No ano lectivo de 1957-58, fui nomeado, mediante o voto de obediência,
para o cargo de professor nas Oficinas de São José de Lisboa, colégio da
Congregação Salesiana para alunos internos e externos, onde se ministrava o
curso de admissão ao ensino secundário, o curso preparatório, o curso comercial
e o curso industrial. No próprio dia da chegada, fui chamado ao gabinete do
Padre Prefeito, a fim de me informar sobre os cursos que ia ensinar nesse ano
lectivo. Quando pensava que me poriam a ensinar apenas Português, Francês e
História Universal aos alunos do curso comercial e do curso industrial,
matérias que eu já tinha ensinado noutros colégios salesianos, vejo-me também
responsável pela Matemática do segundo ano do curso preparatório.
Como faltavam ainda umas quatro semanas para o início do ano lectivo, lancei-me
imediatamente a preparar, com a maior diligência todas essas matérias, mormente
a Matemática, dado que nunca tinha ensinado essa disciplina nem gostava dela.
Passada uma semana, vejo-me intimado a comparecer no escritório do Padre
Director, para ouvir dos lábios dele que, em virtude de, inesperadamente, e com
grande pena dele, Director, o padre encarregado do orfeão e da banda, ter sido
destacado para missionário em Macau, eu tinha de desempenhar essas funções.
Perante tais circunstâncias, não tive outro remédio senão aceitar essa penosa
incumbência, embora fizesse saber, com o maior respeito, ao Padre Director que,
quanto ao orfeão, não via qualquer problema, mas que, quanto ao desempenho das
funções de mestre da banda, eu não tinha a mínima competência. À minha objecção
retorquiu o Padre Director, com grande amabilidade, que, dado o meu
conhecimento do solfejo, do piano e do órgão (instrumentos em que eu não
passava de um mísero amador), e, continuou ele, dada também a minha experiência
de tocador de tuba na banda de outro colégio salesiano, não me seria difícil
vir a ser mestre competente de uma banda constituída por cerca de quarenta
elementos.
Num gesto impregnado de simbolismo pedagógico e como que para tornar mais leve
o pesado fardo que me punha sobre os ombros e tornar mais palatável o trago
amargo que me punha nos lábios, o Padre Director colocou-me nas mãos trementes
a partitura, novinha em folha, de uma marcha intitulada Querer é Poder, e
rematou assim a conversa:
- Para que vejas que eu tenho toda a razão para confiar em ti, no teu brio e na
tua força de vontade, recomendo-te que esta seja a marcha com que virás a abrir
todas as actuações da banda nas festas do colégio e em todos os desfiles
cívicos. Toquei-a ao piano e pude verificar que é uma marcha simples, fácil e
bonita, de efeito garantido – concluiu o Reverendo Padre Director.
Proferidas estas palavras, esboçou um breve sorriso, aconselhou-me a implorar a
protecção de Santa Cecília, padroeira da música, desejou-me boa sorte, deu-me a
bênção e entregou-me as chaves da sala de banda.
Triste, apreensivo, como se pode imaginar, dirigi-me à
sala de banda e abri a porta, trepidante. Depois de passar perfuntoriamente os
olhos por todos os instrumentos e por algumas partituras, subi ao pódio e
imaginei a localização dos diferentes naipes da banda, dispostos em semicírculo
e em plano inclinado: na primeira e segunda filas estavam as duas
flautas, a requinta, os primeiros e segundos clarinetes; na terceira fila, o
saxofone soprano e o saxofone alto e os trompetes; na quarta fila, as três
trompas, os três trombones e os dois bombardinos, um em cada extremidade; e na
última fila, a caixa, os ferrinhos, a pandeireta, os pratos, o bombo e os
dois baixos ou tubas, um em cada extremidade.
Seguidamente, abri uma partitura, peguei na batuta,
dei uma resoluta pancadinha na extremidade do pódio para impor silêncio, ergui
os ombros, assumi um ar austero, franzi o sobrolho, olhei pausadamente, com
semblante autoritário, para os cerca de quarenta músicos imaginários, levantei
os dois braços, quase em arco, com as duas mãos à altura dos olhos; depois,
fazendo de conta que íamos tocar a marcha mais conhecida de John Philip Sousa,
Stars and Stripes Forever, executei com a mão direita, a da batuta, dois
compassos em branco e dei sinal de entrada.
