Palácio Nacional da Ajuda, aqui
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Se,
como diz a Bíblia, Jacob serviu sete anos Labão como pastor, Vital Ferreira Fontes
passou mais de cinco décadas de vida a apascentar reis e presidentes. Natural
da freguesia de Santana, concelho da Sertã, fora enjeitado à nascença, deitado
à roda. Consta que seu pai era fidalgo, «um senhor que não me quis», dirá
Fontes, já no fim da vida, ao jornalista Rogerio Perez, que compilou o
testemunho do antigo serviçal da Ajuda e de Belém em Servidor de Reis e de Presidentes, livro publicado em 1945 pela
Editora Marítimo-Colonial, Lda.
Começou
no Palácio da Ajuda, com D. Luís. Antes disso, servira como soldado do 8 de
Cavalaria, em Castelo Branco, e depois em Artilharia 1, em Lisboa. Os
preparativos do casamento de D. Carlos obrigaram à contratação de pessoal
suplementar para a Ajuda e para as Necessidades. Vital veio – e ficou. Mais de
cinquenta anos. Entretanto, deu-se uma revolução, e com ela mudou o regime
político. Instaurada a República, questionaram-no se queria continuar ao serviço.
«Entenderam perguntar-me se desistia do lugar, e eu respondi que continuava
servindo a Nação, se me fosse permitido. Como não havia nada contra mim, e
todos me conheciam como empregado zeloso e cumpridor, mandaram-me então para o
Palácio de Belém.» Com o mesmo desvelo com que outrora servira monarcas e
príncipes de sangue azul, entregou-se agora a tratar de presidentes, eleitos e
republicanos. Por ele passaram todos os da Primeira República, que foram sete.
Mais tarde, os da Ditadura Militar, entrando pelo Estado Novo adentro. Vital
Fontes reformou-se no tempo de Carmona, indo viver para uma modesta casinha no
Alto da Ajuda, na companhia da sua mulher (e de uma horta com couves). Mas,
apesar de aposentado, continuava a visitar Belém e a Ajuda, onde dava corda aos
relógios. Deslocava-se à Presidência sempre que o Chefe do Estado lá ia (um dia
por semana: às quartas-feiras), acompanhando-o ainda quando Carmona ia aos
teatros da capital. Tinha, entre outros dotes, um talento especial para acender
os cigarros que o Presidente enrolava, muito fininhos. Não era um pormenor de
somenos. Ainda que o marechal fizesse os seus cigarros com suma perícia, sobravam
sempre uns fiapos de tabaco; havia que lhes dar lume com os maiores cuidados,
não fossem eles queimar a farda de gala do Chefe do Estado ou a toalha da mesa
de cerimónia. A chegada dos isqueiros – a que Vital chama «acendedores
automáticos» – tornou esta função dispensável, mas outras tarefas de relevo
tinha o mordomo de desempenhar. Por exemplo, certificar-se, antes de cada
banquete, que os pés da mesa não coincidiam com o lugar do Presidente,
incomodando-o; acontecera uma vez, aquando da Exposição do Mundo Português, e a
falha deixou Carmona deveras arreliado. Fumador compulsivo, o Chefe do Estado,
que ademais era frugal na alimentação, passava tormentos nos banquetes de gala,
no advento do seu cigarrinho. Logo que servia a sobremesa, Vital
sussurrava-lhe, discretamente, «É agora!», e de imediato António Óscar de
Fragoso Carmona passava à sala adjacente, onde se tomava café – e se podia
fumar…
A
propósito de fumos, o livro conta que terá sido em Lisboa, ainda nos tempos da
Monarquia, que Afonso XIII queimou o seu primeiro cigarro, protegido por D.
Carlos e às escondidas de D. Amélia. Ao que parece – di-lo Vital Fontes com uma
ponta de escândalo –, na Corte espanhola as senhoras fumavam. E até a rainha de
lá o fazia, algo nunca visto em terras de Portugal, pelo menos em público.
Mas
o que mais horrorizava o serviçal de reis e presidentes eram os modos dos
convidados à mesa, no decurso dos banquetes oficiais em Belém ou na Ajuda:
gente que erguia o copo a reclamar mais vinho, como se estivesse numa taberna;
convidados que se sentavam antes que a mesa de honra o fizesse; senhoras que
olhavam desconfiadas quando os criados lhes ajeitavam as cadeiras; cavalheiros
que gesticulavam com os talheres nas mãos, outros que levavam a faca à boca.
