terça-feira, 4 de abril de 2023

Mestre da Banda das Oficinas de São José de Lisboa.


 



 

          No ano lectivo de 1957-58, fui nomeado, mediante o voto de obediência, para o cargo de professor nas Oficinas de São José de Lisboa, colégio da Congregação Salesiana para alunos internos e externos, onde se ministrava o curso de admissão ao ensino secundário, o curso preparatório, o curso comercial e o curso industrial. No próprio dia da chegada, fui chamado ao gabinete do Padre Prefeito, a fim de me informar sobre os cursos que ia ensinar nesse ano lectivo. Quando pensava que me poriam a ensinar apenas Português, Francês e História Universal aos alunos do curso comercial e do curso industrial, matérias que eu já tinha ensinado noutros colégios salesianos, vejo-me também responsável pela Matemática do segundo ano do curso preparatório.

         Como faltavam ainda umas quatro semanas para o início do ano lectivo, lancei-me imediatamente a preparar, com a maior diligência todas essas matérias, mormente a Matemática, dado que nunca tinha ensinado essa disciplina nem gostava dela.

         Passada uma semana, vejo-me intimado a comparecer no escritório do Padre Director, para ouvir dos lábios dele que, em virtude de, inesperadamente, e com grande pena dele, Director, o padre encarregado do orfeão e da banda, ter sido destacado para missionário em Macau, eu tinha de desempenhar essas funções. Perante tais circunstâncias, não tive outro remédio senão aceitar essa penosa incumbência, embora fizesse saber, com o maior respeito, ao Padre Director que, quanto ao orfeão, não via qualquer problema, mas que, quanto ao desempenho das funções de mestre da banda, eu não tinha a mínima competência. À minha objecção retorquiu o Padre Director, com grande amabilidade, que, dado o meu conhecimento do solfejo, do piano e do órgão (instrumentos em que eu não passava de um mísero amador), e, continuou ele, dada também a minha experiência de tocador de tuba na banda de outro colégio salesiano, não me seria difícil vir a ser mestre competente de uma banda constituída por cerca de quarenta elementos.

         Num gesto impregnado de simbolismo pedagógico e como que para tornar mais leve o pesado fardo que me punha sobre os ombros e tornar mais palatável o trago amargo que me punha nos lábios, o Padre Director colocou-me nas mãos trementes a partitura, novinha em folha, de uma marcha intitulada Querer é Poder, e rematou assim a conversa:

         - Para que vejas que eu tenho toda a razão para confiar em ti, no teu brio e na tua força de vontade, recomendo-te que esta seja a marcha com que virás a abrir todas as actuações da banda nas festas do colégio e em todos os desfiles cívicos. Toquei-a ao piano e pude verificar que é uma marcha simples, fácil e bonita, de efeito garantido – concluiu o Reverendo Padre Director. 

         Proferidas estas palavras, esboçou um breve sorriso, aconselhou-me a implorar a protecção de Santa Cecília, padroeira da música, desejou-me boa sorte, deu-me a bênção e entregou-me as chaves da sala de banda.

Triste, apreensivo, como se pode imaginar, dirigi-me à sala de banda e abri a porta, trepidante. Depois de passar perfuntoriamente os olhos por todos os instrumentos e por algumas partituras, subi ao pódio e imaginei a localização dos diferentes naipes da banda, dispostos em semicírculo e em plano inclinado: na primeira e segunda filas estavam as  duas flautas, a requinta, os primeiros e segundos clarinetes; na terceira fila, o saxofone soprano e o saxofone alto e os trompetes; na quarta fila, as três trompas, os três trombones e os dois bombardinos, um em cada extremidade; e na última fila, a caixa, os ferrinhos, a  pandeireta, os pratos, o bombo e os dois baixos ou tubas, um em cada extremidade.

Seguidamente, abri uma partitura, peguei na batuta, dei uma resoluta pancadinha na extremidade do pódio para impor silêncio, ergui os ombros, assumi um ar austero, franzi o sobrolho, olhei pausadamente, com semblante autoritário, para os cerca de quarenta músicos imaginários, levantei os dois braços, quase em arco, com as duas mãos à altura dos olhos; depois, fazendo de conta que íamos tocar a marcha mais conhecida de John Philip Sousa, Stars and Stripes Forever, executei com a mão direita, a da batuta, dois compassos em branco e dei sinal de entrada.

