terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Surreal Policial.

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Surrealismo policial: as capas de Cândido da Costa Pinto para a Colecção Vampiro (1947-1956)





Cachimbos e chapéus de coco: Simenon com Magritte por perto


O livro policial típico do século XXI é escrito por um arrivista empenhado em transcender as fronteiras do género policial ou, mesmo, em fazer Literatura (com ênfase na maiúscula inicial), é protagonizado por um polícia de personalidade indistinta mas com problemas conjugais ou por uma investigadora privada lésbica, contém no seu enredo pelo menos dois distúrbios do foro psiquiátrico e um abuso sexual de menores e vem envolto numa prosa digna do pior Durrell, em que tudo, mas mesmo tudo, é descrito e analisado com minúcia paranóica. É impossível datar o início preciso desta tendência, mas ela parece remontar ao ensaio The Simple Art of Murder, de Chandler, em que se decretou que o policial poderia ser «escrita importante» desde que se conformasse com o dictum de que «a ficção em qualquer forma almejou sempre a ser realista» (ignoremos as dúvidas acerca da veracidade desta afirmação e do quociente de realismo médio do livro policial de hoje). O caldo entornou-se quando Patricia Highsmith elegeu como pináculo do reconhecimento literário a publicação dos seus próprios livros, em França, na mesma colecção que os de Dostoievsky. Como o próprio Chandler escreveu, «o realismo exige demasiado talento» – talento que ele e Highsmith tinham, mas que a esmagadora maioria dos seus descendentes literários não tem.


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Contudo, as coisas nem sempre foram assim. Tempos houve em que os livros policiais eram escritos por professores oxonianos de literatura inglesa, tradutoras de Dante, egrégios monsenhores e cónegos, críticos de arte diletantes, filhos de congressistas americanos e, mesmo, autores de literatura dita séria sem outras intenções que não as de se divertirem a si próprios e entreter os seus leitores. Tempos houve em que os detectives eram lordes ingleses e outros cavalheiros desocupados, senhoras de idade e padres católicos inofensivos, lexicógrafos e escritores policiais filhos de inspectores de polícia que percorriam o mundo de lunetas em punho em busca de crimes misteriosos. Tempos houve em que as histórias policiais tinham sempre enredo, que podia incluir um alibi falso mas aparentemente indestrutível, uma misteriosa pista deixada in extremis pela vítima ou um assassino que se evapora de um quarto hermeticamente fechado. Tempos houve em que as histórias policiais não continham – nem deviam conter – «longos excertos descritivos» ou «análises de personalidade subtilmente trabalhadas» (S. S. Van Dine, “Twenty Rules For Writing Detective Stories”, regra 16). Belos tempos!




