A. J. Liebling (1904-1963)
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Abbott Joseph «A. J.» Liebling (1904-1963) foi um dos mais conhecidos repórteres da
revista New Yorker, onde começou a
escrever em 1935, e aí permaneceu até à morte.
Nesta
nota, enviada de Lisboa em 24 de Junho de 1940, e publicada na New Yorker na sua edição de 6 de Julho
do mesmo ano, Liebling dá conta da atmosfera vivida na capital portuguesa após
a invasão de França pelos exércitos nazis e, bem assim, da tensão existente no
país e nas comunidades estrangeiras que aqui residiam ou se encontravam de
passagem.
À semelhança do que ocorreu com textos
aqui publicados (de Hugh Trevor-Roper ou Mary McCarthy), a tradução da reportagem de Liebling não
pretende ser particularmente rigorosa ou, digamos assim, «profissional».
Carta de Lisboa
24 de Junho 1940
(por Clipper)
Actualmente, Lisboa é das poucas
cidades europeias confortáveis que restam, mas paira no ar alguma inquietação.
Os acontecimentos em França refrearam o ímpeto dos preparativos da comemoração dos
800 anos da independência e da «libertação do jugo espanhol» que pôs termo a
uma união temporária com o país-vizinho. Pacíficos por natureza, os portugueses
não podem deixar de pensar que pouco conseguirão fazer para evitar o regresso
do jugo espanhol, caso Franco assim o deseje, e esperam que ele não se sinta muito
melindrado pelas festividades em preparação.
O regime do Senhor Salazar, um
professor universitário de economia política que envergou as vestes de ditador
absoluto, manteve Portugal um país solvente, mas desarmado. A Espanha fascista,
com uma situação financeira em descalabro, como qualquer bom economista poderá
explicar-vos em dez minutos, começa a erguer a cabeça com a sua dispendiosa artilharia.
É a habitual equação canhões vs.
manteiga, aqui aplicada a uma escala reduzida. O condutor português do
Wagons-Lits que faz o percurso de Irun até Lisboa já deixou de gracejar com o
contraste entre os preços das refeições na carruagem-restaurante e aquilo que
os espanhóis têm para comer. O seu apetite e a comida continuam bons, mas anda preocupado.
O Senhor Salazar alimenta a esperança
de que o General Franco se mostre grato pelos favores que lhe fez durante a
Guerra Civil. Está ciente de que, pela primeira vez desde as guerras
peninsulares, a tradicional aliança de Inglaterra com Portugal constituiu mais uma
ameaça do que um trunfo. Não é, em todo o caso, uma aliança que mesmo um
ditador possa romper de um dia para o outro, já que o inglês é a segunda língua
falada em Lisboa, os bancos ingleses controlam o sistema financeiro do país,
durante séculos os ingleses foram os grandes consumidores de vinho do Porto e
Portugal sabe que, caso a Grã-Bretanha seja derrotada, as colónias portuguesas
serão confiscadas. Por outro lado, os Portugueses são afectuosos e
sentimentais; aqueles que não têm posses – ou seja, a grande maioria da
população – reagiram às derrotas de França de uma forma ingénua, entrando
em pânico. Os italianos não são populares por aqui, nem mesmo os alemães, ainda
que a comunidade germânica de Lisboa seja numerosa. Há umas semanas, a polícia
fez uma rusga ao clube e à escola alemã e descobriu uma apreciável quantidade
de armas – tantas que quase chegariam para formar um exército em Portugal.
Para quem viva em Lisboa, é difícil
abstrair muito tempo da situação política, mas, na aparência, a vida corre sem
sobressaltos, seja na capital, seja na Riviera portuguesa, uma região em forma
de crescente que começa ao norte da cidade e se espraia por umas trinta milhas
ao longo da costa. Não é necessário tapar as janelas à noite, algumas sessões
de cinema chegam a começar à uma da manhã e o Casino Estoril, a zona de
veraneio mais em voga no país, só se anima por volta das três da madrugada. Para
aqueles que acabam de chegar de França, de Inglaterra ou da Alemanha, tudo isto
parece outro mundo. A vida social britânica, que sempre teve a atmosfera típica
de uma festa de jardim de um governador colonial, prossegue sem alterações, com
os ingleses a jogar às cartas com os seus compatriotas, a fazer representações
de teatro amador (Sir John Barrie e Ian Hay são os dramaturgos favoritos), a
apostar moderadamente no Casino. Espera-se que o duque de Kent participe na
abertura das comemorações centenárias e um comité especial do Royal British Club
está a preparar com rigor a sua recepção, apenas se interrogando se os alemães
e os italianos não chegarão antes dele.
