terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Quando dois grão-mestres da literatura se enfrentam a pretexto de uma biografia inexistente.

 


 

Tenho para mim que O Papagaio de Flaubert é a obra-prima absoluta de Julian Barnes (Quetzal Editores, 2019, reedição). Inventa-se um médico reformado e viúvo, Geoffrey Braithwaite, este atravessa o Canal da Mancha rumo a Ruão, a terra natal de Gustave Flaubert, move-o a curiosidade de ver o papagaio embalsamado que teria servido de modelo ao autor da Madame Bovary durante a escrita de uma obra ainda hoje aclamada, Un Coeur Simple. Este papagaio teria permanecido na sua secretária durante algumas semanas até o escritor se ter fartado daquele elemento que o ajudara na escrita.

O médico será um elemento de ligação entre o verdadeiro narrador, que se vai mostrar muito pouco interessado em maravilhar-nos com uma biografia daquele que escreveu o primeiro romance moderno, e a mais estonteante viagem à vida de um homem que além do seu talento genial vê escancarado neste romance as suas doenças, egolatria, manias, tiques, vaidades e medos, chegaremos mesmo a um momento em que o falso biógrafo põe na boca de cena um Flaubert sobreavaliado pela imponência literária, como Barnes o desenha, inigualável:

“Flaubert ensina-nos a olhar para a verdade e não temer as suas consequências; ensina-nos como Montaigne, a dormir na almofada da dúvida; ensina-nos a dissecar as partes constituintes da realidade e a observar que a natureza é sempre uma mistura de géneros; ensina-nos o uso mais exato da língua; ensina-nos a não nos aproximarmos de um livro em busca de pílulas morais ou sociais: a literatura não é uma farmacopeia; ensina a superioridade da Verdade, da Beleza, do Sentimento e do Estilo. E, se estudarmos a sua vida privada, ensina a coragem, o estoicismo, a amizade; a importância da inteligência, do ceticismo e da imaginação; a palermice do patriotismo barato; a virtude de ser capaz de ficar sozinho no quarto; o ódio à hipocrisia; a desconfiança nas teorias; a necessidade de falar com simplicidade.”

Portanto, um papagaio que é um pretexto, um médico reformado que não pesa na estrutura literária, a não ser com aquele papel que tem no teatro o ponto ou o repetidor. O que é denso é lançar o leitor em Ruão, procurar os vestígios de Flaubert, e não são muitos. Ajuda forjar um médico para dizer que Flaubert fora um belo jovem que se tornara num burguês barrigudo e calvo, produto da sífilis e da epilepsia. Médico que vai ao hospital para visitar o papagaio embalsamado, tem o nome de Lulu, é o papagaio de Félicité, a personagem principal do conto Un Coeur Simple, de que vamos saber a história: Félicité é uma criada ignorante que serve a mesma patroa durante meio século, entrega sucessivamente a um noivo boçal, aos filhos da patroa, ao sobrinho e a um velho com cancro no braço, todos irão partir ou esquecê-la, só Lulu, o papagaio, é que é permanente, e quando este morre Félicité manda embalsamá-lo. Feita esta visita tudo podia acabar aqui, pelo contrário, é a primeira estação de uma viagem quase alucinante. O médico inicia as suas pesquisas, procura lugares, dá-nos a cronologia da vida de Flaubert (1821-1880). É hora de conhecer a vida privada, a percetora inglesa que foi sua amante, e que dá muito que falar aos biógrafos de Flaubert, entra no palco alguém que possuiria tais cartas trocadas, afinal já não existem; segue-se o desconcertante bestiário de Flaubert, uma deriva fantástica, talvez com pistas palpitantes para a psicanálise. Chegamos abruptamente ao romance maldito, Madame Bovary, perseguido por obsceno, coisa terrível, uma cena de adultério numa carruagem com cortinas corridas, a viagem de Flaubert ao Egito, a caprichosa relação de Flaubert com Louise Colet, esta mesma terá direitos para falar com o leitor e desancar esse Flaubert que a passou a ignorar; há também uns arremedos de investigação policial, a tentativa de apurar em quem se baseou o escritor de Ruão para cinzelar a figura de Emma Bovary, e é a vez de Barnes falar na primeira pessoa e desancar um biógrafo de Flaubert, tudo por causa das cores dos olhos dessa mulher cujo nome vai ser traduzido em todas as línguas. A propósito ou a despropósito, Barnes rende-se ao génio de Flaubert, mas podemos imaginar os dois numa sala de espelhos, um exemplo: “Acreditava no estilo mais do que ninguém. Trabalhava afincadamente pela beleza, pela sonoridade, pela exatidão; pela perfeição, mas nunca a perfeição como monograma do escritor, como Wilde. O estilo é uma função do tema. O estilo não é imposto ao assunto, decorre dele. O estilo é a verdade para o pensamento. A palavra correta, a frase autêntica, a frase perfeita estão sempre algures por aí; o trabalho do escritor é localizá-las seja por que meio for.”

A dimensão física de Flaubert não é escamoteada: era um gigante, um metro e oitenta, a posteridade mostra-o volumoso, olhar distante, forte bigodaça, calva larga. E, logo de seguida, Barnes muda de agulha, voltamos aos amores do escritor, às viagens, à vida doméstica, ficamos até a saber que Flaubert detestava os caminhos-de-ferro. E há os livros que Flaubert não escreveu e que imaginou, prometeu uma autobiografia, o tratamento de temas vários, na sua extensa correspondência arquitetou mundos e fundos e afinal um leitor de cultura média sabe que o seu nome entrou na avenida dos clássicos graças a Madame Bovary, a Educação Sentimental, a Salammbô e a uma história deliciosa que deixou incompleta Bouvard e Pécuchet.

O monólogo de Louise Colet é um autêntico clímax, sabiamente Barnes dá-lhe uma dimensão teatral, oferece-lhe todos os requisitos para estilhaçar e esventrar Flaubert, é seguramente um dos textos mais espantosos de confidências, não nos dá tréguas, sufocante e irado:

“Alguém – talvez o próprio Gustave – queimará as minhas cartas; as suas (que eu guardei com todo o cuidado, tão contra os meus interesses) sobreviverão para confirmar os preconceitos dos que são demasiado preguiçosos para compreender. Sou uma mulher e também uma escritora que gastou da sua parcela da fama em vida; e nestes dois campos não espero muita piedade ou muita compreensão da posteridade. Se me importo? Com certeza que sim. Mas esta noite não estou vingativa; apenas resignada.”

O falso médico aparece-nos com a lista das principais personagens e situações que ajudam a compreender o enigmático Flaubert: os membros da família, os amigos; os amantes e as amantes, escritores envolvidos. Romance que acaba onde começa, no papagaio embalsamado. E há uma última excentricidade de novela policial: será que Flaubert se suicidou?

Moral da história: a vida verdadeira é a vida que vem nos livros – porque é a única que se pode interrogar.

De leitura obrigatória.



                                                                                                        Mário Beja Santos






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