Tudo parecia estar a correr a preceito, quando, de
repente, me dei conta de que, mesmo tratando-se de uma marcha que eu sabia de
cor e salteado, estava totalmente perdido, sem saber se íamos repetir um
andamento, se era o momento de dar a melodia aos instrumentos de metal e o
acompanhamento aos instrumentos de sopro ou vice-versa. No meio dessa diabólica
confusão, quase tive um ataque de pânico. Sem saber como nem por quê, estava eu
a arrojar tresloucado a assustada batuta contra a parede, a descer apavorado do
pódio e a correr para a porta da sala de banda, a abri-la com fúria, a fechá-la
à chave e a dirigir-me como um relâmpago ao escritório do Padre Director e a
pousar desvairadamente as chaves da sala de banda sobre a secretária dele.
Ao ver-me nesse deplorável estado, o Padre Director
ofereceu-me um copo de água, pediu-me que respirasse fundo, que acalmasse e que
lhe contasse o que me tinha acontecido. Contei-lhe tudo e, no fim, roguei-lhe
que, por amor de Deus, não me obrigasse a ser responsável pela banda. Ele,
havendo passado rapidamente pela mente e pelos lábios os nomes de todos os
padres, clérigos e coadjutores que nesse ano tinha ao seu serviço nas Oficinas
de São José, disse-me que eu era o único com habilitações musicais suficientes
para desempenhar devidamente esse cargo. Que, com o conhecimento que eu tinha
de música, e com as três semanas que ainda faltavam para o início do ano
lectivo, havia de ver que eu viria a superar essa dificuldade mais aparente que
real. E como eu continuasse a insistir na minha incompetência para o desempenho
desse cargo, ele, numa atitude a traduzir um misto de autoridade e compreensão
humana, limitou-se a colocar-me nas mãos as chaves da sala de banda e a dizer,
entre sério e sorridente, que não o obrigasse a mandar-me em nome do santo voto
de obediência.
Triste como um suspiro, quase a chorar, com enorme
pena do pobre de mim, por me ver obrigado a ter de desempenhar uma função para
que não me sentia minimamente habilitado, fui carpir as minhas mágoas para o
meu escritório.
Ora aconteceu que nesse mesmo dia, por auspiciosa obra
do azar, depois do jantar, deparei inopinadamente com um padre velhinho,
chamado Pedro Vicente Morais, conhecido simplesmente como Padre Morais, que
tinha vindo do Oratório de São José de Évora passar umas semanas nas Oficinas
de São José de Lisboa. Dado que de há muito tempo eu tinha uma grande confiança
nele, como se fosse uma espécie de avô muito querido, modelo de sabedoria e de
bondade, roguei-lhe que me emprestasse um ombro para nele desafogar as minhas
amarguras.
Depois de me ter ouvido, cheio de empatia e simpatia,
limitou-se a dizer, essencialmente, que não me preocupasse: que durante as três
semanas de férias ele me havia de ensinar o suficiente para eu vir a ser um bom
mestre de banda. É que ele não só era um dos maiores peritos em Portugal na
ciência da Radiestesia, quer dizer, especialista em desencantar águas
subterrâneas e vários tipos de minérios, por meio de uma varinha de madeira, em
forma de forquilha, e de um pêndulo metálico, em forma de peão, preso de um
fio, mas possuía também uma considerável formação musical, tendo sido o
fundador e um competentíssimo mestre da banda colegial, no Oratório de São
José, de Évora, durante muitos anos, sabia construir órgãos e era também um dos
raríssimos padres salesianos que dominava bastante bem a composição, a ponto de
fazer arranjos musicais muito meritórios.
A partir do dia seguinte, até ao início do ano
lectivo, com uma paciência de Job, o bom do Padre Morais passou horas e horas
comigo na sala de banda a ensinar-me quase tudo quanto eu necessitava saber
para me desempenhar satisfatoriamente do cargo de director e de maestro da
banda colegial. Tanto assim foi que, por mais de uma vez, quando éramos
convidados a tocar em paradas ou nas procissões da Quaresma, em várias das
paróquias de Lisboa, tais como a de Santo Condestável, a de São Roque e a da
Ajuda, cheguei a ouvir comentários como este, vindos do meio dos milhares de
pessoas que acompanhavam a procissão ou paravam nos passeios das ruas para ver
passar a procissão do Senhor dos Passos:
- Quem me dera saber música como aquele gajo.
Mal imaginavam esses precipitados e francos louvadores
que “aquele gajo”, além das lições providenciais recebidas do bom do Padre
Morais, roubava incontáveis horas ao sono para passá-las na sala de banda,
sentado ao piano, a estudar meticulosamente as partes dos diferentes
instrumentos, para depois, durante os curtos ensaios que o Director Escolar
relutantemente nos concedia, as ensinar de ouvido a vários dos membros da
banda, por eles não saberem solfejo suficiente.
