A obra intitula-se Manual do Bom Cidadão, Para
Compreender e Resistir à Cultura do Cancelamento, o seu autor é Jorge Soley
Climent, professor universitário e com ativismo em várias causas, Publicações
D. Quixote, 2023. O título é chamativo, e o autor abre o seu ensaio dizendo que
vivemos tempos em que o pasmo se torna rotina, e pronto exemplifica:
“Professores com processos disciplinares por ensinar que o sexo é determinado
por um par de cromossomas, contas do Twitter suspensas por referirem que a
relva é verde, violadores condenados que dizem ser mulheres para os
transferirem para uma prisão feminina onde violam umas quantas reclusas…” Será
que enlouquecemos todos? O autor diz que não: “Estamos agora a assistir à
deflagração de algo laboriosamente preparado, algo que vem de longe.” E dá-nos
a sua interpretação de como se constituiu esta nossa era do politicamente
correto, apresenta alguns autores que abordam as situações paradoxais de
minorias ativas, refere clássicos que denunciaram o totalitarismo comunista,
vem um pouco mais atrás aos pensadores da Escola de Frankfurt que geraram uma
Teoria Crítica que apontava para a demolição da sociedade, cita-se o inevitável
Marx, entra em cena Marcuse, que ganhou fama e algum proveito na crise de maio
de 1968, não podia faltar Mao Tsé-Tung e a sua Revolução Cultural, tudo para
derrubar e construir uma nova ordem e até o pensador italiano António Gramsci
tem direito à palavra, com a sua previsão de que é preciso trabalhar para uma
nova cultura que substitua a velha. Em nenhuma circunstância Jorge Soley
explica os fundamentos deste ordenamento para se chegar a este tempo em que
minorias ativas pugnam a favor da demolição do racionalismo, dos valores
solidários, e procura dar-nos um quadro caleidoscópico destas movimentações
onde estarão presentes a identidade de género, o racismo, a revolução trans, a
perseguição àqueles que defendem o direito de pensar livremente e aceitar as
regras do senso comum, tudo tem que ser inclusão, identidade de género, o
politicamente correto.
Admito que Jorge Soley acredite piamente que a sua
escolha de pensadores que levaram à criação da cultura do cancelamento possua evidência
científica. Ora, pensar é divergir. E um filósofo francês, Gilles Lipovetsky,
que publicou em 2004 O Crepúsculo do Dever – A Ética Indolor dos Novos
Tempos Democráticos, Publicações D. Quixote, já levantara exatamente esta
questão na sua análise: moral laica, acabou a época do dever, vivemos numa nova
ética nesta sociedade do vazio, do narcisismo, da negação da existência de
significados estáveis; as nossas sociedades contemporâneas movem-se numa perda
de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas. Lipovetsky
escreve mesmo: “A era da felicidade das massas celebra a individualidade livre,
privilegia a comunicação e multiplica as escolhas e as opções”; e, mais
adiante: “A cultura da felicidade ‘leve’ induz uma ansiedade crónica de massa,
mas faz desaparecer a culpabilidade moral.”
O filósofo
trabalha a sua análise de sociedade pós-industrial e de maneira alguma remete
para o esquecimento o conceito de “pós-modernidade”. Todo este universo de
transformações engendra novos estilos de vida e a restruturação das nossas
escalas de valores. Lê-se Jorge Soley e fica-se com a ideia de cultura do
cancelamento mistura alhos com bugalhos: técnicas de manipulação, a
transformação da discordância em discurso de ódio, a multiplicação dos assassinatos
de caráter nas redes sociais, tempos em que o poder político tem medo de se
mostrar firme, em que o Twitter ou o Facebook rejeitaram dar a palavra a Trump,
à mistura com a eutanásia e o aborto, temas que são muito caros a Jorge Soley,
ele é patrono da Fundação Pró-Vida da Catalunha.
Aqui e acolá o autor encontra tremendas analogias entre
estes próceres da cultura do cancelamento e as práticas comunistas. Haverá,
segundo ele, uma conspiração em curso para gerar um terramoto da nossa cultura,
há já colégios a queimar ou destruir exemplares de livros das suas bibliotecas
escolares, a iconoclastia é mesmo isso, fazer tábua rasa do passado, destruir
monumentos que possam sugerir racismo, colonialismo, religião. É bem verdade
que o nosso tempo também se rege por hesitações, algumas delas permanentemente
incendiadas, e ele fala nas pessoas de origem hispano-americana que vivem nos
EUA, questionando se devem ser tratados por hispânicos ou latinos; há uma
minoria de 5% de inquiridos que concordam em ser designados por Latinx, e uma
conta satírica no Twitter aproveitou para dizer que os restantes 95% sofrem de
racismo interiorizado e deveriam ser classificados como brancos. Alega o autor
que o problema posto pela Teoria Crítica da Raça define implicitamente qualquer
bom resultado social como uma coisa própria dos brancos. É evidente que um
conjunto de instituições entra neste jogo do politicamente correto, será o caso
da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood que tem novas
normas desde 2020, traduzem-se em critérios que os filmes devem cumprir para
serem considerados elegíveis na categoria de Melhor Filme, por exemplo: pelo
menos um dos atores principais ou secundários significativos deve pertencer a
um grupo social ou étnico infra representado; pelo menos 30% de todos os atores
em papéis secundários devem pertencer a pelo menos dois dos seguintes grupos
sub-representados: mulheres, grupo racial ou étnico, LGBTQ+, pessoas com
incapacidades cognitivas ou físicas ou surdas. O mínimo que se pode dizer é que
este conceito normativo é idiota e anda fora da história.
Jorge Soley detém-se na revolução trans, e questiona como
é que é possível desligar género da biologia, e caricatura que na ideologia de
género, uma pessoa pode levantar-se sendo um aborrecido cisgénero, passar a
gender queer à hora do almoço, transsexual ao lanche, andrógino ao jantar e
deitar-se como cisgénero. E dá exemplos de fanatismo, caso de uma inglesa que
foi exonerada do seu trabalho por exprimir a sua convicção de que, falando em
termos biológicos, por muita autoperceção que se tenha, uma mulher continua a
ser uma mulher embora se declare homem. O que a levou a ser acusada de
transfobia e despedida do seu emprego. A autora de Harry Potter, J. K. Rowling,
também anda metida em apuros, acusada de ser transfóbica.
É evidente que o somatório destes casos nos impede dizer
que se anda a fazer uma tempestade num copo de água: merece a maior as
ponderações o pedido que a ideologia trans faz de abrir as prisões de mulheres
a qualquer prisioneiro que se declare mulher. Como igualmente merece toda a
prudência o que se está a passar no desporto feminino.
Gerou-se, pois, o imperativo de ver com novos olhos estas
arremetidas do politicamente correto e o seu fervor sectário, estas
manifestações de mentiras merecem objeção e discussão, nenhum de nós pode ficar
à margem destes conflitos e controvérsias que podem, em última instância, minar
a base da coesão.
Obra a ler com muitas reticências.
Mário Beja Santos
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