Havia até quem pedisse palitos no final das refeições! «Já me tem acontecido
pedirem-me palitos e, o que é pior, usarem deles com grande à-vontade, fazendo
até com a língua aquele ruidozinho que é o pior dos ruídos.» Mas era possível
descer mais baixo: «pior que o uso do palito é aquilo de substituir a lavagem
dos dentes com o bochechar do café. Que também já vi disso» − conclui Vital
Fontes, acrescentando em pesaroso balanço de vida: «Que não terei eu visto em
tantos anos de banquetes?!...»
Nem
tudo foram mágoas, porém. Em Luanda, por exemplo, quando aí se deslocou
acompanhando Carmona em visita oficial, Vital Fontes observou, com maravilhado
espanto, «um banquete de quinhentos talheres, e que bem servido, por negros que
envergonhariam muitos criados brancos.» Também no Lobito a criadagem africana
mostrou ser capaz de servir um ágape faustoso no Hotel dos Caminhos de Ferro.
Em Porto Aboim, Vital presenciou outro episódio, este patriótico e comovente.
Após ter avistado Carmona, um ancião negro, com 105 anos de idade, virou-se
para o seu patrão e disse que já podia morrer tranquilo. Porquê? «Porque já vi
o branco que manda em todos os brancos.» Vital Fontes acrescenta, com orgulho
nacionalista, que para os africanos o tratamento de «brancos» era reservado aos
portugueses; os outros eram ingleses, franceses, germanos, mas «brancos» só
existiam uns, os colonos de Portugal.
Desengane-se
quem pense que o livro se cinge ao longo consulado de Óscar Carmona. Servidor de Reis e Presidentes fala-nos
da agonia e morte de D. Pedro V (que Vital garante ter sido assassinado); das
«aventuras de amor» de D. Luís, um rei que, além do amor, «comia muito, e tudo
com pão e manteiga»; da visita a Portugal do futuro rei Eduardo VII, na altura
ainda príncipe de Gales, com paragem festiva em Lisboa e uma burricada à Pena;
das desavenças entre D. Maria Pia e a duquesa de Palmela por causa de uma
cabeleireira, que preferiu servir a duquesa, pois esta pagava melhor do que a
rainha de Portugal; dos trabalhos da criadagem sempre que Maria Pia decidia
jantar na praia, no Estoril, obrigando os serviçais a verificar se algum talher
de prata não ficara perdido no areal; de ter sido essa rainha, pouco modesta
nos gastos, a introduzir em Portugal o primeiro elevador (instalado em Mafra) e
os patins de rodas; da simplicidade de hábitos do infante D. Afonso, sempre
metido nas garagens de Belém, as mãos sujas de óleo de reparar automóveis (que depois
conduzia desenfreadamente, o que lhe valeu, na Lisboa do tempo, a alcunha de
«Arreda»); do desdém de D. Carlos pela «excessiva etiqueta», a ponto de ter
abolido o beija-mão na Corte portuguesa; da tormentosa noite do regicídio,
quando raros fiéis se apresentaram nas Necessidades para velar os cadáveres de
D. Carlos e do Príncipe Real; do ambiente pesado dos últimos dias da Monarquia
e da atribulada fuga da família régia até à Ericeira, de onde partiu rumo ao
exílio.
Depois, a República. E, com ela, os
presidentes. Teófilo Braga, que só a muito custo foi convencido a deslocar-se a
Belém em viatura própria, abandonando o uso do eléctrico ou do popular «Chora».
Manuel de Arriaga, que pagava do seu bolso uma renda mensal avultada – cem
escudos – para pernoitar em Belém (antes disso, alugara um palacete na Horta
Seca e comprara um automóvel para as deslocações oficiais). Bernardino Machado,
que concedia intermináveis audiências a pessoas das mais variadas origens
sociais e gastava todo o salário em festas e recepções. Sidónio Pais, que sofria
de insónias e trabalhava noite fora, com a capa militar pelos ombros e um
cobertor pelos joelhos. Morreu em funções, baleado na Estação do Rossio. Ou,
nas palavras de Vital Fontes, «O sr. dr. Sidónio Pais foi um dia ao Porto, e à
volta só o vi depois de embalsamado, na sala Luís XV, cheia de gente a desfilar
e muitos a chorar.»