Outro recurso de que me vali para me sair o mais
decentemente possível da minha aventura de mestre de banda à força foi recorrer
aos bons ofícios dos poucos alunos, normalmente os finalistas, que dominavam
relativamente bem os respectivos instrumentos. Como aprendiam com facilidade as
suas partes, por termos um reportório limitadíssimo, ajudavam-me a ensinar, não
só os aprendizes, mas também os alunos que, sendo já músicos efectivos, nunca
chegavam a atingir o nível que lhes permitisse ler devidamente as partes por si
mesmos.
Por falar nos aprendizes, vou referir um episódio que
tenho contado diversas vezes através dos anos, por me parecer que tem uma certa
graça, modéstia à parte.
Além dos elementos efectivos, a banda tinha, como é natural, um número razoável
de aprendizes, destinados a preencher as vagas criadas pelos músicos que, no
final do ano lectivo, concluído o curso, deixavam o colégio e iam para o mundo
do trabalho. Como é natural também, a maior ambição de um aprendiz é atingir o
estatuto de membro efectivo. E como outrossim é natural, na música
instrumental, como em tudo, entram o talento e a arte, tomada aqui arte em
sentido lato, no de prática ou aprendizagem. Ora aconteceu que nesse ano tive
um aprendiz de clarinete, a bondade e a diligência em pessoa, que, apaixonado
por esse instrumento, fazia um esforço inaudito para suprir a falta de talento.
Passava o tempo e, enquanto alguns dos seus colegas chegavam ao ponto de
poderem ser integrados na banda, por ocasião das frequentes actuações, já
durante as festas do colégio, já durante as paradas ou as procissões, ele,
mesmo com toda a boa vontade deste mundo e do outro, não conseguia atingir essa
meta. Com o ar mais humilde que se pode imaginar, de longe em longe, pedia-me
que o deixasse participar numa procissão como clarinetista. Perante esses
pedidos e o seu empenho exemplar na aprendizagem, e, ao mesmo tempo, com receio
de que, tal como às vezes sucedia com outros, ele viesse a desanimar e a
desistir da banda, lembrei-me de recorrer a um estratagema especial para lhe
satisfazer esse compreensível e ardente desejo.
Íamos tocar numa procissão da Quaresma. Como a banda era fraquinha, por razões
óbvias, eu estabeleci uma série de preceitos, a cumprir rigorosamente, por
ocasião das saídas, a fim de poder tirar o melhor partido possível da nossa
penúria: primeiro, exigir que todos os membros da banda levassem a farda
impecavelmente lavada e primorosamente passada a ferro e os sapatos pretos
engraxados a rigor; segundo, pôr o metal dos instrumentos musicais a brilhar,
mercê do trabalho feito na noite anterior ao dia da saída por alguns
voluntários, sob a minha supervisão; terceiro, reiterar, vezes sem conta, que o
melhor que podíamos fazer era pôr a imaginar todos os que nos acompanhavam nos
desfiles e nas procissões que, perante eles, desfilava uma banda competente, ao
reparar no brilho dos instrumentos, no vistoso das fardas, na elegância e no
aprumo do marchar, ao toque rítmico e sonoro da caixa; quarto, proibir
terminantemente que alguém se atrevesse a tocar sequer uma nota desde o momento
em que fossem buscar os instrumentos à sala de banda até ao sinal de entrada
para cada uma das marchas
executadas
Foi alicerçado no quarto e último preceito que me foi
possível recorrer ao seguinte estratagema: colocar algodão em rama entre a
palheta do clarinete e a madeira, para impedir que dele saísse qualquer som,
por mais que o bom do aprendiz soprasse. Chega o momento de arrancar com a
primeira marcha – uma marcha fúnebre e soturnamente funéria, neste caso – e o
nosso aprendiz de clarinete, cheio de orgulho, de garbo e de alegria, por haver
soado finalmente a hora da sua tão suspirada estreia, sopra como todos os
clarinetistas têm de soprar e imagina – e com muito boa razão – que está a
colaborar no sucesso da marcha (e das marchas posteriores), quando, na realidade,
está a cimentar o seu lugar, como clarinetista real, na banda do ano seguinte.
Cronicar a vasta série de episódios relacionados com o
meu estatuto de mestre de banda à força seria uma tarefa muito morosa. Porém,
parece-me edificante e oportuno referir alguns, por neles se poderem compendiar
as principais vicissitudes por que passei no decorrer desse estranho mandato.