Relógios, portas e mais cachimbos: um paraíso surrealista?
Em Portugal, esses tempos ficaram associados, já com algum desfasamento temporal em relação ao mundo anglo-saxónico, à mítica Colecção Vampiro, inspirada na francesa Le Masque, na italiana Giallo Mondadori e nas séries policiais das norte-americanas Dell e Pocket Books. Houve, é certo, antecedentes. Em particular, a Colecção Mistério e Aventura, publicada pela Editorial O Século desde a década de 1930, que, no meio de muito lixo, já tinha dado à estampa obras de vários dos autores mais célebres da sua época, incluindo John Dickson Carr (também com o seu pseudónimo Carter Dickson), Freeman Wills Crofts, R. Austin Freeman e Edgar Wallace. Mas foi a Colecção Vampiro que, sob uma orientação editorial coerente e criteriosa, começou a divulgar de forma sistemática os autores e as obras da chamada Idade de Ouro da literatura policial. O primeiro número da Colecção Vampiro, Poirot desvenda o passado, de Agatha Christie (tradução de Five Little Pigs, de 1942), foi publicado pela editora Livros do Brasil em Abril de 1947. A partir daí, durante mais de sessenta anos, saiu um Vampiro por mês (por vezes dois, um dos quais uma reedição) e, na parte final da sua existência, de dois em dois ou de três em três meses. O último volume, com o número 703, Do álbum de um detective, de Headon Hill, foi publicado em 2008. Pela Colecção Vampiro passaram quase todos os principais autores policiais até 1950, incluindo cultores da forma tradicional como Arthur Conan Doyle, G. K. Chesterton, E. C. Bentley, R. Austin Freeman, Agatha Christie, John Dickson Carr/Carter Dickson, Dorothy L Sayers, Margery Allingham, Ngaio Marsh, Anthony Berkeley, Nicholas Blake, Leo Bruce, Michael Gilbert, Michael Innes, Mary Roberts Rinehart, Earl Derr Biggers, Mignon G. Eberhart, S. S. Van Dine e Ellery Queen, herdeiros da tradição da Black Mask como Erle Stanley Gardner (por algum tempo o maior best-seller da colecção), Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Fredric Brown, Frank Gruber e Mickey Spillane, híbridos como Rex Stout e paladinos da posterior orientação psicológica como Georges Simenon, Patricia Highsmith e Ruth Rendell.
Além da selecção dos autores, que, embora com muito poucos riscos, foi na maior parte dos casos vitoriosa, uma das principais explicações do sucesso da Colecção Vampiro residiu nas suas lendárias capas. As mais memoráveis – e aquelas que qualquer leitor fiel associará automaticamente à colecção – foram, por certo, as desenhadas por Cândido da Costa Pinto desde o primeiro até ao centésimo décimo segundo número da colecção, publicado em Agosto de 1956. É verdade que na contemporânea e abalizada opinião de Victor Palla, publicada em 1952 no primeiro número da mítica revista policial O Gato Preto, de entre todas as colecções policiais da época era a Colecção Xis «incontestavelmente a de maior perfeição gráfica» [1]. A opinião tem consistência: no papel, na fotocomposição e na apresentação geral dos livros, a Xis era superior à concorrência. Mas, sem prejuízo da qualidade das capas de algumas outras colecções, por vezes realizadas por artistas plásticos de mérito [2], em termos estritamente pictóricos nenhuma delas conseguiu superar a Colecção Vampiro durante o período em que as suas capas foram assinadas por Cândido da Costa Pinto. Na verdade, estas capas estabeleceram o padrão que as outras colecções policiais da década de 1950 tentaram imitar: as primeiras capas das colecções Xis e (em menor grau) Escaravelho de Ouro são claras aproximações ao estilo de composição de Costa Pinto.
Em 1995, a Fundação Calouste Gulbenkian promoveu uma retrospectiva de pintura de Cândido da Costa Pinto, que, todavia, não chegou para o arrancar ao injusto esquecimento. Este ficou bem ilustrado pelo facto de, em 2011, o centenário do seu nascimento ter passado despercebido. Costa Pinto não é hoje, portanto, um nome familiar. É mesmo provável que a modesta fama que possa ter se deva sobretudo às capas que desenhou para a Colecção Vampiro. Paradoxalmente, a associação do artista a uma forma literária desvalorizada pelas elites intelectuais, aliada à sua ruptura com o neo-realismo dominante durante o período do Estado Novo, poderá também explicar algum do desprezo a que tem sido votado. É sem surpresa que se verifica a escassez dos dados biográficos disponíveis, que apenas permitem compor um retrato algo longínquo.
Cândido da Costa Pinto nasceu na Figueira da Foz em 20 de Maio de 1911. A sua iniciação artística fez-se no atelier do pai, que se dedicava às artes decorativas. Com doze anos publicou o primeiro trabalho, uma caricatura, num jornal regional. No Liceu de Coimbra fundou o grupo Divergentes, que pretendia opor-se à Presença. Aos dezoito anos ficou tuberculoso e passou os dez anos seguintes entre sanatórios. Segundo mais tarde contou, salvou-o a «magia da arte» – os símbolos das várias religiões do mundo gravados num colete de zinco e cobre comprado a um refugiado polaco. Esta terá sido a primeira manifestação de um pendor místico, mais tarde desenvolvido sob influência de Joaquim Paço D’Arcos. Em 1929 instalou-se em Lisboa, onde, no mesmo ano, fez a sua primeira exposição individual no Secretariado de Propaganda Nacional. Já nesta altura estava próximo do surrealismo, corrente em que se inserem os seus quadros mais conhecidos, como Mulher da época (1941), Aurora hiante (1942), Decadência outonal: fado (1943), Coisas que acontecem (1944) ou, de forma explícita, Composição surrealista (1962). Estes revelam alguma influência de Salvador Dalí, que não deve ter escapado aos mais atentos, já que, segundo se conta, os funcionários da Livros do Brasil lhe chamavam Salvador Daqui. A par da pintura, trabalhou como designer gráfico sucessivamente para a Companhia Portuguesa de Higiene e para os CTT e ainda como freelancer, tendo produzido cartazes, selos, ilustrações (para o Diário de Notícias e o Diário Popular) e capas de livros (também para a revista Vampiro Magazine e para a Colecção Argonauta, dedicada à ficção científica, igualmente publicadas pela Livros do Brasil). Em 1947, ano em que desenhou a primeira capa da Colecção Vampiro, animou o chamado Grupo Surrealista de Lisboa, de que faziam ainda parte Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, António Pedro, António Dacosta e Vespeira, entre outros, e que promoveu uma exposição em 1949. Em 1951 expôs na Bienal de São Paulo. Em 1962, aparentemente decepcionado com a vida em Portugal, emigrou para o Brasil, onde colaborou na imprensa, em particular no suplemento literário d’O Estado de São Paulo. Morreu em São Paulo, em 28 de Maio de 1976 [3].
A escolha de um pintor surrealista para desenhar as capas de uma colecção policial pode parecer estranha. Mas os livros da série policial da editora norte-americana Pocket Books, publicada desde o fim da década de 1930, tinham capas do mesmo género. E não era por acaso. Tipicamente, o policial detectivesco clássico propõe um enigma cuja solução é possível inferir a partir de pistas. Estas pistas têm, com muita frequência, existência física, o que as torna visualmente apreensíveis. Antes da solução do enigma, as pistas são aparentemente desconexas entre si. O modo mais evidente de representação gráfica de um enigma policial é, portanto, através de uma composição aparentemente aleatória de objectos cujo significado último não é, por si só, evidente. Ora, esta descrição genérica pode aplicar-se a algumas das mais famosas obras de Dalí, Miró, Ernst ou Magritte. A afirmação de André Breton, no Manifesto surrealista, de que «o surrealismo é baseado numa crença na superior realidade de certas formas de associação previamente desprezadas» ilustra a analogia profunda entre a literatura detectivesca e o surrealismo.
O modo como esta analogia foi posta a funcionar por Cândido da Costa Pinto ficou bem ilustrado no texto final do volume 74 da Colecção Vampiro (Intriga e veneno, de Dorothy L. Sayers), em que, como de costume, o editor anunciava o volume seguinte (5 caixas = morte, de Carter Dickson). O texto é longo, mas merece ser lido por inteiro:

«Como são elaboradas as capas de cada um dos volumes da «Colecção Vampiro»?
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Inicialmente a Secção de Leitura faz um resumo do romance e envia-o à Secção de Ilustração e Desenho. O resumo tem de ser redigido com extremo cuidado, pois, dada a natureza do romance policial, não é conveniente comunicar ao desenhador a solução, para que na capa não apareça qualquer indício que roube ao leitor o prazer do desenlace-surpresa.
Assim, a condensação deve dizer respeito unicamente aos pontos principais do enredo. No caso de 5 caixas = morte foi a seguinte:

1. Objectos que têm importância preponderante no desenrolar da acção:

Um chapéu de chuva de estoque manchado de sangue – a arma do crime.
Cinco caixas embrulhadas em papel castanho e lacradas a vermelho.
Um braço de manequim com uma luva cinzenta calçada.
Uma grande quantidade de veneno: atropina.
Quatro relógios de algibeira.
O mecanismo interior de um despertador.
Um pedaço de vidro em forma de lente convexa.
Uma luva de homem, castanha.
Um pequeno frasco cheio de fósforo e outro cheio de cal viva.

2. A acção passa-se em Londres. Felix Haye, um bon vivant, é apunhalado nas costas com um estoque transportado num chapéu de chuva, durante uma reunião em sua casa com três pessoas: Sir Dennis Blystone (alto, de aparência distinta, um dos mais famosos cirurgiões londrinos – as suas mãos têm uma característica interessante: os dedos indicadores são quase do mesmo tamanho que os médios), Bernard Schumann (velho, de cabelos brancos, olhos aparentemente inofensivos, especialista em múmias e outros objectos de arte egípcia) e Bonita Sinclair (uma formosa mulher, misteriosa e enigmática). Haye e os três convidados são encontrados à volta de uma mesa, com um copo na frente de cada um. Haye está morto e os restantes narcotizados com atropina que alguém deitou nos cocktails.

