A
obra intitula-se Natureza Sagrada, Recuperar o nosso vínculo com o mundo
natural, por Karen Armstrong, Temas e Debates, 2023. Trata-se de um ensaio
altamente documentado sobre múltiplos olhares religiosos e de visões
espirituais sobre a sacralidade da natureza de que gradualmente nos afastámos
sobretudo desde o processo da industrialização. Atingimos o paradoxo de
estarmos cada vez mais preocupados com o modo de reverter a alteração
climática, tudo isto se processa numa atmosfera de grande indiferença sobre o
poder espiritual da natureza, como ela nos dá pelo seu silencio e pelos seus sinais
de vida a prova de que temos que reaprender a olhá-la com desvelo e ternura e
menos como uma entidade global em que a vida humana pode deixar de existir se a
temperatura subir mais.
Esta
embaixadora das Nações Unidas para o projeto Aliança das Civilizações escreveu
este notável trabalho em 2021, e comenta: “As temperaturas nos Estados Unidos e
no sul da Europa atingiram os seus maiores níveis de sempre, conduzindo a
devastadores incêndios florestais que destruíram comunidades inteiras. Ao mesmo
tempo, a Alemanha e os Países-Baixos sofreram inundações sem precedentes. As
alterações climáticas já não são uma alteração alarmante; tornaram-se uma
temível realidade. O desastre só pode ser evitado se mudarmos a forma como
vivemos. Esta crise foi causada pelo nosso modo de vida moderno, o qual, apesar
das suas realizações consideráveis, está fatalmente errado. Temos de mudar não
apenas o nosso estilo de zvida, mas todo o nosso sistema de crenças. Saqueámos
a natureza, tratando-a como um mero recurso, porque ao longo dos últimos 500
anos cultivámos uma visão do mundo que é muito diferente da dos nossos
antepassados.” E procede a uma narrativa que nem sempre é de fácil digestão,
são invocados nomes e obras que falam das tais crenças do passado como de
cientistas como Newton, que alteraram a nossa visão face à natureza. E recorda
as religiões que nutriram a humanidade, como o confucionismo e daoismo; o
hinduísmo e o budismo na Índia, o monoteísmo em Israel e o racionalismo na
Grécia, criaram novos tipos de espiritualidade, todas elas tinham uma
compreensão semelhante da relação da humanidade com o mundo natural.
Para
se entender a mudança de paradigma, a autora invoca o papel da mitologia e do
racionalismo, há que reaprender o funcionamento dos mitos, pois eles revelam
uma tentativa de descrever a realidade oculta do mundo natural. E assim vamos
viajando por crenças até chegarmos à perceção de que as religiões não
descuravam a santidade da natureza, a autora lembra-nos o livro de Job,
releva-se o papel que tinha o silêncio e como hoje vivemos completamente
dependentes de conversa e estímulos intermináveis. “Desde o século XIV,
construímos uma noção de sagrado completamente diferente. Racionalizando a
natureza e confinando Deus aos céus, reduzimos o divino de modo tão drástico
que para muitos ele se tornou ou incrível ou impercetível. Em simultâneo, nas
nossas sociedades industrializadas, temos estados a destruir sistematicamente a
ordem natural. Forçando o mundo natural a melhorar as nossas vidas e
fracassando em ver a sua santidade essencial. Excluindo uma reverência pela
natureza da nossa conceção do divino, desenvolvemos uma perceção não natural de
Deus.”
E,
igualmente, a autora socorre-se de mitos, da análise de sacrifícios animais
para ilustrar como nas crenças antigas havia uma leitura de santidade dos
objetos naturais. Socorre-se igualmente de várias crenças não só monoteístas,
colocando-as a par de antigos mitos da criação, para nos dar o quadro mental de
como a humanidade, no passado, procurava orientar as pessoas a sujeitar os seus
desejos e o seu comportamento aos ritmos naturais da vida. Havia o elogio da
gratidão pela natureza e Karen Armstrong invoca um poema escrito por S.
Francisco de Assis, onde se tecem louvores à irmã lua e às estrelas que o
Senhor criou no céu, ao irmão vento, à irmã água, ao irmão fogo, à nossa madre
terra que nos sustenta e governa, e aproveita a autora para comentar: “Ler este
poema podia tornar-se uma meditação diária, na qual deliberadamente trazemos à
mente elementos do mundo natural que costumamos tomar como garantidos: o ar, do
qual dependemos a cada segundo das nossas vidas; a humildade da água; ou o
festivo vigor do fogo. E recorda-nos a nossa própria mortalidade que
partilhamos com toda a natureza.”
Natureza
Sagrada proporciona-nos uma viagem singularíssima, são mesmo
citados autores britânicos com Wordsworth que não escondeu a sua nostalgia face
às visões da sua infância que se alteraram profundamente na idade adulta, ou
Samuel Coleridge que fazia do silêncio e de um certo grau de solidão para
apreciar as maravilhas da natureza.” Se queremos parar a crise ambiental,
necessitamos primeiro, como Coleridge, de procurar uma recetividade silenciosa
ao mundo natural, trazendo-o as nossas vidas, a pouco e pouco, todos os dias.”
Aliás, a autora irá citando poemas de Coleridge que nos ajudam a percecionar a
gravidade da nossa crise ambiental “e a nossa responsabilidade pessoal por ela,
mas também empenhados numa transformação da mente e coração que nos impelirá
para reparar os danos. Vimos como a natureza era reverenciada pelos grandes
sábios, místicos e profetas do passado. Depende agora de nós reviver esse
conhecimento e compromisso e recuperar o nosso vínculo com o mundo natural”.
Esta
obra foi considerada o melhor livro do ano para The New Yorker, recebeu
os maiores elogios da imprensa internacional por abrir uma perspetiva
espiritual, por trazer um contributo para o debate dos mais candentes problemas
ambientais, trazendo compreensão de que o mundo natural é parte integrante de
nós mesmos.
Pela
intensidade e valor das suas mensagens, temos tudo a ganhar com este poderoso
ensaio de uma das mais originais pensadoras do papel da religião no mundo
moderno.
Mário Beja Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário