Em 2002, John le Carré manifestou-se publicamente
contra a invasão do Iraque perpetrada pela Administração Bush e aliados,
escreveu, andou em manifestações, deu entrevistas. E em 2003 publicou (título
em português) Amigos até ao Fim, que Publicações D. Quixote acaba de
reeditar, esta obra-prima literária é de leitura oportuna neste mundo de
mentiras, em que estamos vergados a vendilhões do jornalismo. A arquitetura do
romance é extraordinária, anda à volta da história de dois amigos, Ted Mundy,
filho expatriado de um oficial do Exército britânico, mobilizado para o
Paquistão, e Sacha, um radical alemão, pequenote, claudicante, mas com uma
mente brilhante e um entusiasmo inquebrantável. O destino pô-los juntos em
Berlim nos anos 1960, ambos anarquistas e com vivência comunitária. A narrativa
mistura tempos e lugares, iremos percorrer a carreira de Ted, desde espião
camuflado ao serviço ao British Council até guia turístico num castelo de Luís
da Baviera, Linderhof; depois de Berlim, Sacha desapareceu da cena e
reencontram-se agora, dez anos depois, numa receção num país da Europa de
Leste; Sacha, para estupefação de Ted, é agora funcionário da RDA e propõe a
Ted uma operação de espionagem: passar segredos de Estado para o Ocidente,
apoiando-se nas tarefas que ele exerce no Birtish Council. Andamos numa
corrediça entre o passado e o presente, Ted, depois de tanta vicissitude,
parece ter encontrado o seu ninho de amor com uma turca, fartou-se de aventuras,
a Guerra Fria acabou como o seu casamento com Kate culminou num desastre.
E John le Carré, dentro deste bordado que se irá
transformar numa teia de aranha, afasta-os, estamos agora centrados em Ted
Mundy, dentro da tal narrativa de feedback, faz jornalismo e biscata, e depois
encontra trabalho no British, vem casamento e filho. Quando tudo parece
sedimentar-se e o fogo da juventude ficar para trás, dá-se o assombroso
reencontro com Sasha, passara de anarquista a marxista-leninista, mas estava
agora dececionado, interessa-se em trair, é preciso que a mentira comunista se
desmorone. John le Carré faz sair da cartola um autocarro psicadélico com um
grupo de teatro que serve às mil maravilhas para que, a pretexto do teatro de
Shakespeare, Sasha lhe entregue os tais segredos de Estado, tão importantes que
os Serviços Secretos Britânicos os repartirem com os Primos, ou seja, a CIA.
Esta irá entrar em campo, a seu tempo, e com uma perversidade devastadora.
Dentro desta arquitetura da escrita de altos e baixos,
vemos o desmoronamento do Muro de Berlim, o impensável acontece, vem aí a
reunificação. A vida familiar de Ted estiolou após o divórcio, a Guerra Fria já
não precisa dele. E Sasha surge de novo. Ted tivera um instituto de línguas em
Heidelberg, um sócio especializado em gestão danosa levou o negócio à ruína.
Sasha irá surgir naquele universo ameaçador em que eramos regidos por uma
superpotência unipolar, vem inflamado, é indispensável mudar tudo, encontrou
patrono, o impalpável Dimitri, para financiar uma academia que será um altifalante
de alternativa ao capitalismo. É nesse contexto, que será desencadeada a
invasão do Iraque e montada uma operação que pretende mostrar ao mundo que o
radicalismo satânico de Saddam Hussein tem antenas perigosíssimas no mundo
ocidental.
As derradeiras páginas desta obra-prima oscilam entre
solilóquios premonitórios, Ted apercebe-se que foi atraído para uma cilada,
vagueia à volta da escola, anda confuso, os Serviços Secretos britânicos
deram-lhe passaportes para ele e Sasha, urge que eles desapareçam, fora montada
uma trama ignóbil. E rebentam explosões, os amigos reencontram-se, foram
vítimas de uma operação da CIA, mas são demonstradamente amigos até ao fim.
O cinismo, o maquiavelismo de todo este ardil, fica
para o fim, como o autor relata:
“O círculo de Heidelberg, como se tornou imediatamente
conhecido nos media de todo o mundo, desencadeou ondas de choque através das
cortes da Velha Europa e de Washington e foi um sinal claro para todos os
críticos da política americana de imperialismo democrático-conservador.
Durante cinco dias inteiros a imprensa e a televisão
foram obrigadas a respeitar qualquer coisa de parecido com um silêncio
estupefacto. Havia manchetes sensacionais, mas não havia notícias substanciais,
pela boa razão de que as forças de segurança tinham agido dentro de uma espécie
de estúdio cinematográfico vedado a estranhos.
Um setor inteiro da cidade tinha sido isolado e os
seus habitantes, perplexos, tinham sido evacuados para hotéis equipados com
pessoal especializado e sem poderem comunicar com ninguém durante a operação.
Nenhum fotógrafo, nenhum repórter dos jornais ou das
televisões tinha tido acesso à cena do assalto até que as autoridades tivessem
a certeza de que os mínimos vestígios de potencial de espionagem tivessem sido
todos retirados para análise”.
Amigos até ao Fim é a denúncia de um mundo onde se instalou a não-verdade, onde é possível
estarmos permanentemente a ingurgitar falsidades, ou ficarmos em estado de
dúvida, é a manipulação sórdida dos noticiários onde as centrais de intoxicação
debitam, hora a hora, as “verdades” que interessam. Porque aquilo que foi a
espionagem é hoje um expediente de envenenamento dos espíritos, tornando
derrisório o primado da liberdade de pensamento, que aqueles dois amigos até ao
fim teimavam em defender, a despeito de muita utopia nos amanhãs que cantam.
John le Carré já era universalmente conhecido desde
que escrevera O Espião Que Veio do Frio e um conjunto de obras que
passaram ao cinema e à televisão, valorizadas pela genialidade do ator Alec
Guinness.
Quando a Guerra Fria acabou, le Carré fez mudança de agulha, observou à sua volta aquele mundo que se compunha e decompunha, com exércitos privados, uma indústria farmacêutica ignóbil, milionários inescrupulosos na venda de armas, o acirramento de conflitos regionais. E mostrou, se dúvidas subsistissem, que era um dos magníficos operadores da escrita à escala mundial. Não sei se Amigos até ao Fim, mas, não posso, a pensar nesta infeção das fake news convido o leitor a embrenhar-se nesta obra-prima, é mesmo de leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
Tanto tempo depois ainda a bater no ceguinho ? A unica coisa boa que os Eua fizeram foi derrubar Saddam. Foi pena não ter sido o regime dos clerigos do Irão. Ou os comunas de Cuba, 70 anos de diradura pq na altura se armaram em bonzinhos. Os cubanos sofrem há 70 anos pq o vizinho do norte ficou a dormir.
ResponderEliminarPois, pois Jorge, mas transformar os talibãs em emirados resolveu-se o problema. Parece que o problema de Cuba é estar muito próximo dos USA e já os topam pelo que têm feito aos vizinhos Haiti, Guatemala, com as cidades divididas por muros bem altos separando ricos e pobres.
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