3. O mistério gira à volta dos seguintes pontos:

Uma aparente impossibilidade na realização do crime. Como foram narcotizados Haye e os seus três convidados, se estes são unânimes em declarar que ninguém teve oportunidade de misturar a atropina nas bebidas? Todos assistiram à preparação dos cocktails, os copos estavam absolutamente limpos, ninguém teve qualquer gesto suspeito e, no entanto, havia atropina nos cocktails.

Qual o significado dos misteriosos objectos encontrados em poder dos três convidados? Sir Dennis Blstone trazia consigo quatro relógios de bolso, um em cada algibeira. Bonita Sinclair tinha na mala dois pequenos frascos: um cheio de fósforo e o outro de cal viva. Para quê? E Bernard Schumann, para que queria ele um bocado de vidro de lente convexa e o mecanismo ferrugento de um despertador?

Qual o papel que desempenham na história as cinco caixas lacradas que o assassino rouba na noite do crime? Cinco caixas iguais, embrulhadas em papel castanho, fechadas a lacre vermelho e cada uma delas com um nome: Bonita Sinclair, Dennis Blystone, Bernard Schumann, Peter Ferguson e Judith Adams?

4. O caso decorre numa atmosfera de irrealidade tal como só Carter Dickson, «o mestre do impossível», é capaz de criar.
           
Com estes elementos, Cândido da Costa Pinto desenhou uma esplêndida capa para o 74.º volume da Colecção Vampiro.»

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         As melhores capas de Cândido da Costa Pinto para a Colecção Vampiro foram, com toda a clareza, elaboradas segundo este método. A sugestão de representação de objectos sem qualquer conexão lógico-racional aparente fornecia ao artista um estímulo sucedâneo do «puro automatismo psíquico através do qual nos propomos exprimir […] o funcionamento real do pensamento», do «ditame do pensamento, na ausência de qualquer controlo exercido pela razão e para além de qualquer preocupação estética ou moral», a que Breton aludia no Manifesto surrealista.
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Capas para ver à noite

Mas é claro que se tratava – repete-se – de um mero sucedâneo. Na verdade, os objectos representados por Cândido da Costa Pinto nas capas da Colecção Vampiro não eram expressão do «poder ilimitado do sonho» do seu autor, não decorriam, na realidade, do «jogo desinteressado» do seu pensamento. Nem assim podia ser: enquanto o surrealismo «tende a reduzir a ruínas todos os outros mecanismos psíquicos e a substituir-se a eles na resolução dos principais problemas da vida» (as citações são ainda do Manifesto surrealista), o romance policial reafirma (com algumas excepções notáveis) a crença de que todos os problemas têm uma solução racional, ainda que ela possa parecer liminarmente inviável. Assim, a dimensão simbólica dos objectos, alguns dos quais de forte conotação surrealista (olhos, relógios, portas, chaves, fechaduras, guitarras, cachimbos, chapéus de coco), é, nas capas de Cândido da Costa Pinto, esvaziada pela sua imediata descodificação.

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Com a incorporação das imagens de marca do Santo e do Príncipe nas capas da Colecção Vampiro, Cândido da Costa Pinto revelou a sua faceta de publicitário




Enquanto arte surrealista, as capas de Cândido da Costa Pinto não podem, portanto, deixar de se considerar menores. Sob certo ponto de vista, elas só são surrealistas na superfície: não ilustram sonhos, mas antes uma realidade imaginada cujos componentes, em virtude de uma momentânea articulação, prévia à intervenção da lógica racional, e de uma particular forma de representação, adquirem uma aparência onírica. Poderia mesmo ir-se mais longe e afirmar que até as pinturas mais declaradamente surrealistas de Cândido Costa Pinto (que não são assinalavelmente diferentes, em concepção e efeito, das suas capas para a Colecção Vampiro) revelam um idêntico modus operandi e, portanto, as suas intrínsecas limitações à luz do dogma surrealista: como se os seus elementos e a recíproca articulação deles resultassem não de um jorro do subconsciente, mas de uma lógica racional que só permanece misteriosa em virtude da sua intencional ocultação (não será necessário entrar aqui na discussão sobre se isto mesmo não se poderá apontar também a alguns nomes maiores do surrealismo, desde logo ao grande inspirador de Costa Pinto, Salvador Dalí).
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A cara que figura nesta capa, e nas dos restantes livros de Earl Derr Biggers publicados na Colecção Vampiro, é a do actor sueco-americano Warner Oland, imediatamente reconhecível para os leitores da época como a do popular detective chinês Charlie Chan nos filmes produzidos em Hollywood entre 1931 e 1937. Aqui surge ao lado de uma fechadura decididamente surrealista.