Nitidamente,
o aprumado Vital apreciava sobremaneira a figura de Manuel Teixeira Gomes e o
apuro do seu gosto. Chama-lhe «príncipe árabe» e recorda, com indisfarçável
saudade, a elegância do Presidente e homem de letras que, curiosamente, era
ferrenho adepto de futebol, assistindo, sempre que podia, a uma partida «do
jogo da bola». Em contraste com esta admiração por Teixeira Gomes, os modos de
caserna de Gomes da Costa, cujos gritos de fúria troavam por todo o Palácio de
Belém, não deixaram saudades no refinado serviçal de reis e presidentes.
A
perspectiva de Vital Ferreira Fontes – e aí reside o interesse do seu livro – é
a perspectiva do criado. Não o do
conhecido filme de Joseph Losey, que pouco a pouco inverte a hierarquia das
posições entre senhor e servo. Vital jamais o faria. Pelo contrário, mostra-se
sempre respeitador e humilde perante a memória de todos quantos serviu.
Mais
curioso ainda é saber que também no nosso tempo existiu uma versão aggiornata de Vital Ferreira Fontes. De
seu nome João Casteleiro, esteve 43 anos em serviço no Palácio de Belém. Pese a
diferença de muitas décadas, as trajectórias de vida de um e de outro revelam surpreendentes
afinidades. João Casteleiro tinha nove anos quando o pai foi contratado para o
Palácio de Cascais, no forte da Cidadela, servindo o último presidente com que
Vital trabalhou, Óscar Carmona. Durante a adolescência, João Casteleiro empregou-se
numa farmácia, nas imediações da Cidadela, cumpriu os deveres militares e,
entrando na idade adulta, pediu ao pai que o colocasse em Belém. O Presidente
de então, Craveiro Lopes, acabou por contratá-lo como contínuo, tinha ele 29
anos. Depois, seguiu-se Américo Thomaz – que, à semelhança de Carmona, só se
deslocava a Belém uma vez por semana. Quando ocorre o 25 de Abril, o Palácio
esteve três dias entregue aos funcionários, que ocuparam o tempo em jogos inocentes
e brincadeiras de salões. Numa célebre cadeira com dois leões dourados – que
Júlio Pomar colocaria no retrato oficial de Mário Soares – os colegas sentaram
João Casteleiro, e nomearam-no Presidente, funções que exerceu três dias, até à
chegada dos militares. Num registo semelhante ao de Vital Fontes, João Casteleiro
diz que todos os presidentes que serviu, antes e depois da revolução de Abril,
eram «homens bons». Nutre especial afeição por Ramalho Eanes e recorda o
«feitiozinho» de Mário Soares: «zangava-se muito, gritava, mas depois
passava-lhe rápido!» Uma vez, o Presidente ficou exasperado por terem servido
rosbife a convidados ingleses, que obviamente já conheciam o prato e decerto
pretendiam provar a comida portuguesa. Apesar das suas zangas momentâneas, em
1983 Mário Soares concedeu-lhe o título oficial de «mordomo» do Palácio de
Belém, funções que abandonou durante a Presidência de Jorge Sampaio. Se Vital
Fontes se lamenta, muito en passant, do
temperamento azougado dos filhos de Bernardino Machado, João Casteleiro demitiu-se
devido ao filho de Jorge Sampaio o ter preterido na organização de um evento, favorecendo
um funcionário mais novo, segundo referiu o mordomo em entrevista ao jornal Correio da Manhã, em Janeiro de 2016. Passam
os tempos, mudam as chefias do Estado. Mas lá permanece, intocada, a perspectiva do criado. Da Monarquia à
República, atravessando o Estado Novo e o Portugal democrático, Vital Fontes e
João Casteleiro partilharam o mesmo destino, sobre o qual, de resto, têm visões
bastante próximas. Outros os seguirão, pois servir é tarefa antiga. Tão velha
que até vem na Bíblia.
Eis um livro (entre outros) cuja reedição se justifica.
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