Falar em pormenor da
minha participação no processo revolucionário português desencadeado pelo golpe
de estado de 25 de Abril de 1974 é difícil, em virtude da gravidade e melindrosa
sensibilidade da matéria, em virtude da complexidade e da extensão dessa participação,
e, sobretudo, em virtude da escassez de documentação pertinente (sim: tive
comigo essa documentação, mas, por cautela e a conselho de coconspiradores,
que se diziam superiormente informados,
fui praticamente impelido a destruí-la, o que hoje sinceramente lamento). Em
vista disso, tocar-se-á apenas naqueles aspectos que, em meu modesto entender,
parecem revestir maior relevância, para além de estarem mais profunda e
indelevelmente gravados na memória.
E, sem mais preâmbulos, vamos ao relato.
Animal político, português da
diáspora, sempre com a imagem da velha Pátria entranhada na mente e no coração,
há muito que me acostumara a despertar ao som do noticiário transmitido pela
rádio, especificamente pela emissora de Hartford da NPR (National Public Radio).
E foi ao “som do noticiário transmitido pela rádio”, no meu “sempre velho e
sempre novo” Grundig, o primeiro objecto de algum valor e muita estimação que
comprei nos Estados Unidos, juntamente com a Enciclopédia Britânica, em Inglês, que, na manhã de 25 de Abril de
1974, despertei, no meu apartamento de Storrs, no Estado de Connecticut. E o
que ouvi pôs-me em delírio. Um grupo de jovens capitães, dizia o locutor, sem
derramar uma gota de sangue, derrubara o governo ditatorial de Marcello Caetano
(e de Salazar, naturalmente), com quarenta e oito vagarosos, penosos e pesados
anos de duração, e prometera solenemente implantar um regime democrático em
Portugal.
Ouvida a auspiciosa notícia, sentei-me
ao piano e toquei A Portuguesa, com a
maior emoção. Em seguida, peguei do telefone e chamei o Dr. Adriano Seabra Veiga,
meu amigo, meu médico e Cônsul Honorário de Portugal, em Waterbury, estado de Connecticut,
e, ébrios de orgulho, celebrámos com lágrimas de alegria a libertação de
Portugal. Nas aulas desse dia, a primeira coisa que eu dizia aos meus alunos é
que Portugal, o país que me dera o berço, era finalmente uma nação livre. E nos
corredores e nos escritórios dizia a mesma coisa aos meus colegas.
No dia seguinte, sabendo da atenção e
da assiduidade com que eu sempre tinha acompanhado a política portuguesa, desde
que fora contratado para professor de Espanhol e de Português, na Universidade
de Connecticut, em Setembro de 1969, fui convidado pelos dois principais
jornais da capital do Estado de Connecticut - The Hartford Times e
The
Hartford Courant - para lhes dar entrevistas sobre a chamada
"Revolução dos Cravos", em Portugal, entrevistas em que manifestei o
meu júbilo inenarrável por um acontecimento que eu tão ardentemente desejara e
por que tanto tempo ansiosamente esperara e suspirara.
Dizer
que foi com o maior entusiasmo e intensidade que passei a viver a revolução
portuguesa é desnecessário. Todos os dias assistia aos noticiários
internacionais da televisão e todos os dias lia The New York Times e
comprava com a maior regularidade os jornais portugueses que chegavam pela TAP
aos Estados Unidos no próprio dia em que eram publicados, dada a diferença de
cinco horas entre Portugal e a costa leste dos Estados Unidos, onde eu vivia e
continuo a viver. E, embora não tivesse planos para me deslocar nesse Verão a
Portugal, a primeira coisa que fiz foi telefonar a uma agência de viagens e
marcar passagem de avião para o dia a seguir à conclusão dos exames finais do
segundo semestre na minha universidade.
Os exames acabaram, as provas foram
corrigidas, as notas foram dadas e eu tomei o primeiro avião da TAP a caminho
de Lisboa, onde aterrei no dia 22 de Maio de 1974 e donde regressei aos Estados
Unidos no dia 5 de Julho.
