Como fui convidado, em 1963, para
me filiar no PCP
e porque não aceitei esse convite
(Excerto dum livro de memórias)
Gostaria de lembrar aqui um detalhe
importante, ocorrido em 1963, no ano em que comecei a namorar aquela colega da
Faculdade de Letras que seria, um ano depois, a minha mulher. O meu activismo
político, desde o final da minha passagem pela Faculdade de Direito e
intensificada com a greve universitária de 1962, já aluno de Letras, resultava
da colaboração de um pequeno punhado de colegas meus, aparentemente sem
filiação partidária, com um entusiasmo inocente e atrevido, e consistia
sobretudo em fabricar panfletos a stencil,
distribuídos depois pelas caixas de correio nos bairros burgueses de Alvalade,
pois era ali que habitámos, assim como pintarmos a nitrato de prata graffitis negros nas paredes
virginalmente brancas das nossas faculdades. Semelhante espontaneidade
militante e atrevida não podia passar despercebida ao único partido então
existente em Portugal, o obviamente clandestino Partido Comunista, que decidiu
contactar-me em 1963, solicitando-me para um encontro através duma colega do
curso de Filosofia na Faculdade de Letras, a qual me industriou sobre o local
público onde ele decorreria, indicando-me o modus
operandi dessa entrevista e combinando ainda o santo e a senha desse
contacto inicial com um enviado misterioso que eu, obviamente, não conhecia: eu
levaria comigo um exemplar do L´Espoir de
Malraux, no burguesíssimo café Mexicana, no qual o encontro fora marcado,
cabendo ao enviado do PCP abordar-me perguntando, enquanto apontava o romance
em cima da minha mesinha: “– Gosta desse autor?”, ao que eu deveria responder :
“– É um dos meus favoritos” , abordagem cifrada que não despertaria suspeitas
no meio dum café tão barulhento, à Praça de Londres, com as suas graciosas
cerâmicas de Querubim Lapa, ideal para encetar um eventual recrutamento
partidário.
À hora combinada vi entrar naquele café
perto da Praça de Londres, entre outras pessoas casuais, com o ar esperado de
quem procura alguém no meio duma sala cheia de clientes, um antigo colega, mais
velho, do Colégio Militar, que fora comandante de batalhão, honra suprema que
um graduado podia receber no derradeiro ano do curso, o qual me fez um aceno ao
longe, mas sem se deter na mesa onde eu abancara, o que parecia desde logo
desmentir o palpite que senti ao vê-lo avançar pela sala. Depois de ter dado algumas
voltar pelo café, muito apinhado àquela hora, passou de novo por mim e, vendo o
meu livro exibido em cima da mesinha, percebeu que era eu o convidado para esse
encontro secreto. A conversa correu como seria
de esperar: ele a explicar-me o interesse com que o “partido dos trabalhadores”
registara a minha militância e temerária liderança dum pequeno grupo de
estudantes universitários antiditatoriais, pelo que a minha acção se tornara
conhecida no meio do PCP, o qual me vinha propor que esse punhado de rebeldes
se juntasse às massas do Partido, de modo que este pudesse amparar-nos e
potenciar a nossa militância, garantindo-lhe ainda todo o apoio, tanto
domesticamente como fora das fronteiras, no caso de sermos perseguidos ou
presos. E sublinhava que não fazia sentido agirmos isolados da “grande máquina
de guerra no combate ao Fascismo em prol dum Portugal democrático”, ao mesmo
tempo que, louvando a ousadia dos nossos panfletos de fabrico caseiro, fazia
notar que havia neles, todavia, alguns aspectos politicamente incorrectos, como
por exemplo, os remoques à Igreja católica, quando convinha precisamente atrair
para o nosso lado os católicos progressistas.
Sensibilizado com os elogios recebidos e o tom afável do emissário do PCP, expliquei que não me sentia um “partidista” (a expressão fora por mim colhida na prosa liberal de Ortega y Gasset), já que nos meus tempos no Colégio Militar eu timbrara em ser um dissidente, a ponto de depressa ser alcunhado de “Refractário”, o que, na gíria colegial, tinha um sentido muito forte de insolente recusa dos parâmetros da escola dos “Meninos da Luz”. Referi-lhe também, de modo cauteloso, algumas reticências que sentia em relação a uma espécie de genética do estalinismo dos PCs europeus – ainda não se falava de Eurocomunismo –, mencionando o caso da “conspiração das Batas Brancas na URSS” de 1953, prólogo duma vasta perseguição os judeus soviéticos que só abortaria porque, entretanto, Estaline falecera em 1953,
E pouco mais adiantámos, ficando então
combinado que eu ficava desde já cordialmente convidado a aderir ao partido,
dispondo de quatro dias de reflexão para comunicar uma resposta final à minha
colega da Faculdade de Letras, o que seria dado apenas por um Sim ou um Não: no primeiro caso, ela transmitir-me-ia então as instruções para
a fase seguinte da minha esperada adesão ao partido dos “amanhãs que cantam”,
voltando então a encontrar um outro camarada que seria o meu “controleiro” (não
creio que ele tivesse utilizado este termo). Por fim, com um ar quase casual, o
antigo camarada do Colégio Militar acrescentou, antes de partir, que os colegas
de Direito e de Letras que eu dirigia na luta clandestina contra a Ditadura
eram já, “quase todos”, membros do PCP. Este detalhe deixou-me profundamente
abalado até aos recônditos da minha alma: no fundo, eu já estava, embora sem o
saber, dentro na máquina partidária do PCP, embora ignorando que a maioria dos
meus companheiros de combate, no fundo, obedeciam ao partido e não a mim…E
discretamente, antes de partir com um ar radiante de recrutador que acaba de
ganhar para a sua causa um neófito valioso, passou-me, dentro dum envelope, um
folheto que percebi depois ser um pequeno manual de instruções práticas que se
chamava algo como Se fores preso,
Camarada, explicando como se devia comportar todo o membro do PCP quer
caísse por infelicidade nas garras da PIDE.