De temperamento colérico, segundo o meu mestre de
noviços, pio e fiel devoto de Hipócrates, pai da medicina, e de Galeno, pai dos
quatro humores e dos quatro temperamentos humanos, malgrado os grandes esforços
que fazia para não me irritar demasiado durante os ensaios, às vezes as fífias
e os disparates cometidos por alguns elementos da banda, já por descuido, já
por inépcia, eram de tal maneira enervantes e horripilantes, que eu me sentia
inscientemente impelido a bater com tal força com a batuta no pódio, que ela me
desaparecia das mãos, desfeita em pedaços, e passava, em voo rasante, por cima
das cabeças inocentes dos músicos espantados. Valia-me nessas ocasiões um
trompetista muito imaginoso. Aluno brilhante do curso industrial e aprendiz de
marcenaria, estava sempre munido de uma batuta suplente, para amavelmente me
colocar nas mãos, nessas lamentáveis e imperdoáveis ocasiões de frustração...e
má-criação, da minha parte.
Entretanto, dada a indesejável repetição desse bizarro
fenómeno, um belo dia, quando a batuta, desfeita em pedaços, voou mais uma vez
pelos ares, levanta-se da cadeira um saxofonista, aprendiz de mecânica,
aproxima-se do pódio e, entre as gargalhadas de todos os músicos, a que eu não
pude deixar de associar-me, oferece-me sorridente uma batuta de ferro fundido,
gesto que eu agradeci com uma profunda vénia, uma das poucas coisas que eu
sabia fazer bem, quando estava no pódio, de batuta na mão, diga-se em abono da
verdade. Essa preciosa e exótica dádiva achei-a de tal forma original e
significativa, que, metida numa mala, ao lado de uma linda batuta, feita ao
torno, cheia de floreados, com que o dito e engenhoso aprendiz de marcenaria um
dia me presenteou, ainda hoje me acompanha.
Apesar da sua modéstia, comparada com a da Casa Pia, a
outra única banda colegial de Lisboa, naquele tempo, apraz-me evocar, com
agridoce nostalgia, e mantidas as devidas proporções, três pontos altos vividos
pela banda das Oficinas de São José, sob a minha regência de paupérrimo e
modestíssimo amador.
O primeiro foi o convite oficial feito pelas
autoridades do Governo para a nossa banda contribuir para abrilhantar, em 1959,
o espectáculo organizado no Estádio do Restelo, em homenagem à Princesa
Margaret, da Inglaterra, por ocasião de uma visita oficial a Portugal, durante
seis dias. Embora os grandes aplausos das multidões que encheram o estádio
fossem justamente para o mítico tattoo militar realizado pelos esquadrões a
cavalo e de motos da Guarda Nacional Republicana, a banda das Oficinas de São
José deu um arzinho da sua graça com uma série de marchas ligeiras e foi
respeitosamente aplaudida.
O segundo ponto alto foi a banda ter sido convidada
pela poetisa Fernanda de Castro, viúva de António Ferro, para dar dois
concertos no Jardim da Estrela, de Lisboa, por ocasião da realização das Festas
Nacionais do Mundo Português, por ela organizadas.
Transido de medo por não estarmos à altura das
circunstâncias – tocar em público, num vistoso coreto, para milhares de pessoas
-, a banda acabou por sair-se discretamente bem e ser generosamente aplaudida.
É que, por um daqueles felizes acasos, com que às vezes a sorte bafeja os
pobres mortais, à última hora, quando já estávamos a fazer as afinações, para
dar início ao primeiro concerto, surge-me no coreto, como que por milagre, um
jovem músico, trajando com orgulho a nossa farda e munido de um trompete
dourado, a oferecer-me os seus préstamos.
Antigo aluno das Oficinas de São José, a tocar na Banda da Marinha, esse músico
profissional (e providencial) nada mais teve que fazer senão passar rapidamente
os olhos pelas peças do nosso magro reportório para se habilitar a tocar
devidamente as partes de primeiro trompete. Só me pediu uma coisa: que lhe
deixasse tocar um solo numa das peças, o que implicou um pequeno sacrifício,
por parte do brioso e competente músico da minha banda, indigitado para
desempenhar essa função.
Chega o momento do solo do trompetista, engastado numa
rapsódia de canções populares portuguesas. De pé, à boca do coreto, o solista
apruma-se, respira fundo, enche-se de brio e delicia e arrebata a vastíssima
assistência – e os membros da banda e o maestro também - com a sua deslumbrante
actuação ad libitum.
O terceiro ponto alto da banda foi o concerto dado no Pavilhão de Desportos de
Lisboa, por ocasião de uma efeméride cujo nome não recordo. Sei, porém, que o
anfiteatro estava superlotado e que o concerto foi gravado pela Televisão
Portuguesa, no tempo em que havia apenas um canal, e que, passados uns dias,
foi transmitido para o país inteiro, para júbilo e estímulo dos adolescentes e
jovens músicos amadores da Banda das Oficinas de São José de Lisboa, “de boa memória”.
António Cirurgião
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