Tenho para mim que O
Papagaio de Flaubert é a obra-prima absoluta de Julian Barnes (Quetzal
Editores, 2019, reedição). Inventa-se um médico reformado e viúvo, Geoffrey
Braithwaite, este atravessa o Canal da Mancha rumo a Ruão, a terra natal de
Gustave Flaubert, move-o a curiosidade de ver o papagaio embalsamado que teria
servido de modelo ao autor da Madame Bovary durante a escrita de uma
obra ainda hoje aclamada, Un Coeur Simple. Este papagaio teria
permanecido na sua secretária durante algumas semanas até o escritor se ter
fartado daquele elemento que o ajudara na escrita.
O médico será um
elemento de ligação entre o verdadeiro narrador, que se vai mostrar muito pouco
interessado em maravilhar-nos com uma biografia daquele que escreveu o primeiro
romance moderno, e a mais estonteante viagem à vida de um homem que além do seu
talento genial vê escancarado neste romance as suas doenças, egolatria, manias,
tiques, vaidades e medos, chegaremos mesmo a um momento em que o falso biógrafo
põe na boca de cena um Flaubert sobreavaliado pela imponência literária, como
Barnes o desenha, inigualável:
“Flaubert ensina-nos
a olhar para a verdade e não temer as suas consequências; ensina-nos como
Montaigne, a dormir na almofada da dúvida; ensina-nos a dissecar as partes
constituintes da realidade e a observar que a natureza é sempre uma mistura de
géneros; ensina-nos o uso mais exato da língua; ensina-nos a não nos
aproximarmos de um livro em busca de pílulas morais ou sociais: a literatura
não é uma farmacopeia; ensina a superioridade da Verdade, da Beleza, do
Sentimento e do Estilo. E, se estudarmos a sua vida privada, ensina a coragem,
o estoicismo, a amizade; a importância da inteligência, do ceticismo e da
imaginação; a palermice do patriotismo barato; a virtude de ser capaz de ficar
sozinho no quarto; o ódio à hipocrisia; a desconfiança nas teorias; a
necessidade de falar com simplicidade.”
Portanto, um papagaio
que é um pretexto, um médico reformado que não pesa na estrutura literária, a
não ser com aquele papel que tem no teatro o ponto ou o repetidor. O que é
denso é lançar o leitor em Ruão, procurar os vestígios de Flaubert, e não são
muitos. Ajuda forjar um médico para dizer que Flaubert fora um belo jovem que
se tornara num burguês barrigudo e calvo, produto da sífilis e da epilepsia.
Médico que vai ao hospital para visitar o papagaio embalsamado, tem o nome de
Lulu, é o papagaio de Félicité, a personagem principal do conto Un Coeur
Simple, de que vamos saber a história: Félicité é uma criada ignorante que
serve a mesma patroa durante meio século, entrega sucessivamente a um noivo
boçal, aos filhos da patroa, ao sobrinho e a um velho com cancro no braço,
todos irão partir ou esquecê-la, só Lulu, o papagaio, é que é permanente, e
quando este morre Félicité manda embalsamá-lo. Feita esta visita tudo podia
acabar aqui, pelo contrário, é a primeira estação de uma viagem quase
alucinante. O médico inicia as suas pesquisas, procura lugares, dá-nos a
cronologia da vida de Flaubert (1821-1880). É hora de conhecer a vida privada,
a percetora inglesa que foi sua amante, e que dá muito que falar aos biógrafos
de Flaubert, entra no palco alguém que possuiria tais cartas trocadas, afinal
já não existem; segue-se o desconcertante bestiário de Flaubert, uma deriva
fantástica, talvez com pistas palpitantes para a psicanálise. Chegamos
abruptamente ao romance maldito, Madame Bovary, perseguido por obsceno,
coisa terrível, uma cena de adultério numa carruagem com cortinas corridas, a
viagem de Flaubert ao Egito, a caprichosa relação de Flaubert com Louise Colet,
esta mesma terá direitos para falar com o leitor e desancar esse Flaubert que a
passou a ignorar; há também uns arremedos de investigação policial, a tentativa
de apurar em quem se baseou o escritor de Ruão para cinzelar a figura de Emma
Bovary, e é a vez de Barnes falar na primeira pessoa e desancar um biógrafo de
Flaubert, tudo por causa das cores dos olhos dessa mulher cujo nome vai ser
traduzido em todas as línguas. A propósito ou a despropósito, Barnes rende-se
ao génio de Flaubert, mas podemos imaginar os dois numa sala de espelhos, um
exemplo: “Acreditava no estilo mais do que ninguém. Trabalhava afincadamente
pela beleza, pela sonoridade, pela exatidão; pela perfeição, mas nunca a
perfeição como monograma do escritor, como Wilde. O estilo é uma função do
tema. O estilo não é imposto ao assunto, decorre dele. O estilo é a verdade
para o pensamento. A palavra correta, a frase autêntica, a frase perfeita estão
sempre algures por aí; o trabalho do escritor é localizá-las seja por que meio
for.”
A dimensão física de
Flaubert não é escamoteada: era um gigante, um metro e oitenta, a posteridade
mostra-o volumoso, olhar distante, forte bigodaça, calva larga. E, logo de
seguida, Barnes muda de agulha, voltamos aos amores do escritor, às viagens, à
vida doméstica, ficamos até a saber que Flaubert detestava os caminhos-de-ferro.
E há os livros que Flaubert não escreveu e que imaginou, prometeu uma
autobiografia, o tratamento de temas vários, na sua extensa correspondência
arquitetou mundos e fundos e afinal um leitor de cultura média sabe que o seu
nome entrou na avenida dos clássicos graças a Madame Bovary, a Educação
Sentimental, a Salammbô e a uma história deliciosa que deixou
incompleta Bouvard e Pécuchet.
O monólogo de Louise
Colet é um autêntico clímax, sabiamente Barnes dá-lhe uma dimensão teatral,
oferece-lhe todos os requisitos para estilhaçar e esventrar Flaubert, é
seguramente um dos textos mais espantosos de confidências, não nos dá tréguas,
sufocante e irado:
“Alguém – talvez o
próprio Gustave – queimará as minhas cartas; as suas (que eu guardei com todo o
cuidado, tão contra os meus interesses) sobreviverão para confirmar os
preconceitos dos que são demasiado preguiçosos para compreender. Sou uma mulher
e também uma escritora que gastou da sua parcela da fama em vida; e nestes dois
campos não espero muita piedade ou muita compreensão da posteridade. Se me
importo? Com certeza que sim. Mas esta noite não estou vingativa; apenas
resignada.”
O falso médico
aparece-nos com a lista das principais personagens e situações que ajudam a
compreender o enigmático Flaubert: os membros da família, os amigos; os amantes
e as amantes, escritores envolvidos. Romance que acaba onde começa, no papagaio
embalsamado. E há uma última excentricidade de novela policial: será que
Flaubert se suicidou?
Moral da história: a
vida verdadeira é a vida que vem nos livros – porque é a única que se pode
interrogar.
De leitura
obrigatória.
Mário Beja Santos
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