Saí do café com a cabeça atordoada, sentindo, por um lado, que acabava de me avizinhar dum cruzamento decisivo e fundamental da minha vida, ao mesmo tempo que a descoberta do detalhe de que alguns dos meus companheiros de luta política já tinham aderido ao PCP me deixava humilhado e com a sensação de ter sido burlado, de não passar dum mero peão num tabuleiro de xadrez no qual jogadores com dedos gigantes moviam com superior estratégia tropas obedientes, essas pequeninas pecas de madeira. Um Sim mudaria doravante a minha vida e um Não condenar-me-ia a ser o eterno “Refractário” de sempre. Telefonei para casa da minha namorada a pedir-lhe que fôssemos conversar comigo o mais depressa possível. Poucos minutos depois, a Guida Miriam chegava de táxi ao Café Londres para ouvir da minha boca o relato do importante encontro na Mexicana. Terminado o meu relato, e interrogada sobre o que é que ela achava do sucedido, respondeu-me tranquilamente, começando por notar que, antes de mais, aquela entrevista mostrava que o meu activismo político interessara deveras o único partido de verdadeira oposição existente em Portugal e que, por outro lado, o grupo de rapazes que eu dirigia já estava desde logo filiado num partido sem que eu o soubesse. Por fim, quanto à importante escolha que me era proposta, parecia-lhe que ela tinha desde logo muito de parecido com uma proposta de casamento. E sobre esta questão essencial, a Guida Miriam foi muito clara, pois o que eu tinha de escolher nos quatro dias seguintes se resumia apenas nisto: ou eu ia casar já com o PCP ou ia casar com ela, como tínhamos já pensado fazê-lo, no ano seguinte, quando acabássemos os nossos cursos na Faculdade de Letras.
Fiquei embatucado com este discurso
absolutamente inesperado, feito, ainda por cima, por uma jovem de 21 anos, que
falava do caso com a sabedoria de quem vivera muito. Lembro-me que ela até fez
uma comparação de bom senso: entrar para o PCP não era o mesmo que inscrever-me
no Ginásio Clube Português, uma vez que, no caso deste último, bastaria cessar
de pagar a quota e deixar de lá aparecer para me separar dele, ao passo que, no
caso do partido sovietista, o meu ingresso implicaria, na hipótese de um dia vir
a romper com ele, uma separação que se adivinhava dolorosa e traumática, tanto
mais que, sendo eu filho de um administrador colonial salazarista, decerto
recordariam a mácula original do meu background
africano. Estas objecções deixaram-me confuso, pois nunca esperava que a minha
futura mulher interpretasse o que sucedera como um conflito entre dois casamentos
incompatíveis entre si. E a Guida Miriam, concluindo que era apenas a mim que
competia decidir quanto à escolha desejava fazer, despediu-se logo, pedindo-me
que nos quatro dias seguintes evitássemos quaisquer contactos, só voltando a encontrá-la
depois de ter dado à nossa colega comunista da Faculdade de Letras a resposta
final que me era pedida, negativa ou positiva. E meteu-se num táxi de regresso
à sua vivenda em Benfica, enquanto eu ficava sentado, desesperadamente sozinho,
numa mesinha de mármore do Café Londres, a olhar para os altos espelhos
imparciais que me rodeavam, como se num deles estivesse inscrita, em tinta
misteriosa que só eu pudesse decifrar, a resposta à tão abstrusa opção que o
destino acabava de me impor.
Durante quatro dias não pensei noutra
coisa, embaraçado com a dura alternativa que a Guida Miriam me tinha imposto. E
quatro dias depois, em seguida a ter dito pessoalmente à nossa colega da
faculdade que era negativa a minha resposta – o que a desiludiu, embora me
garantisse que continua a contar com a
minha “ajuda na luta comum” –, telefonei à Guida Miriam para lhe comunicar, com
fingida serenidade, que, evidentemente, tinha respondido de forma negativa ao
que ela comentou apenas: “– Fizeste bem”, e nunca mais voltámos a falar deste
lance tão decisivo nas nossas vidas. Em suma, sem eu me dar conta, ela
ajudara-me a evitar cometer um erro de que fatalmente me arrependeria mais
tarde ou mais cedo, já que era evidente que um espírito rebelde como eu, tão
independente e ferozmente autónomo, nunca seria um bom militante do nosso
estalinista PCP. Acrescentarei um derradeiro detalhe: nunca mais voltei a ver o
antigo graduado do Colégio Militar que fora até à Mexicana para me recrutar
para o “partido dos trabalhadores” com vista aos anunciados “amanhãs que
cantam” – e que, na verdade, nunca chegariam. Tudo quando sei dele é que teria
sido expulso, mais tarde, num das muitas purgas habituais no PCP.
João Medina
(texto extraído do livro inédito No Labirinto do Exílio)
Protesto veementemente : o seu texto enterneceu-me e comoveu-me.
ResponderEliminarExplicação ( que não explica nada...) : tenho setenta anos e um curso da Faculdade de Letras de Lisboa. Faça portanto as contas...
No "meu" caso a coisa foi mais complicada : na altura,com certeza que se se lembra, e já vindas do Liceu, existiam as" correspondentes" - para praticar línguas estrangeiras, quaisquer que elas fossem...
Como as "memories are made of this", obrigado por ter provocado um saudoso e nostálgico sorriso...
J.J.Pereira
Esta do "livro inédito" é uma homenagem cinica à tortura ? Quando é que sai ? Quem vai editar? Onde e como é que vai poder ser adquirido ?
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