Tudo parecia estar a correr a preceito, quando, de repente, me dei conta de que, mesmo tratando-se de uma marcha que eu sabia de cor e salteado, estava totalmente perdido, sem saber se íamos repetir um andamento, se era o momento de dar a melodia aos instrumentos de metal e o acompanhamento aos instrumentos de sopro ou vice-versa. No meio dessa diabólica confusão, quase tive um ataque de pânico. Sem saber como nem por quê, estava eu a arrojar tresloucado a assustada batuta contra a parede, a descer apavorado do pódio e a correr para a porta da sala de banda, a abri-la com fúria, a fechá-la à chave e a dirigir-me como um relâmpago ao escritório do Padre Director e a pousar desvairadamente as chaves da sala de banda sobre a secretária dele.

Ao ver-me nesse deplorável estado, o Padre Director ofereceu-me um copo de água, pediu-me que respirasse fundo, que acalmasse e que lhe contasse o que me tinha acontecido. Contei-lhe tudo e, no fim, roguei-lhe que, por amor de Deus, não me obrigasse a ser responsável pela banda. Ele, havendo passado rapidamente pela mente e pelos lábios os nomes de todos os padres, clérigos e coadjutores que nesse ano tinha ao seu serviço nas Oficinas de São José, disse-me que eu era o único com habilitações musicais suficientes para desempenhar devidamente esse cargo. Que, com o conhecimento que eu tinha de música, e com as três semanas que ainda faltavam para o início do ano lectivo, havia de ver que eu viria a superar essa dificuldade mais aparente que real. E como eu continuasse a insistir na minha incompetência para o desempenho desse cargo, ele, numa atitude a traduzir um misto de autoridade e compreensão humana, limitou-se a colocar-me nas mãos as chaves da sala de banda e a dizer, entre sério e sorridente, que não o obrigasse a mandar-me em nome do santo voto de obediência.

Triste como um suspiro, quase a chorar, com enorme pena do pobre de mim, por me ver obrigado a ter de desempenhar uma função para que não me sentia minimamente habilitado, fui carpir as minhas mágoas para o meu escritório.

Ora aconteceu que nesse mesmo dia, por auspiciosa obra do azar, depois do jantar, deparei inopinadamente com um padre velhinho, chamado Pedro Vicente Morais, conhecido simplesmente como Padre Morais, que tinha vindo do Oratório de São José de Évora passar umas semanas nas Oficinas de São José de Lisboa. Dado que de há muito tempo eu tinha uma grande confiança nele, como se fosse uma espécie de avô muito querido, modelo de sabedoria e de bondade, roguei-lhe que me emprestasse um ombro para nele desafogar as minhas amarguras. 

Depois de me ter ouvido, cheio de empatia e simpatia, limitou-se a dizer, essencialmente, que não me preocupasse: que durante as três semanas de férias ele me havia de ensinar o suficiente para eu vir a ser um bom mestre de banda. É que ele não só era um dos maiores peritos em Portugal na ciência da Radiestesia, quer dizer, especialista em desencantar águas subterrâneas e vários tipos de minérios, por meio de uma varinha de madeira, em forma de forquilha, e de um pêndulo metálico, em forma de peão, preso de um fio, mas possuía também uma considerável formação musical, tendo sido o fundador e um competentíssimo mestre da banda colegial, no Oratório de São José, de Évora, durante muitos anos, sabia construir órgãos e era também um dos raríssimos padres salesianos que dominava bastante bem a composição, a ponto de fazer arranjos musicais muito meritórios.  

A partir do dia seguinte, até ao início do ano lectivo, com uma paciência de Job, o bom do Padre Morais passou horas e horas comigo na sala de banda a ensinar-me quase tudo quanto eu necessitava saber para me desempenhar satisfatoriamente do cargo de director e de maestro da banda colegial. Tanto assim foi que, por mais de uma vez, quando éramos convidados a tocar em paradas ou nas procissões da Quaresma, em várias das paróquias de Lisboa, tais como a de Santo Condestável, a de São Roque e a da Ajuda, cheguei a ouvir comentários como este, vindos do meio dos milhares de pessoas que acompanhavam a procissão ou paravam nos passeios das ruas para ver passar a procissão do Senhor dos Passos:

- Quem me dera saber música como aquele gajo.  

Mal imaginavam esses precipitados e francos louvadores que “aquele gajo”, além das lições providenciais recebidas do bom do Padre Morais, roubava incontáveis horas ao sono para passá-las na sala de banda, sentado ao piano, a estudar meticulosamente as partes dos diferentes instrumentos, para depois, durante os curtos ensaios que o Director Escolar relutantemente nos concedia, as ensinar de ouvido a vários dos membros da banda, por eles não saberem solfejo suficiente.