Em caso de emergência, a Marinha
inglesa certamente será capaz de resgatar do país os residentes de
nacionalidade britânica, mas, até que isso aconteça, os ingleses enfrentam grandes
dificuldades em regressar a Londres. Não existe uma linha regular de transporte
de passageiros e os navios fretados são pequenos, desconfortáveis e escassos.
Os únicos meios para abandonar o país são os Pan American Clippers, com destino
a Nova Iorque, e as carreiras que rumam à América do Sul. Como estas últimas
não são muito procuradas, os hotéis de Lisboa enchem-se de americanos vindos de
França que esperam por um lugar no Clipper. À primeira vista, o número total,
cerca de mil pessoas, não parece significativo. Contudo, se compararmos os
passageiros que um Clipper pode transportar – no máximo, vinte cinco, na viagem
para Oeste – e os quartos decentes que existem nos hotéis de Lisboa e da linha
do Estoril, apercebemo-nos de que aquele número é astronómico.
***
Perante
o que se passou, os ingleses continuam a abanar gravemente as suas cabeças,
dizendo que é comum Churchill abster-se de recriminações, e que o que restou do
exército francês deveria ter sido evacuado para defender as Ilhas Britânicas. O
desaparecimento daquele exército alterou de tal forma a correlação de forças
entre as diversas nações europeias que ainda ninguém se habitou à ideia; foi
como se tivesse morrido subitamente a pessoa que é o ganha-pão de uma família numerosa.
No mês passado, em Nancy, quase todos
os correspondentes ingleses e americanos juntaram esforços em busca da única
divisão britânica que supostamente alcançou a frente de batalha. Actualmente, essa
divisão esfumou-se. O episódio têm o seu quê de divertido, já que os perigos
criados pelo falhanço do governo de Chamberlain em enviar tropas para a frente
de combate só se tornaram patentes no mês passado, quando o exército francês,
reduzido a menos de um milhão de homens, para não falar das divisões imobilizadas
na fronteira italiana, tentou enfrentar em campo aberto três milhões de
soldados alemães.
***
Curiosamente, os fascistas espanhóis
continuaram a trocar francos por pesetas, ao passo que os portugueses,
francófilos mas prudentes em questões financeiras, recusam-se a aceitar a moeda
gaulesa. Até agora, o único movimento ostensivo de Espanha foi a ocupação da
zona internacional de Tânger, algo que, segundo a versão oficial, foi feito
«com o consentimento dos governos francês e britânico». Os homens de negócios
de Lisboa só se aperceberam daquela operação quando começaram a receber
correspondência com selos ostentando a cara de Franco em vez dos retratos do
rei Jorge e da rainha Isabel.
Em Irun, a cidade fronteiriça onde é
habitual esperar várias horas pelo Sud-Express para Lisboa, já servem
refeições, o que não sucedia há nove meses atrás. Os espanhóis dizem que a
alimentação é demasiado cara para os seus níveis salariais, mas o mero facto de
ela existir é já um progresso. Os jornais espanhóis são, naturalmente,
pró-nazis e pró-italianos, ainda que as pessoas que encontramos nos bares de
Irun ou nas tabernas de Fuenterrabia, nas redondezas, façam troça dos italianos.
«Os alemães não lhes vão dar nada de nada», dizem. Admiram os alemães e
congratulam-se por ver os franceses humilhados. Os espanhóis antifascistas
mantêm-calados, e não é certo que ainda nutram grande simpatia pelos ingleses.
Há umas noites atrás, um alemão que
falava inglês virou-se para um casal de americanos num bar de Lisboa e
disse-lhes: «Meus caros, Hitler não tem quaisquer pretensões relativamente ao
Canadá ou aos Estados Unidos. É um homem recto, que apenas reclama aquilo a que
tem direito». Faz lembrar o que alguém disse de uma eleição realizada no Sarre já parece há quase um século, em 1935.
A. J.
Liebling
Tradução de António Araújo
Obrigada, António!
ResponderEliminarMaria Teresa Mónica
Ora, Teresa, eu é que agradeço!
EliminarCom amizade,
António
Excelente ideia António, esta das cartas... a caminhar para outra ( que não sei se já se concretizou) : um repositório de correspondência de e sobre Portugal visto por estrangeiros durante o Estado Novo .
ResponderEliminarAssim haja tempo para isso, meu caro Ricardo...
EliminarUm abraço,
António
"de uma forma ingénua, entrando EM pânico" ?
ResponderEliminarBoas
Já corrigi, obrigado!
EliminarUm abraço