terça-feira, 11 de abril de 2023

141 imagens de paisagem que revelam o assombroso uno e múltiplo Portugal.

 



 

 

Trata-se de um livro raro, singularíssimo, cabe-nos o dever de o guardar ciosamente nas nossas estantes, isto a despeito de outros navegantes do território talentosos homens da câmara fotográfica de há muito incensarem, desvelarem o que há de recôndito e simultaneamente paradoxal, caleidoscópico, nas paisagens que temos, continente e ilhas. O dueto de autores foi escolhido a preceito, Álvaro Domingues é geógrafo, tem forte atração pela Geografia Urbana e as políticas urbanas; o fotógrafo é Duarte Belo, já carimbou obras de referência como Portugal – o sabor da Terra (1998), e Portugal património (2007-2008). Paisagem portuguesa, por Duarte Belo e Álvaro Domingues, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022, é um assombro, agarra-nos pelo texto e sacode-nos pela imagem. O autor geógrafo, logo no proémio, intitulado “Afloramentos de uma identidade plural” dá conta ao que ambos vêm, desmontar uma ideia estruturada sobre a nossa identidade, revelar aquela que, intrinsecamente, é aquela que agora dispomos:

“Do século XIX herdámos convicções firmes acerca da necessidade de fazer coincidir uma Nação, um Estado, uma língua, uma cultura, um território, uma religião, um povo, uma ‘raça’… Com uma identidade própria a que a História e a Geografia também tratariam de dar corpo e legitimar. Realizada essa função por uma pequena elite enredada na malha do poder, não havia mais que fazer do que simplificar as narrativas e as imagens identitárias do nacionalismo e pô-las a circular até constituírem o adquirido. De crise em crise e, sobretudo, do longo tempo de duração da Ditadura de Salazar, ficou uma herança desmedida de excesso de identidade, mitos, lendas, narrativas, imagens do país à beira-mar plantado, pobre e feliz, descalço e trabalhador, habitando a terra abençoada dos egrégios avós.

Por mil razões e mais uma, estamos agora num tempo em que o Estado, a Nação, o Território, a Paisagem, a Identidade e outras designações respeitosamente postas em maiúsculas, não correspondem a nenhuma representação ou realidade estável e consensual. Vivemos tempos de identidades múltiplas, circulação rápida de referentes globais, pluralismo, metamorfoses tecnológicas e ruturas velozes e drásticas, dissipações e simultaneidades de contrários (…) Visto desta agitação, o passado foi ficando cada vez mais problemático no seu poder de resposta para aquilo que o impulso identitário demanda, o presente move-se demasiado rápido e só produz instantâneos e o futuro está quase opaco. Observemos então as paisagens de Duarte Belo. Para além da materialidade que o fotógrafo captou, a ambiência que se fixou nas cores e nas formas, logo veremos se o que se vai desprendendo é aquilo que é fotografado, o fotógrafo ou as emoções e os pensamentos de quem vê e interpela.” Longa e aliciante será a viagem entre a foz do rio Minho e a ilha do Corvo. Cada imagem, de per si, é um tanto conclusiva, o geógrafo não se furta à pedagogia e comenta a sinalização. Estou a olhar para Montesinho, uma serra deslumbrante, a vista espraia-se e o geógrafo dá o mote: “É o limite agreste da Terra Fria Transmontana. Não fossem os interesses militares e estratégicos da demarcação da fronteira e estas terras permaneceriam ainda mais vazias do que agora estão. Nos vales mais abrigados prosperaram algumas aldeias e várzeas cultivadas, tendo-se desenvolvido também sistemas comunitários de aproveitamento de recursos.” Fala-nos de Rio de Onor e não esquece de nos dar conta desse tempo de partilha das coisas e valores comuns: “Era a comunidade, palavra que anda tão gasta nos tempos que correm, provavelmente porque tal coisa não existe, porque a sociedade é um salve-se quem puder.” Estou agora a ver a Serra Amarela ali para Terras de Bouro e a lembrar-me do viajante José Saramago que calcorreou por terras de Portugal e deixou prosa luminescente. Começou a sua viagem em terras mirandesas, abriu a janela e tinha a Serra Amarela a cumprimentá-lo. Duarte Belo tem imagens estarrecedoras, mostra-nos Bragança enregelada e espraiada, dá-nos em plenitude a capacidade de comparar, temos de um lado o Monte de São Félix, Póvoa de Varzim, até parece que temos Los Angeles ao fundo, e o contraste é Citânia de Briteiros, um ponto alto da cultura castreja, nos arredores de Guimarães; vemos em toda a sua exuberância o Vale do Rio Douro, um detalhe em Carrazeda de Ansiães, de maravilha em maravilha vamos até Vila Nova de Foz Côa e Poiares.

 Isto de se fazer recensão a tão belos textos e 141 imagens modelares deixa o recensor contrafeito, felizmente que Duarte Belo mitiga a inquietação a quem faz de resumidor: “Não é fácil sintetizar num conjunto de 141 fotografias toda a diversidade e complexidade da paisagem portuguesa. Se considerássemos, neste pedaço de superfície terrestre, o tempo anterior ao povoamento do Homo Sapiens, encontraríamos espaços de grande diversidade geográfica, como sejam os cumes gelados da Serra da Estrela, as planícies a sul do rio Tejo, a orla marítima ao longo de centenas de quilómetros, ou os vales dos grandes rios. Com o povoamento humano, a paisagem passa a ser uma construção assente em princípios e ritmos diferentes do que o foram no passado. O presente retrato quer captar, ainda que sumariamente, esta relação entre os elementos geomorfológicos estruturais do território, como os rios e as montanhas, com as marcas de humanidade, dos construtores de paisagens que somos. As fotografias mostram-nos que esta tentativa de fixar os tempos dos lugares é vã.”

A imagem da capa não é menos deslumbrante, mostra-nos a Fuzeta, texto esplêndido para imagem tão deslumbrante:

“Na sua Poética do espaço, Gaston Bachelard afirma que os humanos sem casas seriam seres vagabundos, para sempre dispersos. Mais do que um refúgio, a casa é uma proteção, um mundo a partir do qual nos posicionamos face a outros mundos exteriores e menos conhecidos,

a casa é parte fundamental do nosso canto do mundo: através

das lembranças de todas as casas em que encontramos abrigo,

além de todas as casas em que já desejámos morar, podemos

isolar uma essência íntima e concreta que seja uma justificativa

para o valor singular que atribuímos a todas as nossas imagens

de intimidade protegida.

Na Fuzeta a uma casa de Socorros a Náufragos pairando sobre as águas na vastidão da ria. Pode parecer insólita, quase uma aparição, um salva-vidas inesperado. Todas as casas socorrem náufragos de alguma solidão ou da agitação do mundo, lançando uma rampa ou uma escada para que recuperemos a respiração da vida, o fogo, uma pequena chama que seja para refazer caminho.”

Que mais dizer deste magnífico dueto sobre a paisagem portuguesa?


Mário Beja Santos




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