Outro recurso de que me vali para me sair o mais decentemente possível da minha aventura de mestre de banda à força foi recorrer aos bons ofícios dos poucos alunos, normalmente os finalistas, que dominavam relativamente bem os respectivos instrumentos. Como aprendiam com facilidade as suas partes, por termos um reportório limitadíssimo, ajudavam-me a ensinar, não só os aprendizes, mas também os alunos que, sendo já músicos efectivos, nunca chegavam a atingir o nível que lhes permitisse ler devidamente as partes por si mesmos.

Por falar nos aprendizes, vou referir um episódio que tenho contado diversas vezes através dos anos, por me parecer que tem uma certa graça, modéstia à parte.

          Além dos elementos efectivos, a banda tinha, como é natural, um número razoável de aprendizes, destinados a preencher as vagas criadas pelos músicos que, no final do ano lectivo, concluído o curso, deixavam o colégio e iam para o mundo do trabalho. Como é natural também, a maior ambição de um aprendiz é atingir o estatuto de membro efectivo. E como outrossim é natural, na música instrumental, como em tudo, entram o talento e a arte, tomada aqui arte em sentido lato, no de prática ou aprendizagem. Ora aconteceu que nesse ano tive um aprendiz de clarinete, a bondade e a diligência em pessoa, que, apaixonado por esse instrumento, fazia um esforço inaudito para suprir a falta de talento. Passava o tempo e, enquanto alguns dos seus colegas chegavam ao ponto de poderem ser integrados na banda, por ocasião das frequentes actuações, já durante as festas do colégio, já durante as paradas ou as procissões, ele, mesmo com toda a boa vontade deste mundo e do outro, não conseguia atingir essa meta. Com o ar mais humilde que se pode imaginar, de longe em longe, pedia-me que o deixasse participar numa procissão como clarinetista. Perante esses pedidos e o seu empenho exemplar na aprendizagem, e, ao mesmo tempo, com receio de que, tal como às vezes sucedia com outros, ele viesse a desanimar e a desistir da banda, lembrei-me de recorrer a um estratagema especial para lhe satisfazer esse compreensível e ardente desejo.

        Íamos tocar numa procissão da Quaresma. Como a banda era fraquinha, por razões óbvias, eu estabeleci uma série de preceitos, a cumprir rigorosamente, por ocasião das saídas, a fim de poder tirar o melhor partido possível da nossa penúria: primeiro, exigir que todos os membros da banda levassem a farda impecavelmente lavada e primorosamente passada a ferro e os sapatos pretos engraxados a rigor; segundo, pôr o metal dos instrumentos musicais a brilhar, mercê do trabalho feito na noite anterior ao dia da saída por alguns voluntários, sob a minha supervisão; terceiro, reiterar, vezes sem conta, que o melhor que podíamos fazer era pôr a imaginar todos os que nos acompanhavam nos desfiles e nas procissões que, perante eles, desfilava uma banda competente, ao reparar no brilho dos instrumentos, no vistoso das fardas, na elegância e no aprumo do marchar, ao toque rítmico e sonoro da caixa; quarto, proibir terminantemente que alguém se atrevesse a tocar sequer uma nota desde o momento em que fossem buscar os instrumentos à sala de banda até ao sinal de entrada para cada uma das marchas executadas        

Foi alicerçado no quarto e último preceito que me foi possível recorrer ao seguinte estratagema: colocar algodão em rama entre a palheta do clarinete e a madeira, para impedir que dele saísse qualquer som, por mais que o bom do aprendiz soprasse. Chega o momento de arrancar com a primeira marcha – uma marcha fúnebre e soturnamente funéria, neste caso – e o nosso aprendiz de clarinete, cheio de orgulho, de garbo e de alegria, por haver soado finalmente a hora da sua tão suspirada estreia, sopra como todos os clarinetistas têm de soprar e imagina – e com muito boa razão – que está a colaborar no sucesso da marcha (e das marchas posteriores), quando, na realidade, está a cimentar o seu lugar, como clarinetista real, na banda do ano seguinte.

Cronicar a vasta série de episódios relacionados com o meu estatuto de mestre de banda à força seria uma tarefa muito morosa. Porém, parece-me edificante e oportuno referir alguns, por neles se poderem compendiar as principais vicissitudes por que passei no decorrer desse estranho mandato.

