Trata-se de um livro
raro, singularíssimo, cabe-nos o dever de o guardar ciosamente nas nossas
estantes, isto a despeito de outros navegantes do território talentosos homens
da câmara fotográfica de há muito incensarem, desvelarem o que há de recôndito
e simultaneamente paradoxal, caleidoscópico, nas paisagens que temos,
continente e ilhas. O dueto de autores foi escolhido a preceito, Álvaro
Domingues é geógrafo, tem forte atração pela Geografia Urbana e as políticas
urbanas; o fotógrafo é Duarte Belo, já carimbou obras de referência como Portugal
– o sabor da Terra (1998), e Portugal património (2007-2008). Paisagem
portuguesa, por Duarte Belo e Álvaro Domingues, Fundação Francisco Manuel
dos Santos, 2022, é um assombro, agarra-nos pelo texto e sacode-nos pela
imagem. O autor geógrafo, logo no proémio, intitulado “Afloramentos de uma
identidade plural” dá conta ao que ambos vêm, desmontar uma ideia estruturada
sobre a nossa identidade, revelar aquela que, intrinsecamente, é aquela que
agora dispomos:
“Do século XIX
herdámos convicções firmes acerca da necessidade de fazer coincidir uma Nação,
um Estado, uma língua, uma cultura, um território, uma religião, um povo, uma
‘raça’… Com uma identidade própria a que a História e a Geografia também
tratariam de dar corpo e legitimar. Realizada essa função por uma pequena elite
enredada na malha do poder, não havia mais que fazer do que simplificar as
narrativas e as imagens identitárias do nacionalismo e pô-las a circular até
constituírem o adquirido. De crise em crise e, sobretudo, do longo tempo de
duração da Ditadura de Salazar, ficou uma herança desmedida de excesso de
identidade, mitos, lendas, narrativas, imagens do país à beira-mar plantado,
pobre e feliz, descalço e trabalhador, habitando a terra abençoada dos egrégios
avós.
Por mil razões e mais
uma, estamos agora num tempo em que o Estado, a Nação, o Território, a
Paisagem, a Identidade e outras designações respeitosamente postas em
maiúsculas, não correspondem a nenhuma representação ou realidade estável e consensual.
Vivemos tempos de identidades múltiplas, circulação rápida de referentes
globais, pluralismo, metamorfoses tecnológicas e ruturas velozes e drásticas,
dissipações e simultaneidades de contrários (…) Visto desta agitação, o passado
foi ficando cada vez mais problemático no seu poder de resposta para aquilo que
o impulso identitário demanda, o presente move-se demasiado rápido e só produz
instantâneos e o futuro está quase opaco. Observemos então as paisagens de
Duarte Belo. Para além da materialidade que o fotógrafo captou, a ambiência que
se fixou nas cores e nas formas, logo veremos se o que se vai desprendendo é
aquilo que é fotografado, o fotógrafo ou as emoções e os pensamentos de quem vê
e interpela.” Longa e aliciante será a viagem entre a foz do rio Minho e a ilha
do Corvo. Cada imagem, de per si, é um tanto conclusiva, o geógrafo não se
furta à pedagogia e comenta a sinalização. Estou a olhar para Montesinho, uma
serra deslumbrante, a vista espraia-se e o geógrafo dá o mote: “É o limite agreste
da Terra Fria Transmontana. Não fossem os interesses militares e estratégicos
da demarcação da fronteira e estas terras permaneceriam ainda mais vazias do
que agora estão. Nos vales mais abrigados prosperaram algumas aldeias e várzeas
cultivadas, tendo-se desenvolvido também sistemas comunitários de
aproveitamento de recursos.” Fala-nos de Rio de Onor e não esquece de nos dar
conta desse tempo de partilha das coisas e valores comuns: “Era a comunidade,
palavra que anda tão gasta nos tempos que correm, provavelmente porque tal
coisa não existe, porque a sociedade é um salve-se quem puder.” Estou agora a
ver a Serra Amarela ali para Terras de Bouro e a lembrar-me do viajante José
Saramago que calcorreou por terras de Portugal e deixou prosa luminescente. Começou
a sua viagem em terras mirandesas, abriu a janela e tinha a Serra Amarela a
cumprimentá-lo. Duarte Belo tem imagens estarrecedoras, mostra-nos Bragança
enregelada e espraiada, dá-nos em plenitude a capacidade de comparar, temos de
um lado o Monte de São Félix, Póvoa de Varzim, até parece que temos Los Angeles
ao fundo, e o contraste é Citânia de Briteiros, um ponto alto da cultura
castreja, nos arredores de Guimarães; vemos em toda a sua exuberância o Vale do
Rio Douro, um detalhe em Carrazeda de Ansiães, de maravilha em maravilha vamos
até Vila Nova de Foz Côa e Poiares.
Isto de se fazer recensão a tão belos textos e
141 imagens modelares deixa o recensor contrafeito, felizmente que Duarte Belo
mitiga a inquietação a quem faz de resumidor: “Não é fácil sintetizar num
conjunto de 141 fotografias toda a diversidade e complexidade da paisagem
portuguesa. Se considerássemos, neste pedaço de superfície terrestre, o tempo
anterior ao povoamento do Homo Sapiens, encontraríamos espaços de grande
diversidade geográfica, como sejam os cumes gelados da Serra da Estrela, as
planícies a sul do rio Tejo, a orla marítima ao longo de centenas de
quilómetros, ou os vales dos grandes rios. Com o povoamento humano, a paisagem
passa a ser uma construção assente em princípios e ritmos diferentes do que o
foram no passado. O presente retrato quer captar, ainda que sumariamente, esta
relação entre os elementos geomorfológicos estruturais do território, como os
rios e as montanhas, com as marcas de humanidade, dos construtores de paisagens
que somos. As fotografias mostram-nos que esta tentativa de fixar os tempos dos
lugares é vã.”
A imagem da capa não
é menos deslumbrante, mostra-nos a Fuzeta, texto esplêndido para imagem tão
deslumbrante:
“Na sua Poética do
espaço, Gaston Bachelard afirma que os humanos sem casas seriam seres
vagabundos, para sempre dispersos. Mais do que um refúgio, a casa é uma
proteção, um mundo a partir do qual nos posicionamos face a outros mundos
exteriores e menos conhecidos,
a casa é parte
fundamental do nosso canto do mundo: através
das lembranças de
todas as casas em que encontramos abrigo,
além de todas as
casas em que já desejámos morar, podemos
isolar uma essência
íntima e concreta que seja uma justificativa
para o valor singular
que atribuímos a todas as nossas imagens
de intimidade
protegida.
Na Fuzeta a uma casa
de Socorros a Náufragos pairando sobre as águas na vastidão da ria. Pode
parecer insólita, quase uma aparição, um salva-vidas inesperado. Todas as casas
socorrem náufragos de alguma solidão ou da agitação do mundo, lançando uma
rampa ou uma escada para que recuperemos a respiração da vida, o fogo, uma
pequena chama que seja para refazer caminho.”
Que mais dizer deste
magnífico dueto sobre a paisagem portuguesa?
Mário Beja Santos
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