Chegado ao aeroporto da Portela, a
primeira coisa que fiz foi procurar um cravo vermelho. E como, para surpresa e
desilusão minha, não havia cravos à venda no aeroporto, ao contrário do que as
notícias que me chegavam diariamente pela imprensa, pela rádio e pela televisão,
me tinham induzido a crer, dirigi-me a um soldado fardado e pedi-lhe que
fizesse o favor de me presentear com o cravo que ele tinha espetado na ponta da
baioneta. E o soldado deu-me o cravo, com um sorriso nos lábios, gesto que eu
agradeci e retribuí com idêntico sorriso.
De cravo vermelho na lapela do casaco,
saí do aeroporto e tomei um táxi. Quando o motorista me perguntou pelo destino,
eu disse-lhe que se dirigisse ao Marquês de Pombal e que daí me levasse até ao
fim da Avenida da Liberdade. Uma vez lá chegados, o motorista perguntou-me onde
queria que me deixasse, ao que eu respondi que subisse a Avenida da Liberdade e
que depois me levasse ao Campo Grande.
Ao acabar de proferir estas palavras,
o motorista de táxi, meio perplexo, olhou para mim de uma forma estranha e
perguntou-me se eu tinha muito dinheiro para desperdiçar. Respondi-lhe que não
e expliquei-lhe a razão por que tinha descido e subido a Avenida da Liberdade.
Tinha esperado durante tantos anos pela libertação de Portugal, que queria
celebrá-la simbolicamente, apenas chegado ao meu país de origem, país que
trazia sempre gravado na mente e no coração, mesmo que tivesse optado pela aquisição
da nacionalidade americana, acontecida no primeiro de Maio de 1967, por
conveniências cívicas e profissionais.
Após haver passado uns momentos com minha
irmã, filha da caridade, no seu convento, Casa Central de São Vicente de Paula,
na Avenida Craveiro Lopes, tomei um táxi para o Sabugo, uma pequena aldeia
entre Belas e Pero Pinheiro, do concelho de Sintra, onde vivia um irmão meu,
com a esposa, os três filhos e a minha mãe. A todos encontrei em casa, com
excepção de meu irmão, que se encontrava preso no Forte-Prisão de Caxias, desde
o dia 26 de Abril.
Não constituiu para mim grande
surpresa o ver que a apreensão de minha mãe e de minha cunhada pela sorte de
meu irmão não era tão grande como seria de esperar, noutras circunstâncias. É
que elas, da mesma maneira que eu e o povo português, em geral, tinham sido
levadas a crer, a julgar pela habilidosa e manhosa propaganda de que
diariamente se faziam eco os meios de comunicação social, ferreamente
manipulados pelos mandarins do novo regime, que se tratava de uma espécie de
estado de asilo político para altos funcionários públicos, legionários,
ministros, secretários e subsecretários de estado, altas patentes militares e
grandes empresários, até ao momento, que surgiria num futuro muito próximo,
dizia-se falsa e falaciosamente à boca cheia, através de uma comunicação social
controlada e censurada, em que se evaporasse definitivamente uma certa fúria
popular contra esses e outros servidores do velho regime político.
Tratava-se no fundo, como me tinha
sido dito pelos novos donos do poder, e como voltaria a ser-me frequentemente
repetido, no futuro, de proteger esses cidadãos contra possíveis represálias por
parte de meia dúzia de fanáticos e de energúmenos, maldosamente atiçados em
surdina por elementos do PCP (Partido Comunista Português) e de outros partidos
políticos radicais de esquerda e por muitos representantes marxistas do MFA
(Movimento das Forças Armadas).
Após o almoço, minha mãe, minha
cunhada, meus sobrinhos e eu dirigimo-nos ao Forte-Prisão de Caxias, para ver
se conseguíamos visitar o meu irmão. Que não era possível: que nesse dia não
havia visitas; que os prisioneiros estavam de quarentena - foi-nos dito por um
militar fardado, barbudo, guedelhudo e de metralhadora em punho, postado
desleixada e preguiçosamente ao lado de um tanque carrancudo e ameaçador, a uns
bons metros do portão do Forte-Prisão.