De temperamento colérico, segundo o meu mestre de noviços, pio e fiel devoto de Hipócrates, pai da medicina, e de Galeno, pai dos quatro humores e dos quatro temperamentos humanos, malgrado os grandes esforços que fazia para não me irritar demasiado durante os ensaios, às vezes as fífias e os disparates cometidos por alguns elementos da banda, já por descuido, já por inépcia, eram de tal maneira enervantes e horripilantes, que eu me sentia inscientemente impelido a bater com tal força com a batuta no pódio, que ela me desaparecia das mãos, desfeita em pedaços, e passava, em voo rasante, por cima das cabeças inocentes dos músicos espantados. Valia-me nessas ocasiões um trompetista muito imaginoso. Aluno brilhante do curso industrial e aprendiz de marcenaria, estava sempre munido de uma batuta suplente, para amavelmente me colocar nas mãos, nessas lamentáveis e imperdoáveis ocasiões de frustração...e má-criação, da minha parte.

Entretanto, dada a indesejável repetição desse bizarro fenómeno, um belo dia, quando a batuta, desfeita em pedaços, voou mais uma vez pelos ares, levanta-se da cadeira um saxofonista, aprendiz de mecânica, aproxima-se do pódio e, entre as gargalhadas de todos os músicos, a que eu não pude deixar de associar-me, oferece-me sorridente uma batuta de ferro fundido, gesto que eu agradeci com uma profunda vénia, uma das poucas coisas que eu sabia fazer bem, quando estava no pódio, de batuta na mão, diga-se em abono da verdade. Essa preciosa e exótica dádiva achei-a de tal forma original e significativa, que, metida numa mala, ao lado de uma linda batuta, feita ao torno, cheia de floreados, com que o dito e engenhoso aprendiz de marcenaria um dia me presenteou, ainda hoje me acompanha.

Apesar da sua modéstia, comparada com a da Casa Pia, a outra única banda colegial de Lisboa, naquele tempo, apraz-me evocar, com agridoce nostalgia, e mantidas as devidas proporções, três pontos altos vividos pela banda das Oficinas de São José, sob a minha regência de paupérrimo e modestíssimo amador.

O primeiro foi o convite oficial feito pelas autoridades do Governo para a nossa banda contribuir para abrilhantar, em 1959, o espectáculo organizado no Estádio do Restelo, em homenagem à Princesa Margaret, da Inglaterra, por ocasião de uma visita oficial a Portugal, durante seis dias. Embora os grandes aplausos das multidões que encheram o estádio fossem justamente para o mítico tattoo militar realizado pelos esquadrões a cavalo e de motos da Guarda Nacional Republicana, a banda das Oficinas de São José deu um arzinho da sua graça com uma série de marchas ligeiras e foi respeitosamente aplaudida.   

O segundo ponto alto foi a banda ter sido convidada pela poetisa Fernanda de Castro, viúva de António Ferro, para dar dois concertos no Jardim da Estrela, de Lisboa, por ocasião da realização das Festas Nacionais do Mundo Português, por ela organizadas.

Transido de medo por não estarmos à altura das circunstâncias – tocar em público, num vistoso coreto, para milhares de pessoas -, a banda acabou por sair-se discretamente bem e ser generosamente aplaudida. É que, por um daqueles felizes acasos, com que às vezes a sorte bafeja os pobres mortais, à última hora, quando já estávamos a fazer as afinações, para dar início ao primeiro concerto, surge-me no coreto, como que por milagre, um jovem músico, trajando com orgulho a nossa farda e munido de um trompete dourado, a oferecer-me os seus préstamos.

           Antigo aluno das Oficinas de São José, a tocar na Banda da Marinha, esse músico profissional (e providencial) nada mais teve que fazer senão passar rapidamente os olhos pelas peças do nosso magro reportório para se habilitar a tocar devidamente as partes de primeiro trompete. Só me pediu uma coisa: que lhe deixasse tocar um solo numa das peças, o que implicou um pequeno sacrifício, por parte do brioso e competente músico da minha banda, indigitado para desempenhar essa função.

Chega o momento do solo do trompetista, engastado numa rapsódia de canções populares portuguesas. De pé, à boca do coreto, o solista apruma-se, respira fundo, enche-se de brio e delicia e arrebata a vastíssima assistência – e os membros da banda e o maestro também - com a sua deslumbrante actuação ad libitum.

          O terceiro ponto alto da banda foi o concerto dado no Pavilhão de Desportos de Lisboa, por ocasião de uma efeméride cujo nome não recordo. Sei, porém, que o anfiteatro estava superlotado e que o concerto foi gravado pela Televisão Portuguesa, no tempo em que havia apenas um canal, e que, passados uns dias, foi transmitido para o país inteiro, para júbilo e estímulo dos adolescentes e jovens músicos amadores da Banda das Oficinas de São José de Lisboa, “de boa memória”. 


                                                                             António Cirurgião


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