A
globalização alimentar é inelutável, vemo-la nas gôndolas e arcas frigoríficas
e escaparates dos supermercados. É um processo tecnológico e económico
irreversível, facilitado pela descoberta da indústria do frio, os métodos de
conservação de média e longa duração, os transportes velozes em contentor, o
complexo sistema do agrobusiness, o fabrico de fertilizantes, o mais que se
sabe, a ponto de ninguém questionar de onde vem a perca do Nilo, a
matéria-prima das delícias do mar, e é dado assente que os apaixonados pela
alimentação multiétnica têm razões nas suas escolhas que as palavras não
explicam (isto blasonando Pascal). Os regimes alimentares são diversificados,
em torno do que comemos há polémicas inenarráveis, mas a par dos defensores
acérrimos do conjunto de preceitos onde não cabem proteínas animais, começa a
pesar a tendência do retorno a patrimónios que constituem identidades, com
práticas que chegam a ter séculos (para não dizer milénios).
Tenho
sérias dúvidas que haja alguém mais bem preparado que Maria Manuel Valagão para
escrever este maravilhoso ensaio intitulado Património Alimentar de Portugal,
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2024. A promoção dos patrimónios
alimentares tem vindo a ser acalentada em sucessivas etapas entre nós, a
própria Comissão Europeia estimula estes alimentos cuja tipicidade escapa à
economia da escala gigante; um fenómeno cultural que alastrou com a criação dos
museus regionais onde estes produtos tradicionais ganharam história e são
matriz cultural; e a própria sociedade de consumo desencadeou a apologia de que
a qualidade alimentar depende intrinsecamente de um património de sabores e
cheiros, enfim, consolidou-se a imagem de que o nutritivo, o alimento seguro,
bem apaladado e de valor organolético tem a primazia do local de origem, como
escreve a autora, “Denominador comum da nossa espécie, o prazer de comer e
saborear é indissociável, o prazer de recordar a tradição alimentar em que nos
inserimos. O conjunto de produtos e de pratos específicos de uma família, de
uma região, bem como de criações gastronómicas, é tecido por imperativos e
necessidades que se foram resolvendo, adaptando e incorporando nos usos e
costumes.”
O
ensaio desta socióloga da alimentação
concentra-se em Portugal continental, vamos vê-la a discorrer sobre este
património com ligação ao mar, à terra e à natureza, uma viagem à nossa
identidade alimentar mediterrânica, às oralidades e patrimónios das tradições
culinárias, dos caldos à doçaria, o leitor terá um tapete vermelho para
percorrer quanto à importância do determinismo geográfico, o que é a variedade
de um regime alimentar mediterrânico, como, a despeito da globalização, estamos
conformados pelo bacalhau e pela sardinha, pelas salgas, pelas plantas e pelos
animais das diferentes regiões; como o lugar e a paisagem nos podem definir a
celebração à mesa, bem como a importância das estações do ano: “Em cada época
do ano, as cambiantes e os matizes da paisagem mudam – com o despontar dos
favais, com o amanho das hortas, na primavera; com a colheita dos frutos e as
vindimas, no verão; com a apanha da azeitona, no outono. De acordo com o
ecossistema, ao longo deste ciclo anual de produções, despontam plantas
espontâneas, muitas das quais, são comestíveis. Também após as primeiras chuvas
despontam os cogumelos silvestres, recurso precioso do sob-coberto de matas e
florestas e também do montado do Sul.” A autora profere uma exultação de pão,
vinho e azeite, do que nos vem da horta, os frutos secos, frutos secados e mel,
daqui passamos para as carnes, um grande ecrã onde cabem bovinos, suínos,
caprinos, ovinos e aves, não faltam os enchidos, e até se enfatiza e põe no seu
lugar a tão destratada banha.
Mostrado
o que dá o mar e a terra, é tempo de se saber o que constitui a prática
culinária, abre-se espaço para os temperos, uma infinidade: gorduras, alho ou
cebola, condimentos fortes ou picantes, ervas aromáticas, limão ou vinagre ou
calda de tomate. Temperos que podem ser vazados em caldos, sopas e papas, é
aqui que reside o segredo das açordas à portuguesa, as migas, as papas de
milho, depois o arroz, os cozidos, os estufados e guisados.
O
comer solitário é hoje produto de um viver familiar e de um quadro de relações
em que o tempo conta e a convivência e a celebração à mesa podem ser exceção à
regra. Daí a autora explorar um fenómeno social de crescente dimensão, o
encontro com petiscos, onde as iguarias tradicionais reinam. E a autora
escreve: “Petiscos há muitos: do mais elementar ao mais sofisticado. Do
pica-pau ao salpicão e às taliscas, de presunto por todo o Norte,
Entre-Douro-e-Minho e Trás-os-Montes, à muxama e estupeta de atum de Vila Real
de Santo António, cujo consumo se alargou geograficamente, ou à moreia frita de
Vila do Bispo, no Algarve, passando pelos biqueirões albardados de Olhão, pela
caça e pelos enchidos, pelas azeitonas, pelos cogumelos silvestres, e outras
infindáveis iguarias da terra e do mar que são património gastronómico
português.” E haverá também menção da chouriça frita, as moelas e os pipis, a
morcela de arroz assada, as saladas de polvo e de ovas – lista inumerável, há
que ter orgulho neste património.
Era
inevitável, a doçaria é também pedra angular destas ocasiões de convívio e
celebração, a multiplicidade de espaços onde a encontramos impressiona, não se
cinge à pastelaria ou confeitaria, alarga-se por toda a restauração, permite
altos voos na vida doméstica, e há os doces da terra, dos múltiplos pastéis de
feijão à queijadinha de Serpa, há quilómetros de coisas doces.
É
preciso saber muito e relacionar-se bem com a escrita pedagógica para escrever
estes primores sobre o património alimentar de Portugal com tão tocante
simplicidade, e com tal poder de comunicação. E damos concordância a uma das
considerações finais da autora depois desta aliciante viagem:
“O
património alimentar faz parte da nossa memória de sabores e da nossa história
agrícola. Contém harmonias de relação com a terra e com a natureza que devem
ser preservadas e valorizadas. Os conhecimentos intemporais sobre as tradições,
a sua transmissão através do ensinamento de práticas agrícolas, de conservação
e culinárias, o caráter familiar e oral desse saber, devem ser recuperados,
reavivando uma parte do património alimentar, um dos alicerces da herança
cultural portuguesa.” E, mais adiante: “O património alimentar português pode
tornar-se o contributo decisivo para a dinamização da economia e do
desenvolvimento sustentável das regiões, com base nos valores e nas tradições
que importa redescobrir e dar continuidade. O regaste da nossa história e identidade
alimentar tem permitido alargar experiências culturais.”
De leitura obrigatória, um belo ensaio de divulgação que deve ter acolhimento a vários níveis do sistema educativo.
Mário Beja Santos
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