Mediante tal resposta, comecei por
dizer que tinha chegado dos Estados Unidos, na manhã desse mesmo dia, com uma
única finalidade: a de visitar meu irmão na prisão. E como o militar ainda
continuasse a dizer-me que não era possível efectuar visitas nesse dia, tirei
do bolso dois recortes de jornal, publicados na cidade de Hartford, capital do
Estado de Connecticut, nos Estados Unidos, com entrevistas minhas, dadas no
segundo dia a seguir à revolução, no dia 26 de Abril, portanto, como foi
referido anteriormente.
Quando verificaram que nessas
entrevistas eu celebrava em termos superlativamente encomiásticos a
"Revolução dos Cravos" (o título de uma das entrevistas era assim:
"The most beautiful coup d'état of
the century"), os zelosos e fanáticos guardiães dos carcereiros e dos
encarcerados do Forte-Prisão de Caxias, apearam-se momentaneamente do pedestal em
que se tinham alcandorado, retiraram todas as objecções e, a título de
excepção, permitiram-me, assim como a toda a minha família, uma rápida visita a
meu irmão.
Depois de termos passado por entre
grades e soldados barbudos e guedelhudos, armados de iradas metralhadoras,
chegámos a uma sala onde nos mandaram esperar. Passados momentos, acompanhado
de dois soldados, também fortemente armados, chegou meu irmão. Separavam-nos
espessas e ameaçadoras grades de ferro e grossos vidros, à prova de bala, e
tornava-se impossível abraçarmo-nos. Mutuamente fizemos o gesto do abraço
fraterno. E eu, ingenuamente, e na melhor boa fé, dei-lhe a entender, por
gestos, que lhe queria oferecer o cravo que levara comigo, mas que não sabia
como poderia dar-lho. Lembrei-me então que poderia pedir a um soldado que
tivesse a bondade de lho entregar por mim. Fiz esse pedido e o soldado entrou
no recinto em que se encontrava meu irmão e entregou-lhe o cravo. E a visita
terminou, decorridos escassos e fugitivos minutos.
Essa visita foi o doloroso prelúdio de
outras visitas, durante o resto dessa minha estadia em Portugal e durante outras
futuras estadias, por ocasião das férias de Natal e de verão, visitas que
viriam a mudar de destino, que não de finalidade, à medida que meu irmão andou,
como outros prisioneiros políticos portugueses, de Pilatos para Caifás, quer
dizer, de prisão para prisão, passando do Forte-Prisão de Caxias para a
Penitenciária de Lisboa, da Penitenciária de Lisboa para o Forte-Prisão de
Peniche, do Forte-Prisão de Peniche para o Estabelecimento Prisional de
Monsanto, e do Estabelecimento Prisional de Monsanto finalmente para a
liberdade, depois de um julgamento perfuntório, com louvores do juiz, uns vinte
e oito meses mais tarde, após o encarceramento. Encarceramento puramente
discricionário, facto de que eu - e todos os que tivessem olhos para ver -
viria a ter provas irrefutáveis, à medida que o tempo passava.
Foi por ser testemunha ocular desse
procedimento, por parte dos vários governos que se foram formando e caindo, que
eu comecei a repensar a Revolução de Abril e que fui concluindo, pouco a pouco,
com demasiada lentidão, infelizmente, devido à minha proverbial ingenuidade, que
não era essa a revolução com que eu poderia continuar a identificar-me, com o
entusiasmo e o fervor com que me identificara com ela nos primeiros tempos. Si parva
licet componere magnis (Se é lícito comparar as coisas pequenas com as
coisas grandes), também eu diria, amargurado e triste, com Ortega y Gasset,
perante o malogro que foi a Segunda República Espanhola (1931-1939), por cujo
advento ele valente e denodadamente pugnara: “no es esto, no es esto.”
Tinha eu regressado aos Estados Unidos
e meu irmão continuava na prisão, à espera de uma acusação formal que nunca
chegava, porque afinal não existia causa-crime para se poder fazer essa
acusação.
Um belo dia, por fins de Novembro de
1974, resolvi escrever uma carta ao Presidente da República Portuguesa, já
então o General Costa Gomes, pedindo-lhe que mandasse proceder ao julgamento de
meu irmão, se achava que ele tinha cometido algum crime, ou então que o
mandasse pôr em liberdade. Era assim que se agia nos países civilizados e
genuinamente democráticos - dizia eu nessa carta. E era assim que estava
exarado na Carta das Nações Unidas, de que Portugal galhardamente se orgulhava
de ser um dos países signatários, a partir de 1955.
O tempo passava e de Lisboa não
chegava qualquer resposta à minha carta. E foi assim que, tendo sido convidado
pelo Embaixador de Portugal às Nações Unidas, Professor Veiga Simão, e pelo
Cônsul Honorário de Portugal, em Waterbury, a representar a comunidade
luso-americana do meu Estado, Connecticut, por ocasião do discurso do
Presidente de Portugal, General Costa Gomes, nas Nações Unidas e da recepção
dada por ele à comunidade portuguesa nos Estados Unidos, no Hotel Astoria de
Nova Iorque, levei comigo uma cópia dessa carta e, no momento em que o
cumprimentei, fiz questão de lha mostrar, de lhe dizer por alto do que se
tratava e depositá-la nas mãos de um dos seus assessores. Só passados uns três
meses é que recebi uma resposta a essa carta, do punho de um tal Capitão Geada.
Resposta muito vaga, pelo que se referia à sorte de meu irmão, prisioneiro
político, mas muito concreta pelo que se referia ao meu empenho pelo triunfo da
revolução portuguesa, como constava dos recortes de entrevistas dadas por mim a
prestigiosos jornais dos Estados Unidos, recortes que eu tinha enviado, em
anexo à cópia da carta que escrevera ao Presidente da República Portuguesa,
General Costa Gomes.
António Cirurgião
Tinha uns 6 anos em 1974 e tirando o afastamento forçado dos meus pais, que regressariam de África pouco depois, pouco me disse o 25 abril. Hoje sinto me perfeitamente informado sobre o assunto, pois vi documentarios filmes entrevistas li livros biografias etc. Se tivesse que retratar o 25 abril num pequeno postal escolheria o documentário televisivo que está no youtube chamado A enxada é da comprativa , assim mesmo em tom jocoso. Em poucos minutos temos a caricatura d loucura do prec com um comissario politico do pcp no Alentejo, a tentar convencer um agricultor a entregar a sua enxada à cooperativa. Uma perfeita loucura só possivel porque o regime estava moribundo. Hoje o regime está podre e tresanda . Vamos ver o que vai acontecer.
ResponderEliminarSempre um prazer enorme lê-lo, caro Cirurgião!
ResponderEliminarPelos vistos, muitos imaginam as revoluções com mudanças de regime como uma cerimónia protocolar. O máximo que se conseguiu nesse ideal, até agora, foi em Portugal com a revolução do 25 de abril. Saneamentos, que vieram a ser revertidos, prisões de figuras ligadas ao regime, por algum tempo, quase sempre curto, todos eles ou quase todos, reintegrados e homenageados passados dois ou três anos, nenhum julgamento... nada. etc. E foi isto a perfeita "loucura"..., porque alguns se entusiasmaram, com uma linguagem mais desbocada, e se passou um período de exceção, sob tutela militar, durante pouco mais de um ano. Ó Portugal.. O O'Neill dizia coisas engraçadas acerca disto tudo.
ResponderEliminarcaramelo, os que são contra ao que chamam 25A não perdoam aos militares não terem executado pides e afins, até dizem que nem sequer tinham balas nas G3. Pois, fazer uma revolução com flores no cano da espingarda incomoda os detratores, que ainda hoje se sentem gozados e dizem 'que grande baile levamos, nem sequer deram um tiro'.
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