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De qualquer maneira, nada disto diminui a qualidade das capas de Cândido da Costa Pinto. Se não atingem os cumes da arte surrealista, a verdade é que transcendem em muito a funcionalidade ornamental que se pode exigir à capa de um livro. As capas de Cândido Costa Pinto contribuíram, tanto quanto a escolha de autores e obras, para conferir identidade e visibilidade a uma colecção de livros que, num meio literário pequeno e provinciano como o português, lutava com o estigma da suposta menoridade do género policial. No seu melhor, cada uma delas complementava um texto sem se limitar a ilustrá-lo. Ademais, fazia-o de forma perturbante e com apelo à imaginação do leitor, algo a que as capas fortemente estilizadas e sanitizadas dos livros actuais nem sequer almejam. Quantos pesadelos não terá inspirado o cavalheiro bem-vestido e de aparência sinistramente pacata que caminha sobre um relógio, cuja cabeça foi substituída por uma mão empunhando uma enorme faca, na capa (difícil de suplantar) de O assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie? Ou a figura fantasmagórica de cara oculta de cujas mãos esticadas saem cordéis como aqueles com que um bonecreiro manipula as suas marionetas que assombra a capa de O adversário secreto, também de Agatha Christie? Ou a navalha cuja lâmina ensanguentada pinga o olho encarnado de um elefante na capa de O barbeiro cego, de John Dickson Carr? Ou o dragão pronto para engolir o mergulhador incauto que salta de uma prancha na capa de Os crimes do dragão, de S. S. Van Dine?
Entre as capas menos interessantes realizadas por Cândido Costa Pinto para a Colecção Vampiro contam-se precisamente aquelas em que mais se afastou da imagética surrealista, como sucedeu quando (por vezes imaginosamente) incorporou elementos gráficos de franchises como os do Santo, criado por Leslie Charteris, e do seu parente pobre, o Barão, criado por John Creasy, quando retratou nas capas dos livros de Earl Derr Biggers o rosto do actor Warner Oland, que tinha interpretado o detective chinês Charlie Chan em várias produções de Hollywood, ou quando se limitou a copiar uma fotografia promocional do filme O desconhecido do norte-expresso, de Alfred Hitchcock, na capa (significativamente não assinada, embora atribuída no interior) do livro homónimo de Patricia Highsmith.


Descubra as diferenças: quando Cândido da Costa Pinto plagia (capas de A mão decepada e do seu original The red right hand na edição norte-americana da Pocket Books)

Na capa de A mão decepada, de Joel Townsley Rogers, pela única vez, que não pode senão atribuir-se a uma crise de inspiração ou a uma desesperada falta de tempo, chegou a recorrer mesmo ao plágio, copiando a capa da edição norte-americana da Pocket Books. Apesar de, ainda assim, a capa ser eficaz, foi pena, porque se trata, provavelmente, do livro mais surrealista alguma vez publicado na Colecção Vampiro, que teria dado pano para mangas a um Costa Pinto em boa forma.




Estratégia comercial ou crise de imaginação? Ruth Roman e Farley Granger na capa de O desconhecido do norte-expresso, de Patricia Highsmith, e numa fotografia promocional do filme homónimo de Alfred Hitchcock


