõe ao próprio texto. Vê-se que são eles. São
os mais marcantes, são fantásticos. Eu olho para o palco, vejo um tapete no
chão e sei logo que é o Peter Brook. Se vejo no decorrer do espetáculo que se
prepara um grande final, sei que é do Peter Stein. As pessoas gostam de
encontrar esse estilo. Eu não sou assim, eu tento fazer sempre diferente. É
esse o meu estilo.”
E questiona-se o que é viver do teatro, uma arte que se diz constantemente estar em crise, são aqui enunciadas propostas para que o teatro prossiga, fala-se num mecenato, nas verbas da Cultura, que devia haver mais responsabilidade social das grandes empresas, na carreira profissional. Não se pode passar ao lado do teatro, segundo as estatísticas da cultura de 2019 realizaram-se nesse ano em todo o país 13516 sessões às quais assistiram perto de 2 milhões e 200 mil espetadores. Os entrevistados são unânimes: há que criar uma carreira profissional, levar os atores a sério como agentes da cultura. “Quando saímos de uma sala de teatro, depois de termos assistido a uma peça que nos interpela, que nos emociona, saímos inevitavelmente um pouco mais comprometidos connosco próprios, com os outros e com o mundo que nos rodeia.” E assim termina esta tocante ida ao teatro.
Mário Beja Santos
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