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Estas são, no entanto, poucas e pequenas manchas numa série globalmente brilhante. A razão pela qual a colaboração de Cândido da Costa Pinto com a Livros do Brasil terminou não é conhecida. Parece ter sido ainda ele o responsável pela renovação gráfica da colecção após o centésimo volume e o mítico logotipo, que parece terá sido por si concebido, continuou a ornamentar os Vampiros até ao fim. De qualquer maneira, a capa do centésimo décimo terceiro volume já é da autoria de Lima de Freitas, também um prestigiado artista plástico com ligações ao surrealismo. Enveredando por uma figuração mais literal e estilizada, as primeiras capas concebidas por Lima de Freitas mantiveram um nível consistentemente alto. Mas quando, na capa de As férias de Poirot, publicado em Dezembro de 1967, poucos meses antes de Salazar cair da cadeira, surgiu a fotografia de uma bela modelo em roupa interior, com todo o aspecto de ter sido recortada de uma daquelas revistas de conteúdo pouco apropriado para menores, a Colecção Vampiro começou uma lenta mas acentuada decadência gráfica. Cada vez mais capas foram ocupadas com fotografias pilhadas da imprensa, por vezes sem qualquer trabalho adicional de composição gráfica, sem a mais pequena ligação ao conteúdo do livro e com uma propensão crescente para o erotismo de sarjeta (a permissividade da censura quanto a este último aspecto mereceria um estudo à parte). Simbolicamente, o volume de Abril de 1974 (Seis segundos para matar, de Brett Halliday), é capeado com uma fotografia de uma púbis feminina, embora ainda pudicamente revestida por umas calças justas. No Verão quente de 1975 atingiu-se um de vários pontos baixos com a capa de Perfume e morte, de S. S. Van Dine – um autor que advogava a exclusão não apenas do sexo, mas de qualquer elemento sentimental nos enredos policiais –, integralmente ocupada com a má fotografia de uma mulher nua (não foi caso único). O sucessor de Lima de Freitas, um obscuro A. Pedro, aparentemente professor das Belas-Artes, assinou uma interminável série de capas mal-amanhadas que teriam enterrado qualquer colecção com leitores menos fiéis. No final da sua existência, a Colecção Vampiro recuperou alguma dignidade gráfica. Mas nunca voltou sequer a aproximar-se da qualidade que lhe foi dada pelas capas de Cândido da Costa Pinto.
          
Olho por olho: as diferenças temáticas entre os quadros e as capas policiais de Cândido da Costa Pinto não são significativas (capa de O caso do olho de vidro e pintura sem título de 1945)





Primeira e última capas: Poirot desvenda o passado, de Agatha Christie, e O gato de diamantes, de Dorothy L. Sayers




Henrique Valle



[1] A revista era dirigida por Victor Palla (assinando com os seus nomes intermédios de Manuel do Carmo) e Francisco A. Branco, um dos mais imaginativos escritores policiais portugueses da década de 1950. A afirmação citada surge no texto de apresentação da revista, que não está assinado, mas parece ter sido escrito por ambos os directores; o excerto transcrito é quase de certeza de Victor Palla, que, à data, já era um dos mais conceituados designers gráficos portugueses.

[2] Em particular sobre o grafismo das Colecções Xis e Escaravelho de Ouro, veja-se o excelente texto de Luís Miguel Queirós, «Crimes de bolso - 60 anos depois das colecções policiais Escaravelho de Ouro e Xis», além do mais com interessantes dados e considerações sobre a história da edição policial em Portugal.

[3] Estes elementos biográficos foram compilados a partir daqui, daqui, daqui  e daqui .

5 comentários:

  1. wow.

    vc é fabuloso.

    bendita a hora em que vim cá ter.

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  2. Um grande (e anónimo) OBRIGADO !

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  3. Uma coisa é certa: quando nesse tempo se encomendava uma capa dava-se ao ilustrador/designer ou como se queira chamar, o livro a ler. Hoje em dia os designers têm geralmente de fazer capas para livros que não leram, escritas muitas vezes porquem também não leu o livro e andou a pesquisar na amazon. Sic transit...

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    1. faltou um bocado de texto "que não leram, com base em resenhas escritas muitas vezes..."

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  4. Se me permite, duas pequenas anotações. O pai de Cândido Costa Pinto tinha uma ourivesaria, que foi herdada por um dos irmãos de Cândido, o José. A irmã, Jesuína, única rapariga dos quatro filhos que o casal teve, e minha avó paterna, nunca se referiu ao pai como fabricante de jóias. Dificilmente poderíamos falar de uma família dedicada às artes decorativas. A ida para o Brasil tem contornos que ultrapassam em muito a mera desilusão com a vida em Portugal. A causa, com contornos sórdidos, foi-me revelada no dia em que o meu pai morreu. Nunca nos foi possível confirmar a veracidade de uma história que abalaria profundamente a imagem do tio Cândido.

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